Com Deus, pátria, família, armas, violência, tramas e mentiras, os herdeiros de Frota, que chegaram ao Planalto 22 anos após sua morte, tinham a intenção de estender, a fórceps, a passagem pelo poder. Não representam as Forças Armadas brasileiras na totalidade, mas sua pior tradição, autoritária e entreguista: aqueles que falam grosso com o povo brasileiro e fino com as autoridades americanas.
José Cássio Varjão
No dia 28 de agosto de 2024, a Lei 6.683, denominada Lei da Anistia, promulgada pelo então João Baptista Figueiredo, completou 45 anos. Era o início da caminhada pela redemocratização do Brasil (pela segunda vez, a primeira foi em 1945), que começou nessa data, com o perdão daqueles que a Ditadura Militar chamava de subversivos. Para a história, foram perseguidos políticos.
Entre 1978 e 1981, com o intuito de intimidar a sociedade, que se mobilizava pela volta da democracia, vários atentados terroristas foram praticados por militares radicais e paramilitares, que rechaçavam o processo de distensão política que o país atravessava.
Matéria do Jornal do Brasil, de 1º de outubro de 1978, informava que 28 bombas tinham sido explodidas em redações de jornais, sedes de diretórios estudantis, colégios e igrejas, todos no estado de Minas Gerais, nos seis meses que antecederam à reportagem. Tais ações foram de responsabilidade de entidades como GAC (Grupo Anticomunista), MAC (Movimento Anticomunista) e o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). O diretor do Jornal O Tempo, Tibério Canuto, vinculava a polícia às atividades dos grupos secretos anticomunistas. Nesse período, a polícia não capturou nenhum responsável.
O mais renomado dos atentados terroristas à sociedade ocorreu no Riocentro, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, quando setores radicais do Exército Brasileiro planejaram explodir uma bomba no estacionamento do Centro de Convenções, no dia 30 de abril de 1981, em evento realizado em comemoração ao Dia do Trabalhador, 1º de maio. Uma das bombas explodiu no interior de um automóvel Puma, no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, antes do momento previsto para a realização do atentado. Trinta minutos após essa explosão, uma segunda bomba explodiu próximo à casa de força do Riocentro, sem deixar vítimas.
Em junho de 1979, o governo João Figueiredo, através do ministro da Justiça, Petrônio Portela, encaminhou ao Congresso Nacional o projeto da Lei da Anistia. As discussões em torno do tema duraram somente três semanas de debates, sendo a lei aprovada nos moldes que os militares desejaram. Dado ao bipartidarismo (Arena e MDB) adotado durante os anos de governos militares, o MDB, que era o partido da oposição e minoria nas duas casas legislativas, apresentou diversas emendas ao projeto do governo, sendo derrotado em todas.
Segundo dados dos arquivos do Senado Federal, “foram anistiados tanto os que haviam pegado em armas contra o regime quanto os que simplesmente haviam feito críticas públicas aos militares. Graças à lei, exilados e banidos voltaram para o Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os processos nos tribunais militares anulados, presos foram libertos de presídios e delegacias”.
Mas a Lei da Anistia, concebida ao gosto do governo, não foi tão benevolente como a Arena quis fazer crer. Ela negou o perdão aos chamados “terroristas”, aqueles que tivessem sido condenados de forma definitiva por atos contra o regime. Porém, aqueles que ainda estivessem respondendo a processos idênticos, mas com possibilidade de apelação a tribunais superiores, seriam anistiados.
A questão mais obscura e grave – que os parlamentares do MDB tentaram derrubar, era o perdão aos militares que cometeram arbitrariedades em nome do golpe de 1964, incluindo a tortura e a execução de adversários, dando-lhes segurança de que jamais seriam punidos e, mais ainda, nunca sequer se sentariam no banco dos réus. Propositadamente obscura, sem citar o nome dos militares, a lei dizia que seriam anistiados todos que tivessem cometido “crimes conexos”, ou seja, os agentes da repressão estavam amparados sob o amplo guarda-chuva dos “crimes conexos”.
“Pretende-se que as mortes, os choques elétricos, as lesões corporais, as mais variadas torturas sejam esquecidas. Elas foram compreendidas sorrateiramente pelo projeto de anistia, graças ao recurso de termos ambíguos através dos quais se iludiria a nação”, denunciou o deputado federal Pacheco Chaves (MDB-SP).
Nas semanas seguintes à promulgação da lei pelo presidente da República, vários políticos proeminentes, como Leonel Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião, Betinho, Fernando Gabeira, Vladimir Palmeira, Carlos Minc, Paulo Freire e Haroldo Lima, dentre outros, retornaram ao Brasil depois de, em alguns casos, 15 anos de exílio.
Os militares brasileiros foram os únicos, no Cone Sul da América do Sul, que não foram julgados e devidamente punidos pelos atos praticados entre 1964 e 1979. Em 2011, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por não investigar os crimes cometidos na ditadura. Tal condenação não tem nenhuma consequência direta ao país, causando somente “constrangimento” perante a comunidade internacional.
Segundo Cláudio Beserra de Vasconcelos, doutor em história pela UFRJ, “os casos de corrupção dos governos militares não são conhecidos porque não se podia investigar, pois a anistia é uma lei do esquecimento. Enquanto outros países fizeram uma mudança de governo, com julgamentos e punições, no Brasil houve uma transição pelo alto. Não houve uma ruptura, foi um processo lento e negociado, que começou com Ernesto Geisel, ainda no início da década de 1970. Uma elite militar e política fez a mudança, não a sociedade. O lobby feito para que os privilégios das Forças Armadas continuassem, e a Constituição de 1988 é um exemplo disso”, aponta Vasconcelos.
Em 1975, o cientista político americano Alfred Stepan (1936-2017) observou a ligação das Forças Armadas com o poder civil no Brasil, “traçando a formação do caráter de tutela que os militares reivindicam ao longo da história, ele estabelece limites, lembrando que duas tentativas de golpe – 1955 e 1961 – não se legitimaram por falta de apoio de significativa parte da elite civil”. Um dos pontos do estudo de Stepan foi que a última participação externa, de grande porte do Exército Brasileiro, foi na Guerra do Paraguai, há exatos 160 anos. Desde então, sem desafios externos, as Forças Armadas brasileiras, em busca de protagonismo, estão voltadas para tarefas de cunho político.
O golpe militar de 1964 foi planejado e executado por uma ala das Forças Armadas, com apoio da elite civil do país. No entanto, após o 31 de março daquele ano, outros militares de alta patente foram obrigados a aderir à tomada de poder pelos militares, por receio de represálias e medo de perder a tropa, composta por soldados, cabos e sargentos.
Os militares mais radicais, os chamados linha dura, defendiam o endurecimento do regime e tiveram em Costa e Silva e Médici seus expoentes principais, entre 1967 e 1974. Com a chegada de Ernesto Geisel e o início da abertura política, a linha dura das Forças Armadas tiveram em Sylvio Frota seu principal representante. Ministro do Exército, Sylvio Frota tentou dar um golpe no golpe, lançando-se candidato à sucessão de Geisel, impedindo a posse de João Figueiredo. Foi o último ato dos chamados linha dura do regime militar, e o assessor e motorista de Frota era um capitão, que se chamava Augusto Heleno. Foi essa ala das FAs que nunca aceitou a abertura política iniciada por Geisel, em 1974, e concluída por Figueiredo em 1985.
Chamado de decano, entre militares que apoiam Jair Bolsonaro, Augusto Heleno concluiu sua formação na Academia Militar das Agulhas Negras em 1969 e fazia coro com os que nunca aceitaram a Lei da Anistia, a transição democrática e a Constituição de 1988. Jair Bolsonaro, que sempre foi peixe pequeno, expressou esse pensamento durante toda a sua medíocre vida política. De 2001 a 2018, das 901 falas catalogadas na Câmara dos Deputados, 252 delas foram alusivas ao golpe militar de 1964.
A introdução de Jair Bolsonaro como candidato a presidente da República ocorreu numa cerimônia de formação de aspirantes a oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em novembro de 2014, quando a academia era presidida pelo ex-comandante do Exército do governo JMB, general Tomás Paiva. A vitória da chapa Bolsonaro/Mourão contou com a colaboração do Alto Comando do Exército, tendo o General Villas Bôas como seu porta-voz. No seu livro, General Villas Bôas: conversa com o comandante, lançado pela Editora FGV, ele revela como o Alto Comando do Exército ameaçou o STF, no julgamento do habeas corpus do presidente Lula, em 3 de abril de 2018. É imperativo afirmar que a existência de arquétipos ideológicos no interior das Forças Armadas é indiscutível.
Entre arroubos, valentias e práticas golpistas, os militares brasileiros, salvo inegáveis exceções, são fiéis aos próprios regulamentos disciplinares, porém, afeitos às transgressões da ordem institucional, em diversas oportunidades. Começaram com a traição a Dom Pedro II, na Proclamação da República ou Golpe Republicano. Seguindo, com a Revolução de 1930, e o Movimento Tenentista, que impediu o presidente eleito, Júlio Prestes, de tomar posse. Depois veio golpe do Estado Novo, em 1937, com um documento apócrifo dos militares, intitulado Plano Cohen, que fraudulentamente relatava sobre um suposto ataque da Internacional Comunista que derrubaria o Governo Vargas, promovendo greves, incêndios de prédios públicos, depredações e assassinatos de autoridades. Finalizou com a ditadura de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, estabelecendo um regime de exceção que durou 21 anos.
Porém, é de suma importância relacionar os movimentos de quebra da ordem institucional que ocorreram em outras oportunidades e que não vingaram, seja por falta de planejamento ou por falta de apoio da sociedade. Comecemos com a Revolta da Armada, entre 1891 e 1894, numa ação liderada por setores da Marinha contra os primeiros governos republicanos. A Revolução Constitucionalista de 1932, uma tentativa dos estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul, para derrubar Getúlio Vargas. O Golpe de 1954, que ruiu, tendo como causa a morte de Getúlio Vargas. A Crise Institucional de 1955, cujo objetivo era impedir a posse de Juscelino Kubitschek. O Movimento de 1961, que também tentou impedir a posse de outro presidente, João Goulart. Historicamente, foram essas as tentativas frustradas dos militares tupiniquins, sendo proposital a estratégia dos militares mais radicais, que nunca aceitaram o fim da ditadura, alimentando a continuidade dos próprios projetos políticos.
Nada disso é sinal de despreparo ou de excessos. É tudo bem pensado. Reportagens de diversos meios da comunicação escrita, publicados em 2021 e 2022, indicou a presença de mais de 6,1 mil militares ocupando postos civis da administração direta do governo Bolsonaro. Antes, em 2005, somente 996 militares ocupavam cargos civis no governo federal. Não se pode esquecer que, contra a instalação da Comissão Nacional da Verdade, os militares se posicionaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff e a favor da prisão de Lula, com o famoso tweet do general Villas Boas pressionando o STF. Essa junção de fatos culminou com um inusitado agradecimento de Bolsonaro a Villas Boas por chegar à presidência, sem se estender sobre o motivo do tal reconhecimento.
Eis que vem à tona um mirabolante plano de golpe de estado, acompanhado pelo assassinato de autoridades da República, quando vários generais de Exército, com quatro estrelas, e outros, de baixa estatura, a serviço de um capitão, desprovido de qualquer brilho intelectual ou de comando, tentam mais uma vez interferir na vida civil da nação, jogando na lata do lixo 60 milhões de votos da população, para se apropriar indevidamente do poder central.
O relatório de 884 páginas entregue ao STF (Supremo Tribunal Federal) pela Polícia Federal, sobre a tentativa de golpe de estado que se sucedeu após a divulgação do resultado das eleições presidenciais de 2022, detalha minuciosamente os detalhes da trama golpista. Numa mistura de sadismo e trapalhadas, o relatório indiciou 37 pessoas pela tentativa, mais uma vez, de ruptura institucional. “Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”, frase de Jarbas Passarinho, que era oficial do Exército, dita na reunião sobre a instalação do AI-5, ainda paira na mente delinquente dos golpistas. Karl Marx citou a famosa frase de Hegel, no 18 Brumário de Luís Bonaparte, de que a história se repete: “A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
Esse é o cerne dos militares na política, e foi a mesma receita de Sylvio Frota para a continuação da ditadura, com saída autoritária e endurecimento do regime. Jair Bolsonaro e seus personagens grotescos têm alguma linhagem política, com certeza é a do general Sylvio Frota.
Com Deus, pátria, família, armas, violência, tramas e mentiras, os herdeiros de Frota, que chegaram ao Planalto 22 anos após sua morte, tinham a intenção de estender, a fórceps, a passagem pelo poder. Não representam as Forças Armadas brasileiras na totalidade, mas sua pior tradição, autoritária e entreguista: aqueles que falam grosso com o povo brasileiro e fino com as autoridades americanas.
Não há necessidade de tecer comentários sobre o Artigo 142 da Constituição Federal de 1988, porque não cabe às Forças Armadas arbitrarem conflitos entre poderes, tampouco interferência na vida política da nação. Esses eventos refletem o papel dos militares como atores centrais na política brasileira desde a Proclamação da República. A história desses movimentos é marcada por disputas internas, crises políticas e transformações institucionais que moldaram o Brasil moderno.
P.S.: Em 1977, o ministro do Exército de Ernesto Geisel, o general Sylvio Frota, apoiado pelo também general Jayme Portela, articularam uma ação para impedir a candidatura de João Figueiredo, que continuaria a distensão entre a ditadura e a democracia, para posteriormente depor Geisel. Fato semelhante ocorreu em 1965 com Castelo Branco e Costa e Silva, com duas enormes diferenças entre os atores. Geisel era audacioso e mais habilidoso em relação a Castelo Branco. Ao passo que Sylvio Frota era menos preparado que Costa e Silva.
O presidente Geisel convocou os comandantes militares para uma reunião em Brasília. Com a intenção de golpear o presidente, Sylvio Frota enviou um carro, dirigido pelo motorista/capitão Augusto Heleno ao aeroporto de Brasília, para transportá-los, não ao Palácio do Planalto, mas para o Comando do Exército, para em seguida comunicar a Geisel que estava assumindo o poder. Os generais desconfiaram da manobra e não aceitaram entrar na viatura. Sylvio Frota foi demitido do cargo de ministro do Exército, no dia 12 de outubro de 1977.
José Cássio Varjão é cientista político.