Tempo de leitura: 7 minutosSERIA ISTO “EVOLUÇÃO” OU ‘EVOLUÇÃO’?
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ASPAS, URTICÁRIA E ESCABIOSE
Ousarme Citoaian
Os jornais, blogs e semelhantes têm sido contaminados por uma moléstia que irrita tanto quanto urticária ou escabiose. São as chamadas “aspas simples” – ou, como preferem os arautos das novidades inúteis, ´aspas simples´. Atualmente, se alguns desses redatores desejam citar a famosa frase de Euclides da Cunha, por certo escreverão ´O brasileiro é, antes de tudo, um forte´. De que lado veio a sandice, não sei. Mas sei que ela chegou às redações – lugar onde pouco se lê (e hoje, com a internet, também pouco se escreve) – e lá fez morada, pois encontrou quem a adotasse, sem fazer incômodas perguntas.
SERIA ISTO “EVOLUÇÃO” OU ‘EVOLUÇÃO’?
Antes que algum linguista um pouco mais permissivo surja de dedo em riste a defender essa bobagem, provavelmente em nome da “evolução” (ou ´evolução´?) da língua, adianto que nunca em minha já longa existência encontrei guarida para tal coisa em qualquer autor de respeito. De poetas a ficcionistas, de dicionaristas a gramáticos, de Cyro de Mattos a Adonias Filho, de Aurélio Buarque de Holanda a Napoleão Mendes de Almeida e Rocha Lima, sempre encontro aspas utilizadas (ou definidas) como vírgulas dobradas (“). Aspas simples, para esses autores, são usadas somente numa situação muito especial.
EXEMPLO NA CITAÇÃO DE BERGSON
José Afonso de Souza Camboim, em Língua hílare língua (Universidade de Brasília), nos dá uma citação do filósofo Henri Bergson (1859-1941), tirada de um texto do comediante também francês Eugéne-Marin Labiche (1815-1888): “Certo personagem grita ao locatário de cima, que lhe suja a varanda: ´Por que você joga lixo na minha área?´ ao que o locatário responde: ´Por que você põe sua área debaixo do meu lixo?´”. Esta comicidade de inversão citada por Bergson (foto) talvez não tenha muita graça hoje (afinal de contas, o texto tem uns bons 130 anos), mas que o exemplo do uso das aspas simples dentro das aspas “normais” (ou prefeririam ´normais´?) é bom, lá isto é.
DESCONHECIMENTO E PREGUIÇA
Esta frase, colhida num jornal que parece escrito por pessoas que têm compromisso com a língua culta, deixa claro o centro da minha dúvida: “A melhor escolha hoje para o tratamento da Aids é um ‘coquetel’ de três antivirais”, disse o ministro José Gomes Temporão. Até agora, segundo fui informado, aspas simples servem para marcar uma sentença ou palavra dentro de uma citação já aspeada (ou aspada), conforme ilustra o textinho acima. Fora disso, o uso indiscriminado das aspas simples me parece o resultado de uma fórmula sabidamente danosa à escrita: desconhecimento da língua consorciado preguiça de aprender.
DE VALES TRISTES E FLORES MORTAS
Impossível fugir .
Nem mais as praias são serenas,
nem mais os bosques são tranquilos.
–
Onde o silêncio? onde o repouso?
Acaso a alma dos bosques fugiu
pelas clareiras abertas como bocas
E os vales?
Por que não mais florescem lírios?
alvos lírios, mais alvos que as espumas?
–
Vejo tanques passando pelos campos,
machucando flores, amassando gramas,
baladas, madrigais aos ermos bosques.
–
Vinde cantar, poetas, o massacre das flores.
Rondéis,
aos vales tristes
às flores mortas (…).
POETA EM TEMPO DE GUERRA
Este excerto de “Passam tanques pela vida”, de Jorge Medauar (foto), foi colhido em Chuva sobre tua semente, livro de 1945, e o ano termina sendo relevante: o poeta sofre e reflete um tempo de guerra. Mas a composição carrega o signo da eternidade: hoje, 65 anos depois, a sensação que temos é de que os tanques estão nas ruas e nos campos, amassando flores e esperanças – e o homem ainda é um ser repleto de lamentos. Uma curiosidade sobre o poeta e contista Jorge Medauar (1918-2003): nunca aceitou que sua cidade natal se chamasse “Uruçuca”; tratou-a, sempre, como Água Preta, o nome anterior.
A FALTA QUE FAZ O ROMANCE DO FUTEBOL
O futebol, ao que sei, não teve maior interesse para a literatura regional. Telmo Padilha, se bem me lembro, nunca se debruçou sobre o assunto, Jorge Amado (foto) e Adonias Filho também não, Jorge de Souza Araujo, embora goste do velho esporte bretão, não lhe dedicou maior esforço – e Marcos Santarrita, que chegou a goleiro do fortíssimo esquadrão do Vasco da Gama de Itajuípe, também não escreve sobre esse tema. Essa mesma visão local poderia ser estendida à literatura brasileira como um todo – pois, embora tenhamos ótimos contistas, parece que ainda não nasceu o ficcionista destinado a produzir o grande romance do futebol brasileiro.
“IMAGINÁRIO AMPLO E COMPLEXO”
O antropólogo Roberto DaMatta afirma que os intelectuais brasileiros, elitistas, “detestam futebol”, mesmo os escritores mais ligados às camadas populares, como Jorge Amado e Graciliano Ramos. Este chegou a dizer que o futebol jamais daria certo no Brasil. Exceção que confirma a regra é José Lins do Rego, torcedor fanático e cartola do Flamengo. “Vou ao futebol e sofro como um pobre-diabo”, dizia o autor de Água-Mãe (em que o futebol tem forte presença). Para o crítico Silviano Santiago, não se trata de “elitismo”, mas de dificuldade inerente ao tema: o imaginário do futebol é amplo e complexo, desencorajador de projetos estéticos na área (ops!). Mas na aridez do assunto entre nós avultam dois nomes: Hélio Pólvora e Cyro de Mattos.
HÉLIO PÓLVORA E A DERROTA DE 1950
Hélio, recém-saído da adolescência (nasceu em 1928), sofreu todo o trauma do Maracanaço – como ficou chamado aquele evento fatídico, em que o Brasil, favorito absoluto, já comemorando o título do (como se dizia na época) Oiapoque ao Chuí, perdeu para o Uruguai. Ghiggia (foto), quase antecipando Jorge Benjor, chegou aos 21 minutos do segundo tempo, bateu Bigode e não deu chance ao goleiro Barbosa. O Maracanã calou-se. Espantada, atônita, a nação brasileira fora nocauteada, sem perceber de onde veio o direto que lhe atingiu a mandíbula. Hélio parece ter carregado essa imagem pela vida inteira – e a imprime no excelente conto “O gol de Ghiggia”, de sintomas autobiográficos.
“É CAMPEÃO! O BRASIL É CAMPEÃO!”
Cyro de Mattos, que selecionou “O gol de Ghiggia” para a antologia Contos brasileiros de futebol, é apaixonado por esse esporte, com remessas à infância em Itabuna. O velho campo da Desportiva (título por ele lançado no fim de junho) é tema recorrente, em prosa e verso. E o autor de Alma mais que tudo é outra vítima de Ghiggia, confessado no texto pungente de “Copa do Mundo de 50”, a taça que ele se recusou a perder:
Valia a pena driblar as sombras de um pesadelo que se alojava em meu pequeno coração. Afugentar aquela coisa que só infundia tristeza, aderia à pele, ardia tanto no coração. Empurrava-me com os outros meninos para os campos do abismo. O plano que armei com os meninos da Rua do Quartel Velho era simples. Não assistiríamos mesmo, na tela do Cine Itabuna, à derrota do Brasil na final contra o Uruguai. Em algazarra sairíamos pela rua gritando “É campeão! O Brasil é campeão!”, batendo com pau nas latas vazias.
Valia a pena driblar as sombras de um pesadelo que se alojava em meu pequeno coração. Afugentar aquela coisa que só infundia tristeza, aderia à pele, ardia tanto no coração. Empurrava-me com os outros meninos para os campos do abismo. O plano que armei com os meninos da Rua do Quartel Velho era simples. Não assistiríamos mesmo, na tela do Cine Itabuna, à derrota do Brasil na final contra o Uruguai. Em algazarra sairíamos pela rua gritando “É campeão! O Brasil é campeão!”, batendo com pau nas latas vazias.
ACORDES QUE VÊM DO SÉCULO XIX
Fugindo a novelas e pregações (pseudo) religiosas, descubro num canal alternativo a reprise do filme Memórias póstumas, de André Klotzel, de 2001 (com Reginaldo Farias, Sônia Braga e Walmor Chagas). A história, todos sabem, baseia-se em Memórias póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis no ápice da criação): morto em 1869, Brás Cubas narra sua vida, fala dos amigos (Quincas Borba, principalmente), dos amores e do fato de nunca haver trabalhado. Mas não foi isso que me chamou a atenção, e sim, na trilha sonora, a modinha incidental “Quem sabe”, de Carlos Gomes (letra de Bittencourt Sampaio), cantada pela soprano Kátia Guedes de Souza.
LIRISMO EUROPEU EM TERRA PAULISTA
Coisa mais linda! O músico campineiro (1836-1896), autor de O guarani, rendeu-se ao popular, via modinha, gênero então em voga, ao fazer, dentre outras, “Suspiros d´alma” (sobre versos do lusitano Almeida Garret). Um texto do Ministério da Cultura diz que o artista teve forte influência européia. “Nas modinhas e canções de Carlos Gomes encontramos um pouco do lirismo francês e muito dos tons humorísticos das canções italianas”, registra o MinC. Romântico, com forte influência interiorana, Carlos Gomes (foto) deixou cerca de 50 canções, dentre elas essa surpreendente “Quem sabe”, aqui, na gravação de Francisco Petrônio (1923-2007).
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as
DISCOS QUE VALEM O PESO EM OURO
Petrônio gravou pela primeira vez aos 37 anos. Teve sucessos como “O baile da saudade”, “Lampião de gás”, além da série de 4 LPs que valem seu peso em outro: Uma voz e um violão em serenata. Nesses discos ele é acompanhado por ninguém menos do que Dilermando Reis (1916-1977), referência em violão brasileiro – mais conhecido pela autoria de “Magoado” e pela execução de “Sons de carrilhões” e “Abismo de rosas”. Consta que somente entre 1941 e 1962 gravou 68 músicas, sendo 43 de sua autoria. Petrônio, neste “Quem sabe”, mostra o virtuosismo que lhe justificou a alcunha de “Cantor da voz de veludo”.
(O.C.)