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“POETA” AGRIDE A LITERATURA NORDESTINA

Ousarme Citoaian
Várias mídias festejaram que um delegado de Brasília “lançou mão dos seus dotes poéticos cordelistas” (sic) para relatar o inquérito sobre a prisão do receptador de uma moto roubada. É lamentável que os veículos, por ignorância de quem os produz, deem abrigo a coisas desse tipo. O delegado, longe de poetar, agride a poesia: na sua versalhada (mais de 60 linhas) não há um só verso razoável. Piligra e Gustavo Felicíssimo, que cultivam o gênero, não encontrarão aqui nada que se salve. “Já era quase madrugada/Neste querido Riacho Fundo/Cidade muito amada/Que arranca elogios de todo mundo” – é a primeira quadra, anunciando o atentado à métrica. Deus, oh Deus, onde estás que não respondes? Sextilhas piores virão.

TERNO AÇOITE DE CORDAS LEVES E SONORAS

“Logo surge a viatura/Desce um policial fardado/Que sem nenhuma frescura/Traz preso um sujeito folgado”. Fiquemos por aqui, para não propagar artigo tão pífio, nem aumentar o calor da indignação. Sentenças e petições em versos não são novidade. Era 1955, em Campina Grande, quando o advogado Ronaldo Cunha Lima (foto) foi chamado a “soltar” um violão tomado de um grupo de boêmios. O “cliente” é “qualificado” em decassílabos: “Seu viver como o nosso é transitório,/mas seu destino, não, se perpetua./Ele nasceu para cantar na rua/e não pra ser arquivo de cartório”. Conclusão: “Mande soltá-lo pelo amor da noite/que se sente vazia em suas horas,/pra que volte a sentir o terno açoite/de suas cordas leves e sonoras”.

VERSEJANDO, CARLOS MARIGHELA TIROU DEZ

Se os 40 versos do futuro político Cunha Lima são bons, os 14 do juiz Arthur Moura, sobretudo os últimos, atingem a alma: “Recebo a petição escrita em verso/e, despachando-a sem autuação,/verbero o ato vil, rude e perverso,/que prende, no cartório, um violão./Emudecer a prima e o bordão,/nos confins de um arquivo em sombra imerso/é desumana e vil destruição/de tudo que há de belo no universo./Que seja solto, ainda que a desoras,/e volte à rua, em vida transviada,/num esbanjar de lágrimas sonoras./Se grato for, acaso ao que lhe fiz,/noite de lua, plena madrugada,/venha tocar à porta do Juiz”. Carlos Marighela (foto) tirou dez numa prova de Física, em versos(no Colégio da Bahia,1929). O delegado, a meu juízo, zero.

AS AGÊNCIAS DEVERIAM ASSINAR SUAS PEÇAS

Quem tiver a grandeza de perdoar à publicidade alguns excessos, como tirar o acento circunflexo de Banco Econômico (marca já extinta) e colocar acento agudo em pitu, da Aguardente Pitu, terá bons momentos a apreciar. Gosto tanto do tema que sugeri às agências divulgarem seus nomes nas peças que produzem. Seria, pareceu-me, boa forma de separar os bons dos medíocres. Ziraldo disse que divulgar uma obra de arte sem nome do autor (ele falava de música, mas eu incluo aí a propaganda) equivale a passar um cheque sem fundos. Minha ideia mereceu somente o desdém de um publicitário.

ANÚNCIO TRANSFORMADO EM OBRA DE ARTE

Entre clientes e publicitários há divergências. Os primeiros, por natural pragmatismo dos negócios, acham “bom” o anúncio que leva o cliente potencial ao ponto de venda – e, conforme diz o merceeiro da minha rua, “o resto é poesia”. As agências às vezes têm outra visão: ao invés de um simples anúncio para vender sabão, aspiram a obra de arte. É como bater pênalti: há quem dê uma cacetada entre o goleiro e um dos postes (o que é praticamente indefensável, devido à velocidade da bola); outros preferem um toque “artístico”, com risco de levar sua torcida a lagrimejar frustração e raiva.

DO SUTIÃ E DA BRASTEMP NINGUÉM ESQUECE

Grandes momentos da propaganda brasileira estão no imaginário de várias gerações:  Brastemp (“não é nenhuma brastemp, mas…”), Coca-Cola (“não é essa coca-cola toda”), Bayer (“se é Bayer, é bom”), Valisère ( ”o primeiro sutiã ninguém esquece”), A Tarde (“se deu n´A Tarde é verdade”) são clientes que ficaram famosos graças a suas contas publicitárias. Melhoral é um caso à parte: mesmo de baixa qualidade (“é melhor e não faz mal”) seu slogan pegou feito chiclete. Junto à lista um que vi há pouco na tevê, sobre um restaurante que trabalha com pescado: ”Dos mares, o melhor”. Perfeito.

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UMA CANÇÃO ME PERSEGUE HÁ MEIO SÉCULO

Defendo a tese de que nossa sensibilidade tem variações palpáveis, de acordo com o tempo e o espaço. E isto me parece tão óbvio, acaciano, primário e rasteiro que provavelmente alguém já defendeu tal ponto de vista. Estou querendo dizer que uma obra de arte (ou qualquer acontecimento) nos atinge de maneira diferente, a depender da circunstância em que com ela temos contato. Não somos máquinas. Pegamos um livro num dia e não lhe toleramos nem a leitura das primeiras frases; mais tarde, descobrimos que o mal não estava no livro, mas em nós. Não sei com que estado de espírito vi o filme O mágico de Oz para que a canção-título (Somewhere over the rainbow) jamais me saísse da memória.

NÃO HÁ LUGAR MELHOR DO QUE NOSSA CASA

O tempo passou, passou a grande atriz-cantora Judy Garland (1922-1969), chegamos à era da insensatez, quando a tela foi transformada em geradora de sangue e secreções sexuais. Mas a história da menina Dorothy e sua estranha trupe (o leão covarde, o espantalho e o homem de lata) permanece. Dorothy Gale (com seu cãozinho Totó) embarca num ciclone, viaja pela Estrada de Tijolos Amarelos, é assediada por bruxas más do Leste e do Oeste, chega à Cidade das Esmeraldas, entra em contato com o Mágico de Oz – e logo vai descobrir esta verdade universal que muitas vezes nos escapa: “Não existe lugar como a nossa casa”. De passagem: a terra de Oz tem menções literárias que remontam a 1910 (o filme é de 1939).

O FILME É ETERNO PORQUE FALA DE SONHO

Penso que O mágico de Oz é eterno porque fala de um dos mais universais dos nossos sentimentos – o sonho: “Em algum lugar além do arco-íris/os pássaros azuis voam/e os sonhos se tornam realidade”. A música ganhou registro de artistas do nível de Ray Charles, Ella Fitzgerald, Eric Clapton e Sarah Vaughan. Na excepcional trilha sonora de Uma babá perfeita (a que nos referimos recentemente) lá está Over the rainbow, cantada por uma visceral Jevetta Steele, em gravação especialmente para o filme. Há de se notar o sax tenor de Rickey Woodard (foto), com entradas precisas. Sabendo-se coadjuvante, Woodard se mantém nos limites. Mesmo quando tem preciosos 35 segundos para improvisar, evita que seu sax roube a cena.

(O.C.)

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