Adquiri há poucos dias o ótimo Toda poesia, de Paulo Leminski (1944-1989), para dar de presente a uma poetisa amiga, sem saber no que estava me metendo. Leio agora em matéria d´A Tarde, com assinatura de Marcos Dias, que essa coletânea (cerca de 630 poemas do autor paranaense) é fenômeno editorial: ganhou tiragem inicial de 5 mil volumes, número surpreendente para um livro de poesia (pois, em geral, vende ainda menos do que prosa) e teve logo quatro reimpressões de igual quantidade, isto é, atingiu os píncaros das 25 mil unidades em apenas dois meses. Leminski, mais de vinte anos depois de morto, desmente a máxima brasileira de que poesia não vende.
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Quis silêncio, tem barulho estrondoso Há séculos tenho decorado este poemeto de Leminski (seus textos são, em geral, breves, lembrando o haicai, quando não são haicais propriamente): “Acordei bemol/ tudo estava sustenido/ sol fazia/ só não fazia sentido”. Parceiro de Caetano Veloso e Moraes Moreira, tradutor de Joyce, biógrafo de Bashô, Trotski e Jesus Cristo, além de faixa preta de judô, Paulo Leminski escreveu seu epitáfio: “Aqui jaz um grande poeta./ Nada deixou escrito./ Este silêncio, acredito,/ são suas obras completas”. Ao contrário do pedido, com cinco tiragens em tão curto tempo (fazendo-o concorrente de 50 tons de cinza) o poeta motivou em torno de si um barulho intenso.
(ENTRE PARÊNTESES)
Falando do Estádio da Fonte Nova, o professor Gustavo Haun, em artigo neste Pimenta, condena uma nova mania nacional: “… é uma infelicidade tremenda chamar um estádio de futebol de arena. Parece um retorno à barbárie, quando nas arenas da antiguidade se esfolava, matava, queimava etc., para mera distração dos imperadores entediados, além de diversão e alienação das massas”. A mim também me assusta a facilidade com que a mídia em geral aceita (ou ela mesma cria) essas “novidades” linguísticas que a nada de bom nos conduzem. Seria fácil chamar aquele monte de dinheiro desperdiçado de Estádio (como tem sido), mas para que a simplicidade, se o melhor é ser moderninho.
VINÍCIUS E AS MELHORES COISAS DO MUNDO
Dia desses, falamos de vinho, hoje vamos de uísque – o que nos candidata a processo por incentivo a usos e abusos do álcool. “Ossos d´ofício”, diria meu lusitano vizinho. Vinícius achava que a melhor coisa do mundo era um uisquinho escocês “honesto” (ele preferia White Horse), a segunda melhor coisa do mundo, um uisquinho do Paraguai e a terceira, um uisquinho nacional mesmo. Frank Sinatra, falando sobre fé: “Sou a favor de qualquer coisa que faça você atravessar a noite, sejam orações, tranquilizantes ou uma garrafa de Jack Daniel´s”. O cinema e a literatura muito contribuíram para consolidar o uísque como “alavanca” do melhor viver. Mas eu ia dizer outra coisa – e não vou esgotar o tema hoje.
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Sinatra: a gabolice da garrafa diária
Na minha estante desarrumada não localizo um livro (pensei ser A ceia dos acusados ou outra coisa de Dashiell Hammett) que tem uma garrafa de Jack Daniel´s na capa. Logo, saio da literatura noir e entro em outra história: Frank Sinatra (na foto, servindo a Dean Martin e Sammy Davis Jr.) dizia consumir uma garrafa de JD por dia. É gabolice, pois ninguém resistiria a essa insensatez de álcool (espero que quando me processarem considerem esta frase como atenuante). Mas ele sempre bebia uma dose, no palco, num brinde à plateia. As más línguas dizem que era mais água, porém, no show histórico do Brasil (1980) ele desmentiu essa tese: quem estava próximo ao palco o ouviu reclamar que seu uísque tinha “muita água, muita soda, ou coisa parecida”.
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Churchill e seu copo no café da manhã
Churchill, primeiro-ministro britânico, um espongiário (bebia de manhã, à tarde e à noite), exigia no seu breakfast ovos, torradas, charuto e um copo de Johnnie Walker (aqui, a direita moralista jamais o perdoaria!). Os detetives noir são movidos a uísque, sobretudo Jack Daniel´s. Nenhum leitor sensato pensaria em Sam Spade (que Humphrey Bogart viveu na tela em O falcão maltês) ou investigador semelhante bebendo cerveja ou coquetel de frutas: o ambiente é uma espelunca esfumaçada, jazz dos anos quarenta, e a bebida é Jack Daniel´s, com certeza. Faltou dizer que Sinatra, enterrado em 1998, levou no caixão uma garrafa do nosso uísque preferido. Um desperdício, eu diria.
A RELIGIÃO E AS VERGONHAS ENCOBERTAS
Atoleimados, basbaques, beócios, labruscos, mentecaptos, paspalhões, estultos e, principalmente, reacionários insistem em que não há mais índios no Brasil (salvo uns poucos que ainda andam nus e usam botoques). É um discurso falso, menos por ignorância do que por comprometimento ideológico: apenas no Nordeste é possível identificar mais de vinte (!) nações indígenas, mesmo que seus integrantes usem tênis, calça jeans e notebook. Querer que essa gente fique estacionada no século XVI é a primeira pregação do discurso do não-índio – ainda que, já naquela época, lhes impusessem religião e cobertura das “vergonhas”. _______________
Mil línguas perdidas na cultura branca Salvo engano, são indígenas nordestinos os povos pataxó, tupinambá, cariri-xocó, xucuru, xucuru-cariri, trucá, aconã, aticum, fulniô, carapotó e mais umas duas dezenas. Muitas dessas tribos falam suas línguas, outras já perderam tal referência cultural, absorvida e abafada pelo “homem branco”. Informa o IBGE que, além da portuguesa, há pouco mais de 270 línguas indígenas faladas no Brasil. E há línguas de tribos isoladas, que ainda não puderam ser conhecidas e estudadas. Na época do descobrimento do Brasil, havia 1.300 línguas indígenas diferentes. No vídeo, um show arrepiante de Baby Consuelo e Jorge Ben: Todo dia era dia de índio (Rede Globo1981).
O texto segue o tempo, o que não parece óbvio para todo mundo. Quando, há mais de 80 anos, cantava-se “mas como a cor/ não pega, mulata,/ mulata eu quero teu amor…”, O teu cabelo não nega (Irmãos Valença-Lamartine Babo) era apenas alegria inocente; hoje, significa grave ofensa à raça, traumatiza a Lei Afonso Arinos e estatutos afins. Com o passar dos anos, a sociedade adquiriu mais consciência do que pode molestá-la, ampliando os instrumentos de autoproteção. Recentemente, foram banidos vários termos do nosso linguajar, sobretudo os relacionados a condutas sexuais. Onde se dizia “homossexualismo”, por exemplo, hoje é “homossexualidade”. Cautela e caldo de galinha continuam em moda.
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Alienação absoluta, conformismo total Outro texto que tem interpretações diversas, de acordo com a época, é Opinião (Zé Kéti), do show do mesmo nome, de 1964 (logo após o golpe militar). Voltado para a problemática social do Brasil, o espetáculo Opinião absorveu a música Opinião como revolucionária (ao lado de Carcará, Missa agrária, O favelado). Hoje, pode-se entendê-la em outro sentido: “se não tem água,/eu furo um poço,/se não tem carne,/eu compro um osso/ponho na sopa/ e deixo andar…”, uma inabalável profissão de fé no conformismo. Mas as melhores “pérolas” estavam no fim: “se eu morrer amanhã,/ seu doutor,/ já estou bem pertinho do céu”. A alienação absoluta, a antirrevolução, até a antirreforma. E ninguém percebeu. ______________ Tema “pegou” na biografia de Lamartine Voltando a O teu cabelo…, é oportuno dizer que este tema é uma mancha na biografia do Rei da Marchinha, Lamartine Babo. A RCA Victor, ao receber o tema dos Irmãos Valença (João e Raul) pediu que Lamartine “acariocasse” a marcha, tirando da letra algumas expressões de pernambucanês. Lamartine não se fez de rogado: manteve a música e o refrão, extirpou a gíria do Recife, promoveu o primeiro verso a título (o título original era Mulata) e assinou O teu cabelo não nega, como sendo autor da letra e da melodia. Os Valença reconheceram as mudanças, mas foram à Justiça, reivindicando que Lamartine era parceiro, não autor. Ganharam em todas as instâncias. | COMENTE!
NOSSA RESPONSABILIDADE COM O PÚBLICO
Montado em brisa do outono, nos vem um comentário do secretário de Comunicação de Ilhéus, jornalista Paixão Barbosa (foto), a propósito de notinha aqui postada na semana passada, sob o título “Professor ilheense vai presidir a ABL”. Ele “pede desculpas” pelos desvios que esta coluna, “tão acertadamente, registrou”, e diz que tudo aconteceu “por desatenção de quem redigiu [o texto], o que realmente é imperdoável”. Experiente (mais de três décadas n´A Tarde), Paixão Barbosa tira do episódio uma lição. Em suas palavras, “os erros cometidos pelos que têm a responsabilidade de informar ao público são sempre muito graves pelo potencial multiplicador que eles carregam consigo”. No mesmo pé-de-vento do pós-verão, vai a contrarresposta (ai, esse Acordo Ortográfico!).
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Raios, arreganhos e morte anunciada Foi tudo muito divertido (não para o secretário, que querem?) e “didático”, até porque errar, o clássico humanum est, ajuda a identificar nossas fragilidades e nos faz crescer (já não me dirijo a V. Sa., mas ao meu/minha colega que escreveu a notinha açodada): não me leve a mal, eu só quero que você me queira. E digo que Paixão Barbosa, dono de alto conceito no jornalismo baiano, se engrandece com o sucedido: quando temos até um comunicador com morte anunciada em Ilhéus, é confortador saber de alguém capaz de receber críticas, serena e humildemente, recusando-se aos ralhos e arreganhos com os críticos, conforme o hábito. Mas, e quanto aos 18 veículos (pelo menos!) que repetiram a nota sem lê-la, o que faremos? | COMENTE!
(ENTRE PARÊNTESES)
“Às vezes, quando vejo o que se passa no mundo, pergunto-me: para que escrever? Mas há que trabalhar, trabalhar. E ajudar o que mereça. Trabalhar como forma de protesto. Porque o impulso de uma pessoa seria gritar todos os dias ao despertar num mundo cheio de injustiças e misérias de toda ordem: protesto! protesto! protesto!” Este pequeno texto de Federico Garcia Lorca (1898-1936), citado por José Domingos de Brito no livro Por que escrevo? (Escrituras/1999), me vem à mente quando sobre mim pairam as nuvens negras do desencanto com a humanidade – e isto é mais constante do que seria saudável.
De quem “gosta” de jazz é exigido o nome de uns poucos grandes nomes em cada instrumento. Se você é capaz de citar duas feras em trompete (Armstrong, não vale, pois até os bebês conhecem seu som!), sax, voz, guitarra, vibrafone (com estes dois já é mais difícil), baixo e piano, tem suficiente para começar a conversa. Mas faltou bateria. Então ofereço cinco nomes – e qualquer deles fará com que os olhos do pessoal se voltem com admiração para a gentil leitora que o pronunciar: Max Roach (foto), Gene Krupa, Buddy Rich, Art Blakey e Elvin Jones. Aqui, citados ao acaso, os negros ganham de 3 a 2: Roach, Blakey e Jones contra os branquelos Gene Krupa e Buddy Rich. _______________
Baterista “roubou” a própria orquestra Em 1982, Frank Sinatra (1915-1998) comandou o show Concerto das Américas (Concert for the Americas), na República Dominicana, que virou DVD. Em estado de graça, “A voz” cantou Corcovado (em inglês: Quiet night of quiet stars), pretexto para “encher a bola” de Tom Jobim, repetiu grandes êxitos populares (incluindo, é claro, Strangers in the night e New York, New York), tudo isso em companhia da orquestra de Bernard Buddy Rich (1919-1987). Aqui, o momento em que Sinatra apresenta o baterista e este rouba a cena da própria orquestra, com um solo magistral em “Finale”, que encerra a lista de mais de 25 temas do musical West side story, de Bernstein.
Findo 2012, quando foi comemorado o centenário de Luiz Gonzaga, saltou-me aos olhos certo equívoco, perpetrado pela mídia. No afã de prestigiar o Rei, salientaram-lhe qualidades que ele nunca teve. Numa muito criativa matéria de tevê (creio que na Globo) esmiuçou-se a asa branca (uma espécie de pomba, em extinção) e que deu título à música famosa. Lá pras tantas, a repórter danou-se a louvar a “literatura” de Luiz Gonzaga, os “poderosos versos” sobre o sertão, o nordestino, o vaqueiro, a seca e por aí vai, esbanjando um desconhecimento que não se permite a nenhum profissional do gênero: para ser grande (e por ser grande), o Rei nunca se apropriou da qualidade de seus letristas. Ele não fazia “literatura”, fazia acordes.
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Os grandes letristas quase esquecidos
“Era excelente musicista”, atesta o respeitável especialista em Direito Municipal (e ex-roqueiro de igual respeito) Adylson Machado. As comemorações deixaram Humberto Teixeira em quase completo esquecimento, o que me pareceu grande injustiça com quem escreveu um monte de “clássicos” cantados pelo Rei. Cito de memória (além de Asa branca) várias outras, algumas delas obras-primas do gênero, no meu modesto entender: Juazeiro, Qui nem jiló, Estrada de Canindé, Paraíba, Assum preto,Respeita Januário, Mangaratiba, No meu pé de serra, Lorota boa… De Zé Dantas falei em outras colunas: Vozes da seca, A volta da asa branca, Letra i, Riacho do Navio, Cintura fina, Paulo Afonso. A ignorância vigente na mídia é de espantar. COMENTE » |
SEM MISÉRIA, NÃO HÁ JAZZ “DE VERDADE”
Promessa é dívida. Voltamos aos best-sellers do jazz, em que seus integrantes, tal qual os escritores, são acusados de vender muito e… ganhar dinheiro. As listas que todos conhecem são integradas por meia dúzia de grandes artistas negros, mas não incluem Nat King Cole, Frank Sinatra, Doris Day, Fred Astaire. Óbvio: além de serem quase todos brancos, esses venderam muito e, consequentemente, fizeram “concessões”, ficando marcados como “comerciais”. O senso comum diz que lhes falta desgraça e miséria suficientes para sentir o blues na própria pele – sem o que não se canta o jazz autêntico. Quem é jazzman (ou jazzwoman) de verdade morre com o estômago pregado às costas, mas concessões ao mercado, jamais.
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“Num quarto sujo, cheio de percevejos”
Este raciocínio, segundo Ruy Castro (no livro Tempestade de ritmos), foi montado pelos franceses, lá pelos anos trinta/quarenta, e de forma eficiente, “porque até hoje há quem acredite nele”. A teoria tenta preservar o músico de jazz como o tipo “bom selvagem” de Rousseau: negro, pobre, injustiçado, escravo do jazz, do álcool e da heroína, mas firme e incorruptível. Diante das “concessões” que levam à boa vida, escolhe vegetar num quarto sujo, cheio de percevejos (vide os filmes ´Round midnight e Bird, já referidos nesta coluna). “Duke Ellington, a caminho do seu alfaiate, tremia de medo dessa teoria”, ironiza Ruy Castro. Confesso que esse tipo me fascina – creio que fui formado nessa escola romântica. _________________
No fim, boleros derramados, em espanhol
Para ficar apenas num nome (que o espaço é tão pequeno para tanto amor), citemos o velho Nathaniel Adams Coles (1919-1965): pianista, tornou clássica a formação piano-guitarra-baixo, era cultuado pelo seu trio de jazz “autêntico”. Foi assim até resolver cantar canções “comerciais”, quando passou a ser execrado pela crítica. Esta jamais o perdoou por gravar e vender Mona Lisa, Unforgettable, Blue Gardenia e (aí nem eu aguentei!) uma enxurrada de boleros derramados, em espanhol. De ternos bem cortados, e dono de muitos dólares, Nat King Cole era discriminado no bairro rico onde residia. A gorda conta bancária não foi bastante para ofuscar o racismo, contra o qual ele era combatente. COMENTE » |
(ENTRE PARÊNTESES)
Quase destruída física e moralmente, Itabuna aguarda ansiosa as ações do seu novo Messias. Nunca se viu um prefeito com tantas sugestões de nomes. Seu sobrenome é Renascer, mas ele poderia, sem desdouro, chamar-se Reconstruir, Reformar, Refazer, Remontar, Recuperar, tais são as expectativas criadas. É aceitável também, Salvador da Pátria, Fada Madrinha, Salvação da Lavoura, Houdini, Magoo e, se queremos algo mais abrangente, Panaceia. Mas que não seja o Mágico de Oz, pois de impostores já andamos cheios. A frase batida (do filme O fabuloso destino de Amélie Poulain) cabe aqui: “São tempos difíceis para os sonhadores”. COMENTE » |
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EU VOLTAREI TÃO LOGO A NOITE ACABE
“Meu amor, eu não esqueço,/ não se esqueça, por favor,/ que eu voltarei depressa,/ tão logo a noite acabe,/ tão logo esse tempo passe,/para beijar você” – são versos de Para um amor no Recife, de Paulinho da Viola. A música foi feita para Dedé (Maria José Aureliano), uma professora pernambucana que hospedou Paulinho no Recife em 1971, quando ele foi lá apresentar-se durante três dias e ficou (graças à acolhida calorosa) quase um mês. No fim, Dedé chamava o cantor de filho (para isso, pedira e obtivera “autorização” da verdadeira mãe dele, no Rio). Mas Para um amor…, um grito contra a ditadura militar, esconde outra história menos “família”, menos lírica, menos divulgada. _______________
Feridas abertas e sangue derramado
Em A vida quer é coragem (do jornalista Ricardo Amaral), biografia da presidenta Dilma, surge a uruguaia Maria Cristina no capítulo intitulado “Tão logo a noite acabe”. Amaral conta que Cristina ligou-se à guerrilha no Brasil, devido à paixão que tinha pelo militante Tarzan de Castro, do PCdoB, preso em 1969, e amigo do ex-marido de Dilma, Carlos Araújo. As duas dividiram a mesma cela, em São Paulo, por oito meses. Quando a uruguaia, levada para as sessões de tortura, retornava, Dilma tratava das dores e lhe chamava a atenção para a letra de Paulinho, como uma espécie de bálsamo, ao cantar “Fechar a ferida e estancar o sangue”. Sentiam-se menos sós e desamparadas: lá fora, uma voz lírica dizia que a iniquidade não era eterna.
Um jovem carteiro encontra uma bela mulher bêbada, caída num beco, e a leva para casa. Sob o chuveiro, a inusitada visita tenta espantar a carraspana, ao tempo em que solta “a voz mais linda do mundo” e, para a palidez de espanto do jovem, sai do banheiro para a sala nuinha dos pés à cabeça. A mulher, creiam, é Billie Holiday; Chet Baker, emocionado com sua própria música, confessa que quase encerra o show antes da hora, pois “ou bem a gente toca ou bem a gente chora”: era abril de 1988, a última apresentação do trompetista; um fã sai do show de John Coltrane assoviando Naima e, sozinho na rua, ao alongar a última nota da melodia, ouve aplausos entusiasmados, curva-se em agradecimento e entra em casa, sentindo-se “um homem feliz, totalmente realizado”.
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Contos de jazz, fúria dor e alegria
São ficções do jornalista mineiro Paulo Vilara no livro Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (Artes Gráficas Formato/2011), uma preciosa coleção de oito contos, tendo por tema o jazz. Vilara é o guia de um encontro emocionante, pondo-nos cara a cara com John Coltrane, Chet Baker, Thelonious Monk, Miles Davis, Lennie Tristano, Roland Kirk, Charles Mingus e Billie Holiday (nesta ordem), em textos literários de extraordinária economia de linguagem. A tendência ao minimalismo, entretanto, não nos deixa em falta: ele se dá ao luxo de acrescentar, a cada conto, valiosas notas sobre o artista, a canção e os lugares citados. Como apêndice, a discografia básica dos oito músicos. Livro raro, para ler e ler.
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Apresentação que paga o livro inteiro
Ao ler a introdução de Paulo Vilara para Jazz! Interpretações, ocorreu-me antiga expressão repetida nas arquibancadas após um cada vez mais raro lance de futebol arte: é preciso sair do estádio, comprar outro ingresso e entrar novamente, pois aquela jogada já pagara a entrada. No caso deste livro, fica o sentimento de que as 4,5 páginas da introdução justificam o preço da obra. No todo, uma emocionante celebração do jazz, vinda de um apaixonado cultor do gênero, mas, afora gostos musicais, uma obra literária com lugar em qualquer biblioteca. Faltou dizer que o livro (com prefácio de James Gavin, biógrafo de Chet Baker) é dedicado ao maestro Moacir Santos e à cantora Alaíde Costa, homenageados por esta coluna.
Gentil leitora, presa de curiosidade, pergunta quem é Ousarme Citoaian. Esta é uma angústia metafísica que nos pressiona, mais cedo ou mais tarde. Mesmo pensando que já tinha explicado a questão, eis que não sou poupado. A dúvida é tão velha quanto o homem, mas resiste ao tempo e às explicações. Shakespeare colocou a dicotomia do ser e do não ser como eterna indagação da humanidade: ser ou não ser é, no teatro, vingar-se ou não vingar-se, matar ou não matar – e para sair dessa prisão da dúvida, precisamos nos conhecer. Parece inquestionável ser. Nós somos. Mas o que somos e quem somos é a incógnita, ou, como queria Noel Rosa, filósofo, o “x” do problema.
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O que sou: reflexo, miragem, paisagem?
Nem só em Shakespeare vislumbramos essa fragilidade humana. Outras literaturas também oferecem instigantes exemplos da aflição que nos corrói. Conta o filólogo carioca Sérgio Pachá, da Academia Brasileira de Letras (não “imortal”, mas funcionário), que Antero de Quental (1842-1891), já noite velha, foi à casa de um amigo, com quem, certamente, pretendia dividir o sofrimento metafísico de que estava possuído. Ao bater à porta e ouvir a indagação “Quem é?”, teria retrucado, do fundo de sua angústia: “E eu lá sei quem sou?!” Florbela Espanca (1894-1930), num poema, meio século depois, diz algo parecido: “Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem/ Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem…/
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“Quem cresce em saber, cresce em dor”
Sou um reflexo… um canto de paisagem/ Ou apenas cenário! Um vaivém/ Como a sorte: hoje aqui, depois além!” José Régio (1901-1969), “brinca” com o poema de Florbela, acrescentando dois tercetos em que mostra a antiga questão: procuramos o saber como forma de libertação, mas será que o conhecer nos liberta dessa dúvida existencial? Parece que não: “Sei que sou a paródia de mim mesmo/ Sei tudo… E para quê? Por que sabê-lo?/ Viver é entrar no rol dos que não o sabem”, diz José Régio a Florbela Espanca. Resta ainda que o conhecimento parece uma condenação, se aceitarmos o que está no Eclesiastes: “Aquele que cresce em saber, cresce em dor”. O espaço acabou e não respondi à leitora…
Tenderly, de 1946, está entre as canções mais gravadas do mundo, registrada por, pelo menos, 80 artistas e grupos, de nomes consagrados a desconhecidos (por mim). Cito alguns que todo ouvinte de jazz conhece, começando pelas cinco divas negras (Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Billie Holiday, Nina Simone, Carmen McRae), seguidas de Armstrong, Tony Bennett, George Benson, Ray Anthony, Chet Baker, Clifford Brown, Pat Boone, Nat King Cole, Natalie Cole, Miles Davis, Billy Eckstine, Frank Sinatra, Duke Ellington, Percy Faith, Johnny Mathis, Errol Garner, Woody Herman, Etta James, Henri Mancine, Anita O´Day, Oscar Petterson, Buddy Powell e Artie Shaw.
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História que vem da alvorada dos tempos
Trata-se de um tema pop, de que o jazz se apropriou, como tantas vezes aconteceu. A letra não faz inveja aos autores românticos brasileiros: nas preliminares, a brisa da noite acaricia as árvores e as árvores abraçam a brisa com ternura, até que, nos finalmentes, “você tomou meus lábios, você tomou meu amor tão ternamente” (You took my lips/ you took my love so tenderly). História da alvorada dos tempos, já se vê, mas que funcionou até agora – e já lá se vão 66 anos. O brasileiro Dick Farney foi quem primeiro deu voz a Tenderly (em junho de 1947), levando a canção ao topo das paradas americanas. Depois, vieram Sarah Vaughan, Nat King Cole e todo mundo.
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Sarah em estado de graça: a deusa canta
Creio que o show é de 1985, não aposto nisso. Aposto em que Sarah Vaughan (1924-1990) se encontra em absoluto estado de graça, em plena forma, alegre, fazendo caras e bocas para a plateia. Tenderly já foi cantada por ela (quase sai um trocadilho!) de várias formas diferentes, cada gravação com uma marca própria, a marca Divina Sarah (basta lembrar que este foi o primeiro sucesso da diva, em 1954). Aqui, ela “erra” o tempo da entrada e, em seguida, entra triunfalmente, com seu timbre inconfundível de diva do jazz que é. O público, é claro, se curva: uma deusa negra canta.
Já citei Dad Squarisi e o “castigo divino” que Deus lançou sobre as línguas como punição aos homens por causa da Torre de Babel: o francês ficou com uma carga de acentos, o inglês escreve de um jeito e pronuncia de outro (exemplo: a pronúncia de here, é ria!), o alemão emenda as palavras, e nós de língua portuguesa fomos punidos com o hífen. Por isso eu digo que hífen não é sinal de escrita, é cruel punição para a inocência. As coisas estavam nesse eterno “tem hífen, não tem hífen”, quando veio o Acordo Ortográfico de 2009 e embananou tudo de uma vez por todas. Na semana passada, por imposição da regra, escrevi aqui “dor de cotovelo” (assim, sem hífen), sob protesto.
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Fica complicado o que nunca foi simples
Antes do Acordo, a regra era clara. Quando dois termos se unem e perdem o sentido, mete-se entre eles um tracinho ou dois e pronto. Assim, pé de moleque é o pé do moleque, enquanto pé-de-moleque é um doce; mesa redonda é uma mesa redonda (óbvio), mesa-redonda é uma negociação, uma discussão. Seguindo esse princípio, dor de cotovelo não é o que eu quis dizer (disse-o sob pressão, pois assim mandou o livro consultado). Qualquer pessoa escolarizada sabe que dor-de-cotovelo resulta de saudades e amores descarrilhados, não de bater os braços por aí. Mas parece que estamos condenados a essa barafunda hifeniana oficializada pelo Acordo, que veio complicar o que nunca foi simples.
A Academia de Letras de Itabuna (Alita) tem entre seus símbolos um simpático pássaro outrora popular na região, hoje talvez já extinto, o guriatã. Minha surpresa foi descobrir desse bichinho uma descrição feita por um certo padre Jácome Monteiro, em 1610, há, portanto, mais de 400 anos: “É pássaro pequeno, do tamanho de um pintassilgo, preto pelas costas e por baixo amarelo, com um barrete da mesma cor, que o faz mui gracioso. É o pássaro mais músico de quantos há nesta Província, porque arremeda a todos os mais, e por isso o chamaram guiranheenguetá, que quer dizer pássaro que fala todas as línguas de todos os mais pássaros. São mui prezados. Estes são os que de ordinário se conservam cá em gaiolas”. Ao guriatã, agora imortal da Alita, mais quatro séculos de vida.
O Brasil ainda discute se dona Dilma é presidente ou presidenta – e os saudosistas não a aceitam, seja no masculino, no feminino, no neutro ou pintada de ouro sob pedrinhas de brilhantes (mas esta é outra história). Eu sempre tratei mulher no feminino: vereadora, professora, parenta, reitora – e por aí vai. Presidenta, então. A palavra existe nas línguas irmãs francês e espanhol (em italiano, desconheço, pois na língua de Dante eu só sei dizer pizza – e outra coisa que não pode ser escrita em blog familiar). Sthendal (O vermelho e o negro), Ariano Suassuna (O romance d´A pedra do Reino) usaram presidenta . O lusitano Antônio Feliciano de Castilho, também. Mas nosso tema é poeta/poetisa.
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Finalmente, mulher é poeta ou poetisa?
A história fala de uma poetisa chamada Safo, da ilha de Lesbos, na Grécia do século VII a. C. Nas últimas décadas, o Brasil passou a chamar as mulheres de poetas, transformando o que era feminino em “comum de dois”. Para os defensores de “novidades” na língua portuguesa, quem escreve “poesia de verdade” é poeta, não importa se homem, mulher ou qualquer outro sexo desses que por aí abundam. Poetisas seriam as senhoras e moçoilas que recitam seus versos bisonhos em modorrentas tardes de saraus, rimando mão com coração, ou não rimando nada com nada. Poeta escreve poesia, poetisa escreve asneiras – parece ser a regra que fixaram. Besteira pura, acho eu.
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Poetisas são “promovidas” a poeta?
Creio que em poeta/poetisa temos a sombra do preconceito: é de homem o ato de escrever poesia, de sorte que a boa poetisa tem direito ao título masculino de poeta, e a má poetisa que fique em sua primitiva condição feminina. Entendo que há bons e maus poetas, boas e más poetisas. Mas é só minha opinião. De Janete Badaró, ao entrar para a Academia de Letras de Ilhéus, Francolino Neto disse que deixou de ser poetisa, passou a poeta. Foi “promovida”, a meu ver, uma ofensa – mas o que fazer, se as próprias mulheres gostam desse jogo? Disse Cecília Meireles (foto), num poema: “Não sou alegre nem sou triste: sou poeta”. Nunca soube se Valdelice Pinheiro se achava poeta ou poetisa. Eu a chamo poetisa. E das grandes.
Tive um professor meio descuidado que, como é comum aos descuidados, volta e meia errava, falando ou escrevendo. Se, com todo respeito, lhe apontávamos o deslize, ele dava sempre a mesma explicação: errara de propósito, para verificar se seus alunos estavam atentos… Na semana passada, ao falar de “duas coisinhas”, grafei, numa pedrada homérica, “duas cozinhas”. Poderia dar várias “razões” para o episódio, mas seriam todas falsas. Foi erro mesmo (que não recebeu, estranhamente, nenhum comentário). Não há justificativa mas desculpas.
Mesmo quem não é muito ligado ao jazz, a melhor coisa do mundo, depois do uísque com água de coco (melhor ainda os dois, de braços dados), conhece o som do trompete de Louis Armstrong (foto), por ser único. Creio que é único também o trompete de Miles Davis (Chet Baker é acusado de imitá-lo). Miles Davis, o divino, é um dos meus músicos preferidos – nunca tomei conhecimento de suas experiências inovadoras do rock (um filho espúrio do jazz), mas ele é tido como essencial aos dois gêneros. Tirânico, arrogante, autodestrutivo e com indisfarçável ódio pelos brancos, Davis era um gênio que não teria lugar neste século. Não por acaso, morreu em 1991, aos 64 anos, depois de muita confusão, drogas e influência sobre imenso número de músicos.
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Sopro particularíssimo do divino Davis
Aqui, Miles Davis mostra sua leitura de Summertime, um tema de jazz que já teve todo tipo de interpretação (Armstrong, Janis Joplin, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Norah Jones, Charlie Parker, Sarah Vaughan, para citar uns poucos). A meu juízo de ouvinte não técnico, este bem-comportado registro não faz nenhuma revolução no jazz (que o músico californiano costumava incendiar). Mas é uma oportunidade, para quem não é do ramo, de tomar conhecimento do sopro particularíssimo de Miles Davis, a cujo nome costuma seguir o epíteto “o divino”.
O leitor Mohammad Padilha referiu-se aqui aos contos de humor de Tchekhov (foto), o que me motivou a uma releitura, mesmo dinâmica, de O homem no estojo (que tenho) e Um negócio fracassado (da coletânea de humor), captado no PC. O primeiro fala de um professor de grego que se agasalha, a qualquer tempo, com sobretudo de lã, galochas e guarda-chuva. Quando sobe numa carruagem, levanta a capota imediatamente e, ao dormir, mesmo em noites quentes, fica sob os cobertores, os ouvidos tapados com algodão. O presente o apavora, enquanto ao passado faz louvações exageradas, sempre a combater qualquer ideia nova. É o homem no estojo, tipo que todos nós conhecemos. Por essas e outras, Tchekhov é universal.
“DON JUAN” TUDO PERDE POR FALAR DEMAIS
Já Um negócio fracassado nos dá um Tchekhov picaresco (lado que, penso, é pouco analisado em sua obra), num texto que nos prende logo de saída: “Estou com uma terrível vontade de chorar! – começa o narrador, passando a contar como lhe escapou das mãos, num casamento, uma pequena fortuna.“Ela é jovem, linda, vai receber de dote 30 mil rublos, tem alguma cultura, e a mim, autor, ama como uma gata”, festeja o Don Juan, por antecipação. Veste-se, perfuma-se, penteia-se, impressiona a incauta. Mas quando já tinha como seus os 30 mil rubros (mais a linda moça que os acompanharia), mete-se a falar e tudo põe a perder. É de fazer chorar. Tem bom gosto, esse Mohammad com sobrenome de grande poeta.
O CONTO LIBERTO LEVITA FEITO ASA-DELTA
Diz o crítico Hélio Pólvora, em Itinerários do conto (Editus-Uesc/2002), que Tchekhov “libertou o conto de um pesado arcabouço clássico, enchendo-o de oxigênio puro e fazendo-o levitar como asa-delta”. Itinerários… deve ser adotado como livro de cabeceira pelos que se propõem a apreender os mecanismos do conto e/ou ter uma visão dos nomes capitais da literatura mundial: lá estão (fora Tchekhov) de Maupassant a Poe, de Machado de Assis a Mark Twain, de Sartre a Adonias Filho, Marquês de Sade, Eduardo Portela, Proust, Ricardo Ramos, Ariano Suassuna, Joyce, Álvaro Lins, Jorge Amado – mais de 250 autores. Curiosamente, Tchekhov é o campeão de citações de todo o livro, com 22 referências.
Na escola, em tempos idos, todos nos sentíamos mais ou menos molestados (olha a aliteração aí, gente!) com a insistência dos professores em nos enfiar análise sintática cabeça adentro. Ah, as orações… coordenadas e subordinadas, sindéticas e assindéticas, partidas e sem sujeito, adjetivas, adverbiais, reduzidas, substantivas e outras – parece mesmo um exagero. Programa para quem almeja a especialização, privilégio de poucos. Mas tenho como indispensável apreender o sentido de sujeito, predicado e objeto (mais uma pitada de regência e concordância). Com isso, já se pode fazer muito jornalismo e até um pouco de literatura, sim senhor.
MONSTRENGO QUE AGRIDE OLHOS E OUVIDOS
A reflexão me surge quando leio, em importante jornal de Salvador, este título, totalmente (ou deveria dizer “sintaticamente”) equivocado: Julgamento de padres pedófilos finaliza dia 22. Gramáticos encontrariam nesta construção material suficiente para uma conferência magna. Mesmo quem não tem engenho e arte para dissecar o monstrengo, nota que sua desnecessária complexidade agride nossos olhos e ouvidos: “Julgamento de padres pedófilos”, ao mesmo tempo, finaliza e é finalizado, pois é resposta às perguntas “quem finaliza?” (sujeito) e “o que finaliza?” (objeto). Dessa mistura incomum saiu um resultado, no mínimo, insalubre.
JULGAMENTO NÃO FINALIZA, É FINALIZADO
Melhor para todos é escancarar o sujeito, tirá-lo da sombra. Com “Tribunal finaliza julgamento de padres…” estaria tudo resolvido. Colho na grande mídia (para não fatigar os leitores) apenas cinco abonos da construção que defendo neste caso: 1) Supremo finaliza julgamento sobre Raposa Serra do Sol; 2) Elenco do Flamengo finaliza atividade física; 3) Petrobras finaliza plano de investimento; 4) MEC finaliza plano de educação com meta de 7% do PIB; 5) Supremo finaliza julgamento de Battisti. “Julgamento” não finaliza, é finalizado; sofre a ação, não a pratica; não é elemento principal, mas acessório; logo, não é sujeito, é complemento.
Ari Vasconcelos, no Panorama da Música Popular Brasileira, diz que se tivesse espaço para apenas um nome que representasse a MPB escreveria “Pixinguinha”. Pode ser, pode ser. Músicos fazem música, letristas fazem letras, políticos fazem discurso. É a lei natural das coisas. Da mesma forma, bananeira não dá laranja e coqueiro não dá caju – segundo Braguinha, na marcha Bananeira não dá laranja/1953. Como as demais regras, esta comporta exceções, e uma das mais notáveis é Tom Jobim. O maestro, à primeira vista exclusivamente músico, era também um letrista excepcional. Enfim, resta dizer que Panorama… foi publicado em 1964 – e Tom ainda faria, pelo menos, dez clássicos.
BAIANA COM CESTO DE FRUTAS NA CABEÇA
Tom é um dos pais da Bossa Nova. E esta abriu as portas do mundo para a MPB, livrando-nos daquele estereótipo ridículo criado para Carmem Miranda (a baiana que usava na cabeça algo parecido com um cesto de frutas tropicais). E influenciou o jazz, para sempre. É lembrar que Tom Jobim foi gravado por Ella Fitzgerald, Stan Getz, Anita O´Day, Sarah Vaughan, Joe Henderson, Miles Davis, Chet Baker – para citar apenas algumas feras desse gênero. E gravou com Frank Sinatra, o que não é pouco. Lobão disse, dentre outras do seu latifúndio de polêmicas, que a Bossa Nova é uma linguagem morta. Ofensa das pequenas, para quem já condenara as vozes que “crucificam os torturadores que arrancaram umas unhazinhas”.
ROCK BRASILEIRO É APENAS CONTRAFAÇÃO
Não tenho simpatia pelo rock, filho bastardo do jazz. E falo do rock norte-americano, pois rock brasileiro não passa de contrafação – no sentido anotado no Michaelis: “Imitação fraudulenta de um produto industrial ou de uma obra de arte”. Ainda assim, gosto de uma coisa ou outra de Raul Seixas, do pioneirismo do Camisa de Vênus, de Tia Rita Lee e do Skank (penso que Chico Amaral é muito bom letrista). E porque falávamos de Tom Jobim, vamos a uma de suas melodias mais importantes, O amor em paz. Para ela, Vinícius escreveu “O amor é a coisa mais triste, quando se desfaz”. E não é mesmo? Aqui, com o pungente sax tenor de Joe Henderson, com músicos brasileiros.
“Carro despenca de barranco na Califórnia” – diz uma manchete do Pimenta, em edição recente. E eu festejo a construção da frase, pois ela vai de encontro a uma tendência de chamar aquele bairro de o Califórnia, assim como certas pessoas têm coragem de escrever o Fátima. Eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira, que não pode ser, mas já li o texto de um redator (aliás, redatora, o que vai deixar mais alegre os guerreiros da igualdade gramatical) em que o Instituto Nossa Senhora da Piedade era tratado como o Piedade! É uma escrita novidadeira, elitista, que nada tem a ver com a evolução da língua, pois não nasce no povo, mas nas redações, com gente mal informada.
AGRESSÃO À ESPONTANEIDADE DAS RUAS
Quem já teve contato com o falar espontâneo das ruas, praticado pelas camadas mais simples da população, aquelas que se valem do nosso precaríssimo transporte urbano (para se ter um metro comparativo), sabe que nenhum indivíduo temente a Deus chamaria a Califórnia de o Califórnia. “A Califórnia está com as ruas esburacadas”, denuncia o crítico; “O ônibus da Califórnia já passou?”, pergunta o distraído. Quanto a o Piedade, é sandice estratosférica. Há anos e anos fala-se em ir à Piedade, estudar na Piedade, as irmãs (ursulinas) da Piedade e outras coisas. A propósito, o jornalista Maurício Maron foi o primeiro homem que teve a matrícula aceita pela Piedade (até então, o instituto era exclusivamente feminino).
Na edição passada, parece que no frenesi de criticar a prosódia de haicai, esqueci-me do principal: a referência a esse tipo de poesia – ainda que a voo de pássaro, como costumamos tratar os assuntos. Vá lá: o haicai é um poema de origem japonesa, sóbrio e minimalista, formado por três versos, respectivamente de cinco, sete e cinco sílabas poéticas. Comparando com o soneto, como este tem 14 versos (em geral de dez ou doze sílabas), nele caberiam, sem superpopulação, quatro haicais e meio. O exercício consiste exatamente em aprisionar em tão poucas palavras uma mensagem, em geral profunda, que nos faz pensar. Creio que, ao ler um (bom) haicai, sofremos um abalo íntimo.
MODELO QUE VEM DO SÉCULO XVII
Há quem o adote sem rimas (primeiro e terceiro versos), como um dos desbravadores do gênero no Brasil, Afrânio Peixoto (nasceu em Lençois e morou em Canavieiras). Eu os prefiro rimados, à moda de Guilherme de Almeida, mas minha opinião vale muito pouco. Na origem do haicai está o poeta Bashô, no século XVII, para quem o poema era uma prática espiritual, ligada ao zen-budismo. Na região, há haicaístas bissextos e pelo menos um que cultuou o gênero como principal manifestação artística. Entre os primeiros estão Gil Nunesmaia e Cyro de Mattos (de Itabuna) e Paulo Lopes (de Ilhéus). Mas o grande “profissional” entre nós é o ilheense Abel Pereira (1908-2006).
“GEMAS RARAS DA POESIA ORIENTAL”
Abel, com Colheita, de 1957, foi (simplesmente) o terceiro autor brasileiro a publicar livro de haicais, seguindo-se ao também baiano Oldegar Vieira e ao carioca Osório Dutra. A acolhida foi entusiástica, por parte de Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Abigar Renault, Octávio de Faria, Ledo Ivo e o português Fernando Namora, dentre outros. Malba Tahan destacou que “nas páginas de Colheita cintilam as gemas raras da poesia oriental”, e Francisco de Assis Barbosa, da Academia Brasileira de Letras, sentenciou: “Ninguém pode disputar a primazia da arte de composição de haicais ao baiano Abel Pereira”. O poeta publicou ainda Poesia até ontem, Mármore partido e Haicais vagaluminosos.
Baco adora quando desço a praça Adami, caminho do Elite BarLá (no Bar de Emetério), busco o mornocanto, próximo às mesas de sinuca;observo os jogadores do apostado,os azes das tacadas. O maior,Zito Maleiro, já tuberculoso,captura a solidão da bola-sete:o infinito resvala sobre o verdeespaço de luz acabando o jogo (…)– Sorvo o vinho do Porto, calmamente.Atento o ouvido para o andar de cima,ouço o ruído abafado da roleta,na sensação das coisas clandestinas.Chegaram os amigos. Planejamoso que faremos no frescor da noite.Saímos. Vamos pela rua da Lama,em direção à zona, ao bar de Juca (…).
DOMÍNIO DE METÁFORAS E IMAGENS
Florisvaldo Mattos (foto)evoca no poema “Itabuna, 1950” (ilustrado por quadro de Walter Moreira) um tempo ido e vivido na cidade hoje centenária. O texto é de A caligrafia do soluço & poesia anterior, de 1996. Nesse livro, o poeta é saudado por João Carlos Teixeira Gomes como num autor de completo domínio das estruturas formais e da construção rigorosa, “que refletem a eficácia da sua linguagem poética, plena de poderosas metáforas e imagens dinâmicas”. Além da literatura, Forisvaldo, nascido em Uruçuca (Água Preta do Mocambo, 1932), milita no jornalismo, tendo começado as duas atividades na região cacaueira, com trabalhos publicados em A voz de Itabunae no Diário da Tarde, de Ilhéus.
Um site encontrado ao acaso me lembra de umas curiosidades sobre escritores e me informa de outras, que eu não conhecia. Ei-las, para quem gosta de detalhes da vida alheia: Goethe escrevia de pé, para isso mantendo em sua casa uma escrivaninha alta; Pedro Nava (foto), o memorialista mineiro, parafusava sua mesa, para que ninguém a tirasse do lugar; Gilberto Freyre não se dava bem com aparelhos eletrônicos – dizem que não sabia sequer ligar a televisão; Euclides da Cunha levou três anos construindo uma ponte em São José do Rio Pardo (SP), e a ponte ruiu, alguns meses depois de inaugurada. Ele a refez e, por via das dúvidas, abandonou a carreira de engenheiro.
GRACILIANO RAMOS E O LIVRO DE CABECEIRA
Machado de Assis (pobre, mulato, gago, míope, epiléptico e gênio), quando escrevia Memórias póstumas de Brás Cubas teve uma crise intestinal, complicando sua visão (que já não era boa). Sem poder ler nem escrever, ele ditou grande parte do romance para sua mulher, Carolina. Graciliano Ramos, comunista e ateu, tinha na Bíblia uma de suas leituras favoritas, para observar os ensinamentos e os elementos de retórica ali contidos. Carlos Drummond (foto) tinha, entre outras manias, a de picotar papel e tecidos. Certa vez, estraçalhou uma camisa nova em folha do neto, tendo de comprar outra. “Se não fizer isso, saio matando gente pela rua”, disse, com um sorriso.
UM LONGO SILÊNCIO DE PAI E FILHO
Érico Veríssimo era quase tão introspectivo quanto o filho Luís Fernando, também escritor. Numa viagem de trem a Cruz Alta, Érico fez uma pergunta que Luis Fernando respondeu quatro horas depois, quando chegavam à estação. Monteiro Lobato adorava café com farinha de milho e tanajura torrada (argh!). Manuel Bandeira (foto) contava que teve um encontro com Machado de Assis, aos dez anos, numa viagem de trem. Puxou conversa e ouviu que Machado gostava de Camões. Bandeira recitou uma oitava de Os Lusíadas que o mestre não lembrava. Na velhice, confessou: era mentira. Tinha inventado aquela história para impressionar os amigos. |Comente »
A CANÇÃO COM 38 INTERPRETAÇÕES
“Summertime” é um clássico do jazz que nasceu na ópera Porgy and Bess (os dois personagens principais do libreto de Ira Gershwin, sobre texto original de DuBose Heyward). Não falo da peça de trajetória polêmica, mas da curiosidade do confronto entre o canto erudito e jazzístico na mesma canção. O tema é pouco encontrado como peça “erudita”, ao contrário de sua versão jazz ou pop. Conheço gravações de Janis Joplin, Ella Fitzgerald, Armstrong, Sarah Vaughan, Frank Sinatra e outras. Soube que há também um registro de Cazuza (foto), mas nunca o ouvi. Críticos falam que o mercado dispõe de 38 gravações diferentes de “Summertime”.
ENCONTRO DO JAZZ COM O “ERUDITO”
Pouco afeito ao “erudito”, só agora descobri a versão de Charlotte Church para “Summertime”. Eu não sabia que a jovem soprano inglesa esteve na trilha sonora de Terra Nostra (possuo até uma gravação de “Tormento d´amore”, dela com o brasileiro Agnaldo Rayol, que, parece-me, é cantada na novela). Desculpem minha ignorância, mas eu não vejo telenovelas, nem sob tortura – daí não saber se “Summertime” fez parte da trilha. Vamos aproveitar para comparar duas das muitas leituras dessa famosa canção, nas vozes de Charlotte Church e Sarah Vaughan (uma de cada vez!), sem que eu me dê ao trabalho de declinar minha preferência.
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A SOPRANO QUE GOSTA DE ROCK
Aos noveleiros, o que talvez seja uma curiosidade: Charlotte Church (foto), com todo seu vozeirão, é uma (linda) moça de 24 anos, que canta desde os 11. É “normal” para sua idade: gosta de Alanis Morissette, Madonna, Marcv Anthony, Lauryn Hill e outros desconhecidos para mim, sem a veneração ao repertório “sério”, que se poderia supor. “Raramente ouço música clássica, gosto mesmo é de rock”, diz ela, para minha surpresa – e explica que canta clássico devido a seu timbre de voz. Charlotte se descobriu por acaso, quando foi convidada, a participar de um programa de auditório, no País de Gales, onde nasceu e vive. Bombou, é claro. Já se apresentou até numa festa de Natal do Vaticano, sob João Paulo II, em 1998. Se lhe apraz, veja/ouça as duas versões de “Summertime”.
Visitante assíduo de Ousarme Citoaian, do Universo Paralelo, li comentário de Frank Sinatra afirmando que não gostava de My way “porque a letra é muito gabola e eu não gosto de falta de modéstia”. Em verdade e em verdade vos digo, meu caro Ousarme: My way é o retrato cantado do arrogante e prepotente Sinatra. Chequei há muito tempo a esta conclusão baseado em alguns fatos.
Por exemplo, o autor da composição, o canadense Paul Anka em DVD gravado durante um show, declarou após cantá-la: “Sinatra me ligou e disse, ‘soube que você fez músicas e as distribuiu para Tom Jones, Angle Burton, Humphrey Dirk ,Andy Wiliams. Quero que escreva um sucesso’”. E o compositor ironiza: “pessoal, quando Sinatra pede é melhor você escrever um sucesso senão um homem vai aparecer com uma cabeça de cavalo embaixo do braço”.
Paul Anka se refere à história de um cavalo de corrida do chefe da Columbia, Harry Cohn, que teve a cabeça decepada a mando da máfia, numa punição ao veto de Sinatra ao filme “From Here To Eternity”. Conh entendeu o recado e imediatamente escalou o ator. O fato é retratado no filme “O Poderoso Chefão”, baseado no livro de Mário Puzo, a quem o cantor nunca perdoou. Na obra, Frank Sinatra leva o nome de Johnny Fontane.
Numa outra cena Michael Corlene, filho do poderoso chefão, conta à namorada que o pai fez um favor para Johnny .Ele queria sair da banda de Tommy Dorsey, antes do final do contrato, e por ter recusado o maestro recebeu a visita de um integrante da “família” que encostou o cano do revólver na sua cabeça e advertiu: “ sua assinatura ou seus miolos estarão no contrato em um minuto.” Ao terminar o relato, Michael fala que “é uma história real, Kay” .
Preconceituoso, quando os travestis adotaram como hino a música Strangers in The Night (Estranhos na Noite), ele a excluiu do repertório.
O cantor se relacionava com os chefões Luck Luciano e Sam Giancana. Segundo o comediante Jerry Lewis, Frank passou a ser mula da máfia e chegou a ser flagrado, numa viagem de volta no aeroporto de Nova York, transportando uma mala com US$ 3,5milhões. Escapou porque a multidão de fãs se acotovelando levou o fiscal a desistir da revista.
Foi Sinatra quem levou a Giancana pedido do velho Kennedy para o chefão influenciar no resultado das eleições em 1960. E prova maior do seu real estilo é quando se casa com Mia Farrow. Ela fez queixas do ex, Woody Allen, e o ator perguntou: “quer que eu mande quebrar as pernas dele?” Preconceituoso, quando os travestis adotaram como hino a música Strangers in The Night (Estranhos na Noite), ele a excluiu do repertório. Nunca mais cantou.
Quanto à My way, alguns traduzem como “Minha Caminhada”, outros “Meu jeito”. “I did it my way” (fiz do meu jeito) expressão tipicamente mafiosa, fala da trajetória de uma pessoa no final da vida. No caso de Sinatra poderia ser intitulada minha vida pregressa. Já Comme d’habitude, (Como de costume), que deu origem a My way, fala sobre o cotidiano de um casal de pouca criatividade, que teve o ardor da paixão apagado pelo tempo. Prefiro My way.
O leitor Ferraz tem razão, Mia foi casada com Sinatra de 1966 até 1968.Depois casou-se com André Previn em 1970 e separou-se em 79. Com Woody Allen casou-se em 1983 e separaram-se em 1997 porque o ator começou a ter um caso com a filha adotiva de Mia e Previn. Foi aí que procurou Sinatra para se queixar e recebeu a proposta de punição contra o ator. Obrigado Ferraz pela contribuição.
O Universo Paralelo desta semana deplora que um dos maiores tiranos da história do Brasil, ícone da repressão nos anos 70 (o general Garrastazu Médici), seja nome de escola em Itabuna. Há quem veja exemplo parecido lá no DCE da Uesc. Mas aí já é “coisa de reaça”, segundo define um leitor que preferiu o e-mail para expressar a opinião. Ousarme Citoaian levantou a bola e os leitores estão “descendo o malho” na escolha de péssimo gosto dos nossos ‘dirigentes’.
Ousarme também relembra alguns termos de inesquecível sabor da língua “brasileira”, com o auxílio de autores como Euclides Neto e Adylson Machado. Uma dessas expressões é “do tempo em que candeeiro dava choque”, criada pelos alagoanos e abrigada no Dicionário do Nordeste, do jornalista pernambucano Fred Navarro. E o colunista ainda escolheu (“para não dizer que não falei de flores”) uma das canções mais famosas do repertório de Frank Sinatra. Na voz de A voz, é claro.
Em jornal e revista (a dita mídia impressa), o texto fala por si, enquanto a foto é fundamental como ajuda. Por isso disseram por aí que quando o mundo se acabar será necessário um jornalista para dar a notícia. Sobrando fotógrafo, melhor ainda. Se o the end da “civilização cacaueira” chegou mesmo, montado na vassoura-de-bruxa, há controvérsia – alimentada pelos laboratórios, que tentam parir cacaueiros resistentes à doença. Enquanto isso, Daniel Thame (foto), pelo sim, pelo não, apresenta-se como o cronista que o assunto exige. Seu Vassoura (Via Litterarum) está na praça, para agitar, provocar e cutucar cérebros anestesiados. Só o bom texto nos redime.
COMBINAÇÃO DE MITO E REALIDADE
O livro, com 23 histórias curtas (média de 2,5 páginas), situa-se, conforme destaca o editor Agenor Gasparetto, no lugar que separa os gêneros crônica e conto, classificação que, de resto, não deve tirar o sono de ninguém. Fiquemos com Mário de Andrade, que simplificou a questão: “Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto”. Ou então, que se reconheça em Vassoura as duas facetas: na medida em que registra fatos, seria crônica histórica; já a parte com pitadas (melhor dizendo, generosas porções) de ficção, identificaríamos como conto, pois o livro é, claramente, essa combinação de realidade vivida e mito imaginado.
A ESPERANÇA AINDA ESTÁ VIVA
Daniel Thame introduz a vassoura-de-bruxa na literatura regional, e o faz com textos bem escritos, de feitura concisa e leitura agradável, sem descambar para o mero entretenimento. Ao contrário, sua ficção (surpreendente em alguém forjado no factual das redações) convida a pensar – talvez a mais nobre função da literatura. Se alguém achar que ele pesa no dramático, no humor negro ou na tragédia de seus anti-heróis, poderá estar certo. De minha parte, sinto nesse Vassoura um produto perpassado pela sensibilidade do autor, animal político aristotélico, que, sem disfarce no olhar de compaixão com nossa gente, nos diz que a esperança ainda resiste.
“Em sociedade, tudo se sabe” era um bordão do colunista social Ibrahim Sued (1924-1995). Pois, em conversa, fico sabendo que Itabuna possui uma escola chamada Garrastazu Médici (foto). E me ponho a pensar como a sociedade se curva aos interesses do poder, desdenhando sua própria dignidade. A escola, apesar de não estar poupada nestes tempos de violência, é um lugar sagrado. Sua identificação há de ser alvo de respeito, reverência e orgulho para a comunidade que ela se insere. Nomeia-se uma escola com pessoas que representaram bons exemplos a seguir.
ESCOLA FERNANDINHO BEIRA-MAR
“Eu estudo na escola Anísio Teixeira”; “Eu, na Paulo Freire”; “E eu sou do colégio Eusínio Lavigne” – seria uma conversa esperada entre estudantes que se orgulham dos seus “patronos”. Já “Centro Educacional Jack, o estripador” ou “Escola Fernandinho Beira-Mar” seriam batismos infelizes. Então, por que coube a Itabuna a “honra” de ter um lugar (sagrado, repita-se) com o nome de tal indivíduo? Submeter presos políticos a tortura, com choque elétricos e pau-de-arara (o que o general não fez pessoalmente, mas aprovou) não é pré-requisito para homenagem. Ao contrário.
NÃO QUEREMOS ABRIGAR A DESONRA
Ainda tenho esperanças de que fui mal informado, e que o sanguinário ditador dos anos setenta não identifica nenhuma escola entre nós. Mas, se abrigamos tal desonra, é tempo de professores, autoridades municipais e a comunidade em geral se levantarem num movimento que defenda a honra e a “limpeza” do nobre espaço de formação. É um crime coletivo permitirmos que esses jovens, mais tarde, se envergonhem de mencionar o nome da escola onde estudaram. E estarão certos, pois o lugar do general Garrastazu Médici não é a educação, mas a lata de lixo da história.
Penso haver dito neste espaço que as palavras nascem, vivem e morrem. Mesmo que tal afirmação me tenha dado alguma sobrevida com a CLMH (Comunidade dos Linguistas Mal Humorados), preciso pedir perdão pela bobagem. Fui mal. As palavras só morrem se nós, que com elas lutamos mal rompe a manhã (na feliz expressão do poeta), assim o desejarmos. Digamos que os sem sensibilidade as condenam ao sono quase eterno, à forçada hibernação, à troca por neologismos ainda recendentes a vinho novo. As palavras apenas se cansam e tiram férias compulsórias, até que sejam outra vez trazidas à lida.
RECUPERAÇÃO DO BRILHO ANTIGO
João Guimarães Rosa não me deixa mentir. O autor de Sagarana “acordou” centenas de vocábulos que a língua portuguesa pensava ter abolido. Muitos tão “mortos” estavam que não são encontrados em nenhum dicionário em moda no fim dos anos 50 (quando foi publicado Grande sertão: veredas). Alguns termos até foram, apressadamente, dados como “inventados” por JGR – quando uma análise menos perfunctória mostra que ele os recolheu, nas conversas com o povo nos sertões das geraes ou mesmo em textos antigos. O escritor tirou-lhes a poeira, restituiu-lhes o brilho anterior.
DO MANDU À MADRINHA DA TROPA
A beleza de algumas formas ditas arcaicas de nos expressarmos justifica sua ressurreição. O escritor Adylson Machado (Amendoeiras de outono/Via Litterarum) recuperou, dentre várias palavras e expressões curiosas, “mais enfeitado que madrinha de tropa” (referência à mula que “comandava” a tropa, cheia de guizos e enfeites), “mandu” (encrenca, problema, gente ruim, inconveniente) e “abistunta” (forma aleatória de acertar o preço de mercadorias de valores variados). Se esses termos não têm sido usados, isto não quer dizer que estejam mortos. Apenas dormem, à espera de quem os desperte.
SUJEITO CHEIO DE NÓS PELAS COSTAS
Os alagoanos designam uma coisa muito velha com a deliciosa expressão “do tempo em que candeeiro dava choque” (Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro). Aqui na terra do mandu e da abistunta, um sujeito arrogante é dito cheio de nove horas, metido a sebo, cheio de nós pelas costas, podendo meter-se em camisa de onze varas num arranca-rabo, se acaso não tiver as costas quentes. Os pobres vestem roupa porta-de-loja, comem sobe-e-desce (às vezes, com o pão que o diabo amassou) e carregam seus poucos pertences num panacum. Ou bocapiu. Que, aliás, inexplicavelmente, não consta do Dicionareco das roças de cacau e arredores, de Euclides Neto.
Peças que a ignorância me prega. Só há poucos anos fiquei sabendo que uma das canções mais “americanas”, gravação famosa de Frank Sinatra, é… francesa. Trata-se de My way, que ao nascer chamava-se Comme d´habitude(de Thibault, Revaux e Claude François). Paul Anka (foto) comprou os direitos autorais da música, fez a versão para o inglês (dando-lhe o título de My way), em 1967, e a mostrou a Frank Sinatra.The Voice fez a gravação dois dias depois e prosseguiu cantando esse tema, quase obrigatório nos seus shows. No Maracanã, cantou My way para o maior público de sua carreira, 175 mil pessoas (o show entrou para o Guiness).
ALGUÉM JÁ OUVIU COMME D´HABITUDE?
O modelo “canção-francesa-que-vira-americana” já foi referido aqui, com Les feulles mortes, mas não é a mesma coisa. Todo mundo conhece Les feuilles (ou Autunm leaves). Mas você já ouviu Comme d´habitude? Eu também não. A propósito, quem tiver essa música reclame na redação do Pimenta o prêmio a que faz jus (a coletânea O melhor do arrocha, com a faixa bônus “Rebolation”, na voz do Mano Cae). O mais interessante é que Frank Sinatra, após anos e anos cantando My way, revelou que não gostava dessa letra. Disse que quando a cantava se sentia “um gabola” diante da platéia, coisa que detestava.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as
UMA ENORME CARGA DE GABOLICE
De outra vez, acentuou, sobre o assunto: “Eu odeio falta de modéstia, e é assim que eu me sinto com esta música”. A letra não é grande coisa: os americanos são bons melodistas, mas, para nossa sorte, Vinícius (foto), Chico Buarque, Caetano, Paulo César Pinheiro, Humberto Teixeira, Gilberto Gil, Noel Rosa e outros grandes letristas nasceram no Brasil. Mas bem olhada, My way revela enorme carga de arrogância, mostrando o cantor como todo-poderoso, acima dos mortais, dando a Sinatra razão para se sentir incomodado. É um hino ao cabotinismo, com som de caixa registradora: inesgotável fonte de renda para ele e, mais ainda, para Paul Anka.
“MAIOR CANTOR POPULAR DO MUNDO”
No vídeo será possível conferir essa opinião sobre o pedantismo da letra de My Way e identificar muita gente famosa, incluindo Dean Martin e Sammy Davis Jr. (na foto, nesta ordem, com Sinatra), amigos inseparáveis do artista. E também será fácil saber por que uma legião de críticos e fãs apontava Francis Albert Sinatra como o maior cantor popular do mundo.
Professora de língua portuguesa e latim da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), experiente em corrigir redações do Vestibular (e de quem não declino o nome por não estar autorizado a fazê-lo) explicou-me um dos problemas mais freqüentes em seu trabalho: “O candidato quer escrever uma coisa e escreve outra”. Ótimo resumo. Penso que o fenômeno também ocorre na linguagem oral: às vezes, queremos dizer uma coisa e o que chega ao interlocutor é diverso do nosso pensamento. Já falamos do assunto nesta coluna, e o explicamos com um dito do falar brasileiro muito saboroso: “quem não sabe rezar, xinga Deus”.
“VOU ACABAR COM OS ANALFABETOS”
Há tempos, um candidato a prefeito de Itabuna, famoso por traumatizar a gramática portuguesa e os cofres públicos, disse num programa de rádio que, se fosse eleito, iria “acabar com os analfabetos”. Mesmo que o ilustre representante do povo não tenha minha simpatia, nunca o imaginei dono de crueldade tamanha, capaz de, em tal sanha analfabeticida, matar tantos itabunenses – afinal, a Bahia é campeã nessa modalidade e Itabuna, por certo, dá grande contribuição à conquista. Quer dizer: eu entendi que ele queria, patrioticamente, “acabar com o analfabetismo”. Mas nem por isso, como querem certos lingüistas, a formulação dele há de ser aceita..
COMUNICAÇÃO POR SINAIS DE FUMAÇA
Uma reportagem da TV Record, em Salvador, colheu interessante depoimento de uma senhora, a propósito de ações do governo. “Diante da violência que nós veve…”, preambulou a soteropolitana – e, para o caso, não interessa o resto da fala. Achei ótimo, mesmo que isto espante os leitores desta coluna tida como ranheta em questões de língua portuguesa. Neste caso, pode. O que não pode é o Fórum de Itabuna, tocado por gente muito estudada, produzir e autorizar a divulgação de um anúncio como o da foto ao lado (O. C. clicou). Ao povão que não foi à escola é válido comunicar-se até por sinais de fumaça; das autoridades, com responsabilidade na formação do público, não. E a crase não humilha ninguém.
ALFABETIZADOS SEGUEM DONA NORMA
Ouvi dizer que sou “formal”. Surpresa. Por não ter estudos específicos, ignorava essa divisão entre linguistas e “formais”. Sei é que, mesmo sem consulta, me puseram na escola, onde gastei esforço e dinheiros público e da comunidade, via CNEC (Google, urgente!). Queimei as pestanas para aprender a dizer “Nós vamos”, em vez de “Nóis vai”, como era minha natural inclinação – e agora me vêm dizer que “tudo está certo”. Não está. Quem não foi à escola do professor Chalub, que fale como puder, com nosso respeito. Mas os alfabetizados – e jornalistas, até prova em contrário, o são – têm que seguir a norma culta. Eu sigo, também, a vizinha do 6º andar, inculta mas bela.
DA ARTE DE ESCREVER BEM
Antônio Naud Júnior (foto) é, sem questionamentos, o mais profícuo dos produtores literários da nova geração grapiúna. Leu, viveu, sofreu, acumulou experiências, escreveu e, sobretudo, andou. É um andarilho, inquieto, envolvido ao mesmo tempo com variadas atividades. Sua principal área de interesse, pode-se dizer, são todas: prosa, poesia, teatro, cinema, televisão e gente. Lê tudo, sem preconceitos. Discorre, com igual paixão, sobre o mais novo romance nas livrarias, a trama da novela das oito e um recém-lançado blog de poesia. O poeta Vicente Franz Cecim o chamou de “cigano incorrigível por vocação luminosa ou oculto fado”. Disse-o bem.
ACORRENTADO AO SILÊNCIO
Se um viajante numa Espanha de Lorca (um diário de viagem pela Europa, publicado em 2005) é seu trabalho mais pessoal, no sentido de mostrar-se em inteira sensibilidade de homem dilacerado. Porém é corajoso o bastante para adentrar os esconderijos, truques e subterfúgios deste mundo, traduzindo-os, poeticamente, para nós sedentários. Quem se propõe a tarefa de ler o mundo há de, primeiro, ler-se a si próprio. Mas qual de nós se lê com clareza? “Sou tantos. Há um Antônio poético e aventureiro errante, um Antônio porra-louca e pessimista, um Antônio disposto a saltar no vazio sem paraquedas, outro obcecado pelo amor. Há ainda um Antônio espiritualizado e acorrentado ao silêncio…”. As contradições de todos nós.
UM CÉU DE MUITO POUCO AZUL
Antônio Júnior, na Europa, descreve a solidão angustiante que nos esmaga nas grandes metrópoles: “Estar em Madrid (foto) é como estar em Londres, o peso do cinzento, do vazio interior, o ar asfixiante e pegajoso, o céu que só muito raramente mostra a cor azul, as estrelas que mais parecem imitação de péssima qualidade (…). Como não conheço ninguém e ninguém me conhece, é quase como não existir. Sou um estranho numa grande cidade, flechado por uma sensação assustadora de saber que posso cair duro no meio da rua e nem uma só alma local notará minha ausência” – obra citada.
INCITATUS, O SENADOR BIÔNICO
Sem propósito ou objetivo eis-me posto a lembrar de cavalos famosos, saídos de antigas leituras. Rocinante, esquelético feito o dono, era o cavalo de Dom Quixote (foto); Heroi, do Fantasma (que tinha também um cachorro, Capeto); Silver era o lépido cavalo do Zorro; John Wayne, em O último pistoleiro, montou Dólar; Incitatus, cavalo de Calígula, foi o primeiro senador biônico de que se tem notícia. Com a ditadura militar, ressuscitou-se o modelo no Brasil (mas aqui nomearam, além de cavalos, burros); Dr. Robledo montava um sonolento pangaré, que em algumas histórias teve esse nome: Pangaré. Justiceiro, no bom sentido do termo, o pacato médico virava o Cavaleiro Negro, enquanto Pangaré se transformava no fogoso Satã.
NAPOLEÃO E SEU CAVALO BRANCO
Muito famoso é o cavalo de Napoleão, embora ele tivesse vários. “Qual a cor do cavalo branco de Napoleão?” – diz a velha “pegadinha” (se você acertar, ganha o CD O melhor do arrocha, incluindo uma faixa-bônus com Caetano Veloso cantando Rebolation). O nome do principal cavalo de Napoleão era Vizir, um árabe, presente do sultão do Egito. Reza a lenda que Vizir (na gravura) levou o velho Bonaparte de Paris a Moscou em 1812 e, na grande retirada, com 60 graus abaixo de zero, trouxe seu dono de volta, são e salvo. Depois de morto, foi empalhado e, nessa condição, encontra-se no Museu do Exército, em Paris. São cavalos muito importantes, mas nenhum deles ganhou o Oscar da Academia.
PANGARÉ “GANHA” METADE DO OSCAR
O cavalo mais vitorioso do cinema não recebeu a divulgação merecida. Foi um anônimo montado por Lee Marvin, em Dívida de sangue, de Elliot Silverstein. Marvin faz um pistoleiro pé-de-cana (Kid Sheleen), montando um cavalo igualmente bêbado (foto). Ao ganhar o Oscar como melhor ator de 1965, Lee Marvin, chegado a um copo, fez um discurso inusitado: disse que passara a vida toda “treinando” para ser um beberrão nas telas; e que metade do prêmio deveria ser dado ao cavalo do filme. É um dos meus (muitos) faroestes preferidos. Engraçado e diferente, tem Jane, a rebelde filha de Henry Fonda na plena forma dos seus 28 aninhos – além da criativa trilha sonora (“ao vivo”) de Nat King Cole e Stubby Kaye (A balada de Cat Ballou).
O MAIOR DOS NOSSOS COMPOSITORES
“Ora – direis – Tom Jobim é muito citado nesta coluna”. E eu vos direi no entanto que, a meu juízo, ele aparece até pouco. Tenho dúvidas sobre se nosso país de tão parco reconhecimento a seus valores intelectuais tem consciência da importância de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim para a MPB. E embora não seja neste espaço que se corrigirá tal injustiça, algo precisa ser dito: para começar, que Tom Jobim é o maior dos nossos compositores modernos, com uma produção imensa em que (não pude conhecê-la toda, é verdade) nunca encontrei nada que não fosse de alto nível. A produção de Tom Jobim é horizontal, no melhor sentido que possa ter a palavra.
NENHUM MÚSICO TEVE TANTO PRESTÍGIO
Foi ele, não Carmen Miranda, conforme se apregoa por aí, quem abriu as portas do mercado mundial (a partir dos Estados Unidos, é claro) para o canto brasileiro. Tom Jobim “invadiu” o jazz, ensinou Frank Sinatra a cantar música brasileira, mostrou a Gerry Mulligan como emitir no sax uns acordes de Samba de uma nota só (isto tudo circula na internet). Foi gravado, além de Sinatra e Mulligan, por Ella Fitzgerald, Stan Getz, Sarah Vaughan e todo mundo que interessa. Imagino que Billie Holiday não o gravou porque não conseguiu sair do túmulo. Mas tentou. Anita O´day (que esteve no Brasil nos anos oitenta) abre e fecha suas apresentações com Wave. Nunca na história deste país alguém teve tanto prestígio internacional. Tom era o cara.
A TERNURA ANTIGA DE JOE HENDERSON
Joe Henderson (1937-2001), saxofonista dos mais respeitados do mundo, também fez um cancioneiro de Tom Jobim (Double raimbow, que enriquece minha humilde coleção). Sonoridade límpida, suave, “flutuante”, com certa nostalgia das baladas de Coleman Hawkins (foto). Mas JH é discípulo confesso de Stan Getz e Charlie Parker, capaz de alternar a simplicidade do primeiro com a sofisticação do segundo. Mesmo nas notas agudas, não chega à agressão auditiva, mantém-se lírico, como se tocasse um acalanto. Como diria o velho Che (para quem balada se fazia com rifle, não com sax), Joe Henderson não perde a ternura, jamais. No vídeo (com Desafinado), os “coadjuvantes” são Pat Matheny (guitarra) e Tom Jobim (ao piano). Em meio a esse luxo, brilha o sax de Henderson.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as