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Séculos de exclusão e discriminação criaram a premissa do menor potencial. Frases como “Isso não é pra gente como nós”, “Nosso lugar é na cozinha”, entre outras, ouvidas de pessoas negras que estavam ao meu redor, acompanharam-me em grande parte da minha infância e adolescência. Mas eu me insurgi, resisti, reconfigurei a situação e cheguei até aqui. Porém, não foi fácil. E não é para nenhuma de nós.
Joana Guimarães
Desde que assumi o cargo de reitora na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), sempre me perguntam como é ser uma mulher negra ocupando um cargo em que tão poucas pessoas na minha condição estão presentes. Ao pensar sobre isso, vem à mente que a questão não é esse ou aquele cargo, mas a ocupação dos espaços de prestígio na sociedade que sempre foi algo de difícil alcance para pessoas negras. Estou na vida acadêmica como gestora desde 2006, quando assumi o cargo de diretora do campus da UFBA em Barreiras. Em 2011, fui para a vice-coordenação da Comissão de Implantação da UFSB. Em 2013, assumi a vice-reitoria dessa mesma universidade e, em 2018, o cargo de reitora, o qual exerço até aqui. Nessa trajetória, sempre fui a exceção que comprovava a regra do racismo.
Certamente a cor da pele define nossa posição na sociedade e como esta nos vê. Isso pode ser observado nas discussões sobre o desempenho dos cotistas na universidade. Havia e em certa medida ainda há uma preocupação com desempenho — fruto da concepção de que essas pessoas possuem dificuldades no aprendizado por conta da falta de exposição a elementos educacionais e culturais dominantes na nossa sociedade, tais como escolas renomadas, bons livros, cinema, teatro, museus — o que chamamos de capital cultural. Porém, não se levam em consideração as experiências comunitárias e culturais descentradas que também fazem com que, mesmo sem acesso a tudo isso, essa maioria minorizada desenvolva vivências que fazem com que não só tenham capacidade outras como a resiliência e um enorme potencial para agarrar as oportunidades que surgem à frente. Uma espécie de rebeldia contra a subalternidade determinada historicamente. Aliado ao fato de que pessoas negras devem estar onde estão porque esse é o seu lugar na sociedade — construiu-se a premissa dominante de que elas têm menor potencial que pessoas brancas.
No meu caso particular, quando adentrei esse mundo da gestão e, consequentemente, passei a ocupar cargos de destaque mesmo detendo todas as credenciais de uma egressa da Ivy League, não à toa, o racismo teimou em se rearticular em várias imagens de controle na tentativa de invisibilizar minha atuação como reitora e menoscabar a minha agência.
A intersecção entre racismo, machismo e pobreza inscreve, socialmente, as mulheres como pessoas com menor potencial para ocupar espaços de poder, sendo determinado a elas o cuidado com a família, com atividades relacionadas ao ambiente doméstico. Isso é, em grande medida, incorporado ao imaginário das próprias mulheres que, em muitos casos, se sentem culpadas ou impossibilitadas de investir na carreira, considerando que isso as afasta da sua função definida, historicamente, pela sociedade, que é a de cuidado com a família. Séculos de exclusão e discriminação criaram a premissa do menor potencial. Frases como “Isso não é pra gente como nós”, “Nosso lugar é na cozinha”, entre outras, ouvidas de pessoas negras que estavam ao meu redor, acompanharam-me em grande parte da minha infância e adolescência. Mas eu me insurgi, resisti, reconfigurei a situação e cheguei até aqui. Porém, não foi fácil. E não é para nenhuma de nós.
Essa breve reflexão conduz-me à resposta de que ocupar o cargo de reitora de uma universidade federal parece-me perfeitamente natural, em especial pelo fato de estar de volta, depois de 40 anos, à terra onde nasci e vivi a minha infância e parte da adolescência, onde tenho raízes familiares. Tudo isso faz com que eu tenha profunda relação com a região e compreenda a importância de uma instituição como a Universidade Federal do Sul da Bahia. Importante por saber o que teria significado para a vida de muitos dos meus colegas dos primeiros anos de estudo a existência de uma universidade pública na região, o quanto isso lhes teria impactado a vida. Além do impacto pessoal, há ainda o aspecto do desenvolvimento regional, com a possibilidade de construção de projetos de interesse da sociedade em todas as áreas do conhecimento, o que almejamos aqui na UFSB.
Para finalizar, deixo aqui o testemunho de que me sinto acolhida pelos colegas reitores e reitoras das universidades federais, por meio da Andifes, que, neste momento de dificuldade econômica, política e sanitária pelo qual passa o Brasil, agravado pelas enchentes no sul e extremo-sul da Bahia, tem se colocado firmemente numa rede de apoio, solidariedade e troca de experiências que muito tem nos ajudado a atravessar essa difícil conjuntura.
Joana Guimarães é reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).