Waldir Pires foi deputado, governador da Bahia, ministro e vereador || Foto Marcelo Casal Jr./ABr
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Waldir sabia dos riscos da sua atitude e, ao se despedir do cardeal, com certa acidez e um leve sorriso nos lábios disse: O senhor vai responder lá em cima, e muito fortemente, pela injustiça que está cometendo.

 

 

José Cássio Varjão

Um dos nomes de maior relevância, da política baiana e brasileira foi o social-democrata Francisco Waldir Pires de Souza. Advogado, professor da Universidade Católica de Salvador, professor da Universidade de Brasília, professor da Universidade de Dijon, na França, consultor-Geral da República no governo João Goulart, ministro da Previdência Social, no governo José Sarney, ministro da Controladoria-Geral da União e Ministro da Defesa, nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, deputado estadual, deputado federal, governador e, por fim, vereador, de Salvador.

Como capítulo marcante do meu livro Eleições Históricas – Do Voto à História, a ser lançado nas próximas semanas, a eleição para o governo da Bahia, em 1986, foi um acontecimento memorável na história política da Bahia. Os olhos do ex-deputado federal Domingos Leonelli brilham quando lembra da campanha de 1986: “Uma campanha como aquela nunca se viu. Dificilmente se verá outra igual. Uma rebelião cívica. Waldir era o símbolo do anseio de liberdade acumulado ao longo dos anos”.

Para escrever sobre o processo eleitoral de 1986, no estado da Bahia, me debrucei, inebriado, nas quase 800 páginas dos dois volumes sobre a biografia de Waldir Pires, de autoria do jornalista, escritor e professor Emiliano José, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA. “A campanha de 1986 foi algo jamais visto na Bahia, pelo que suscitou de sonhos, de encantamento, de magia. Chegasse a hora que chegasse, às duas, às três, às cinco da manhã, ninguém arredava o pé, chovesse canivete, houvesse a tempestade que houvesse, fizesse chuva, fizesse sol, frio ou calor, as praças não se mexiam. Foi um caso de arrebatamento, um profundo caso de amor entre a população e seu líder. Um líder das massas. Quase um Messias”, sintetizou Emiliano José.

Principalmente pela controversa renúncia ao mandato de governador, para concorrer com Ulisses Guimarães, na eleição presidencial de 1989, pelo PMDB, esses dois textos, que escreverei, tem como objetivo trazer à tona algumas situações do jogo político que passaram ao largo pela população, que, ainda nesses dias, tece comentários, às vezes sem quaisquer parâmetros, como se “a decisão mais difícil da minha vida política”, frase dita por Waldir Pires, inúmeras vezes, tivesse sido uma escolha sem fundamento. Como exposto no título desse escrito, Waldir Pires viveu alguns confrontos ao longo da sua vida política que merecem especial atenção.

Nascido em Cajueiro, hoje município de Acajutiba, litoral norte da Bahia, em 1926, filho do casal Zeca Pires e dona Lucíola, mudou-se em 1929, com seus pais e irmãos, para Amargosa, a chamada Rainha do Café, no início do século XX. Fez o ginásio em Nazaré das Farinhas antes de seguir no final de 1941, para a Cidade da Bahia, a gigantesca Salvador, com seus 290 mil habitantes. Estudou no Colégio Estadual da Bahia, depois, Colégio Central e, finalmente na Faculdade de Direito da Bahia.

Em 1949, foi o orador da turma de Direito, uma honraria especial àquele aluno que obteve média superior a 7 em todas os exames escritos. A data da formatura, 5 de novembro, marcava o centenário do jurista Rui Barbosa, com a inauguração do fórum que leva seu nome, no Campo da Pólvora, Salvador. Com pompa, circunstância e a presença do governador Octávio Mangabeira, Waldir Pires foi o primeiro orador a ocupar a tribuna do fórum e o primeiro a se pronunciar na nova sede do Tribunal de Justiça da Bahia.

Exímio tribuno, um ano antes de se formar, em 1948, recebeu a visita do então prefeito de Amargosa, João Sales, convidando-o para ser o orador oficial da recepção ao governador Octávio Mangabeira, na inauguração da energia elétrica da cidade. “Discurse por Amargosa”, pediu João Sales. Ainda não havia envolvimento político, não estava vinculado a nenhuma corrente política. Quando chegou a Amargosa, soube que o governador não estaria presente, seria representado pelo secretário de Segurança Pública, Oliveira Brito. O líder do governo na Assembleia Legislativa, Antônio Balbino (PSD), também estaria presente e a vida de Waldir Pires tomou um rumo completamente inesperado para aquele momento da sua vida. Se João Mangabeira foi seu inspirador, Antônio Balbino foi seu tutor.

Um ano após a formatura em Direito, em 1950, Waldir Pires concorreu a deputado estadual pelo PSD (Partido Social Democrático). Era a confirmação, para Balbino, da sua vocação política e nada melhor do que jogá-lo aos leões, testá-lo na batalha da conquista de votos. Waldir obteve 2.664 votos. Outro concorrente, Josaphat Marinho ficou com 3.044 votos. Os dois se encontrariam em outras oportunidades do cenário político, como aliados ou como adversários. Antônio Balbino estava certo. O talento do rapaz para a política era inegável.

A carreira política de Waldir Pires estava se iniciando e os frutos da amizade com Antônio Balbino lhe renderam a indicação para o cargo de secretário de Governo de Régis Pacheco, eleito governador em 1950, aos 24 anos de idade. Um fato trágico a ser lembrado é que o candidato a governador pelo PSD, em 1950, era o deputado federal Lauro Farani Pedreira de Freitas, que morreu em acidente aéreo em 11 de setembro de 1950, na cidade de Bom Jesus da Lapa. O coordenador e homem forte da campanha de Lauro de Freitas era Antônio Balbino, que em três dias definiu Régis Pacheco, deputado federal e ex-prefeito de Vitória da Conquista, como o candidato do partido.

Em 1954, é eleito deputado estadual pelo PTB, com 7.162 votos, estava definitivamente inserido no mundo político. Nessa legislatura, entra na vida de Waldir Pires o maior desafeto e adversário da sua carreira política, Antônio Carlos Peixoto de Magalhães, que obteve 3.990 votos na eleição suplementar de 1955, bem abaixo de Waldir e o décimo eleito pela UDN, que elegeu onze deputados estaduais. Nesse período, não se rivalizaram e, em algumas oportunidades, Antônio Carlos fez seguidos elogios à atuação de Waldir Pires. Nessa legislatura Waldir Pires foi o líder do governo na Assembleia Legislativa. Josaphat Marinho também era deputado estadual.

Em 1958 é eleito deputado federal, com mandato a se encerrar em 1963. Com destacada participação na 41ª Legislatura da Câmara Federal, Waldir alçava voos no cenário nacional. Foi integrante ativo da Comissão de Constituição e Justiça, integrante da Frente Parlamentar Nacionalista, vice-líder da maioria no governo de Juscelino Kubistchek. Em 1961, em Genebra, Suíça, compôs a comissão que representou o Brasil numa conferência internacional, votando pela admissão da China à ONU.

Aos 36 anos, em 1962, se lançou à primeira campanha para o governo do estado da Bahia. Outro desafio, mais um degrau a subir e por pouco não obteve sucesso. Perdeu a eleição para Lomanto Júnior, ex-prefeito de Jequié, por meros 5% dos votos válidos. Aqui, surgiu a primeira controvérsia da carreira política de Waldir Pires, o improvável embate com dom Augusto Álvaro da Silva, o famoso Cardeal da Silva, nome da avenida que liga os bairros do Rio Vermelho e Federação, em Salvador.

Naquela disputa, Lomanto tinha o apoio dos partidos de direita, dos principais meios de comunicação e da Igreja Católica, enquanto Waldir tinha o apoio do PSD e do PCB. Antônio Guerra Lima, advogado e procurador-Geral do Estado no Governo de Waldir Pires (1986), afirmava que “não bastaria apenas constatar genericamente o apoio da Igreja Católica a Lomanto. Era imperativo afirmar o desempenho fervoroso e a dedicação pessoal do cardeal com a intenção de derrotar Waldir Pires, um anti-Cristo a quem era necessário abater”.

Dom Augusto Álvaro da Silva era um “príncipe católico” conservador, completamente absorvido pelo clima que o mundo vivia naqueles tempos de Guerra Fria, e agiu como um militante político influenciando o clero baiano, nas suas missas e sermões, a não votar no candidato dos comunistas. Com ataques diários, sendo amplamente divulgados pela imprensa, eram distribuídos panfletos espúrios, com o título de “Alerta Democratas”, constando os nomes dos candidatos “supostamente comunistas”. Parênteses para pensar: Alguma similaridade com a política praticada por alguns grupos atualmente?

Dia 6 de setembro de 1962, 31 dias antes das eleições, a manchete do jornal A Tarde revelava que a Igreja Católica dividia os candidatos ao governo do estado em duas classes: os bons e os maus. Na lata. Direto ao ponto, sem nenhuma sutileza. A matéria descrevia que “o perigo comunista mereceu a atenção dos sacerdotes, sendo ponto pacífico que a Igreja não transigirá com os candidatos vinculados ao credo de Moscou, ou com ele comprometidos, pelo perigo que representam para a segurança do regime democrático e para os princípios fundamentais defendidos pela Igreja Católica”.

Waldir Pires e os seus pais eram extremamente católicos, o que levou Zeca Pires a divulgar uma carta ao povo da Bahia, contra as atitudes do Cardeal da Silva. Após as eleições, seu pai divulgou outra carta, demonstrando grande revolta com as arbitrariedades do líder católico. Num dos trechos, Zeca Pires assim escreveu: “No último episódio eleitoral, da sucessão baiana, assistimos, com espanto e revolta, ao estrangulamento ou sacrifício da verdade e do esforço construtivo. Procuraram, sem fundamento, suspeitas sobre a ideologia de um moço, Waldir Pires, de sólida formação moral e cristã que, como pai católico, graças a Deus, eu a soube ministrar, com esmero e cuidado, pelo fato desse moço nutrir ideias de renovação e de progresso. É assim, de manifesta leviandade e covardia, o setor da igreja que, depois de aprovar seu nome, o desapoiou, na última hora, em uma guinada espetacular e esquisita. Descristianizaram-se, atrelando-se ao carro dos interesses humanos e das conveniências da vida. Hoje, o pseudocomunista representa bem o samaritano do evangelho, é mais cristão do que muitos sacerdotes”. Zeca Pires era coletor federal e foi o responsável pelo ensino do francês aos seus filhos.

Certo dia, numa manhã de domingo, dona Lucíola, sua mãe, “católica de berço e terço”, foi se confessar com o padre de Amargosa. Ajoelhou-se, confessou seus pecados (Waldir perguntava à mãe que raios de pecados ela tinha para se confessar, pois ele não encontrava pecado nela) e recebeu a sua penitência de ave-marias, pai-nossos e salve-rainhas. Quando estava saindo do confessionário, o padre disse: a senhora sabe que esse ano tem eleições? Ela respondeu afirmativamente. Continuou o padre, dizendo que ela não poderia votar no nome de Waldir Pires. Dona Lucíola levantou-se bruscamente, abriu a cortina do confessionário, e o pecado da ira caiu sobre ela: Fique sabendo o senhor que Waldir Pires é meu filho. O senhor me respeite. Isso é uma indignidade! Uma injustiça que estão fazendo com Waldir. Se fosse pecado, desse ela não pediria perdão. O padre imóvel e com os olhos esbugalhados, calou-se.

O embate em si, frente a frente, ocorreu quando o cardeal chamou Waldir para uma conversa no Palácio Episcopal, durante o processo eleitoral: Waldir, eu o chamei aqui porque soube que o senhor tem o apoio dos comunistas. Isso é verdade? Sim. Respondeu Waldir. A conversa seguiu com Waldir argumentando que não tinha motivos para recusar o apoio do PCB. Então, o cardeal vociferou: Se o senhor não recusar esse apoio, vou baixar uma instrução recomendando que os católicos não votem no senhor. Vou condenar sua candidatura. Waldir, impressionado pela frieza do cardeal, respondeu: Lamento, mas não recusarei. Tenho lutas comuns com eles, o petróleo, a energia, a luta pela igualdade social. Não há por que recusar esse apoio. Waldir sabia dos riscos da sua atitude e, ao se despedir do cardeal, com certa acidez e um leve sorriso nos lábios disse: O senhor vai responder lá em cima, e muito fortemente, pela injustiça que está cometendo.

No próximo texto falarei sobre o início da convivência entre Waldir Pires e Antônio Carlos Magalhães, a rivalidade criada com o passar dos anos, a interferência de ACM no governo Waldir em 1986 e, finalmente sobre a renúncia em 1989.

José Cássio Varjão é cientista político.