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O cancelamento do carnaval nos deu a oportunidade de refletirmos sobre nossas práticas, o barulho do trio elétrico foi naturalmente trocado pelo silêncio, o que possibilita escutarmos as vozes internas para quem sabe trocar o cancelamento de pessoas pelo acolhimento, nossa arrogância pela tolerância, mesmo com os que não toleram.

Marcos Cardoso

Certamente, 2021 será lembrado como o ano em que não teve carnaval. Para a geração daqui a trinta anos, será impossível imaginar, como foi o “País do Carnaval” cancelado, o Brasil sem a folia. Isto, se o mundo voltar para os velhos trilhos, anterior à pandemia da Covid-19.

A festa popular exportada da Europa, derivada do entrudo, ritual de jogar farinha, ovo e água, era uma forma prazerosa do adulto brincar e findava no primeiro dia da quaresma. Ao longo do tempo foi se modificando e adequando ao jeito brasileiro, junto com o futebol, para os críticos, o nosso “ópio”. Para alguns teóricos, a festa desvela também a nossa hierarquização social, na mesma medida em que os dias de folia eram o salvo-conduto, para a fantasia simbólica de ser quem não é no dia a dia, através da fantasia literal, digo a vestimenta, assim os menos favorecidos viravam reis e rainhas da folia ou o que a sua imaginação permitisse.

Nos últimos dias, a palavra cancelamento esteve em evidência, tanto pelo carnaval cancelado, quanto pelas situações ocorridas na casa mais vigiada do Brasil, a do Big Brother. Certamente, este foi o ponto de ebulição para as reflexões expostas.

O ineditismo do não carnaval, no ano em que o cancelamento em todas as suas versões ganhou protagonismo, o do carnaval foi compulsório, pelas autoridades, foi protocolar. Porque, antes disso, os agentes biológicos nos cancelaram, restando a alternativa de suspensão dos festejos.

Fevereiro sem carnaval mexe primeiro com a cadeia produtiva na sociedade de consumo, mas vai além, já que esta usina de alegria, simbolicamente incutida no imaginário dos brasileiros e vendida aos gringos que aqui aportam todo fevereiro, toca na alma de milhões que se alimentam durante doze meses desta expectativa é a data mais esperada do ano, cantada em verso e prosa.

Nossa identidade cultural foi construída em torno do carnaval e historicamente se consolidou como uma festa identitária, em que minorias sociais levantam suas bandeiras contra o racismo, machismo e por mais direitos como reivindica o movimento social LGBTQIA+.

Sim, o carnaval é palco de lutas sociais, mas é também a síntese de um povo cheio de mazelas que se permite extravasar alegria, tristeza e lascividade, já que a festa é da carne e na modernidade, que é líquida, as relações são fluídas.

Como ocorre também no programa Big Brother Brasil, muitos vivem esses dias intensamente, se comportam no público como se estivessem no privado. Famosos e anônimos, ricos e pobres, convivem no mesmo ambiente, todavia, com prazo de validade determinado, já que a folia dura em média quatro dias e na casa mais vigiada do Brasil, noventa.

As semelhanças vão além, tanto lá (BBB) como cá (carnaval), ambos exigem equilíbrio tantas vezes ignorados. São verdadeiras maratonas, seja em Salvador, ao som do axé, ou nos passos do frevo nas ladeira de Olinda, requerem condicionamento físico, como nas provas de líder da casa, em sua natureza são competições, vide Carnaval do Rio, com premiação em dinheiro para a escola de samba campeã ou o mais de um milhão de reais, para o vencedor do programa. Falar de BBB e carnaval é falar de narcisismo, sempre exaltado através dos corpos desnudos em exposição.

A edição BBB 21 coincidiu até mesmo no quesito cancelamento, o carnaval por motivos óbvios, para não propagação do corona vírus. No reality recheado de tretas, o “cancelar” pessoas (prática de boicote, deixar de seguir alguém nas redes sociais, para puni-la e fazer perder contratos de trabalhos) foi a pauta mais evidente desta temporada ainda em andamento.

Em que vozes tidas como progressistas, empoderadas, que são ou eram abraçadas pela militância antimachismo, racismo e GLBTfóbicas, deixaram aflorar seu lado perverso, potencializado pela exposição midiática, sobretudo por reproduzir o comportamento do opressor, justamente quem se coloca, fora da casa, na posição de protagonista na quebra das amarras.

Por fim, o cancelamento do carnaval nos deu a oportunidade de refletirmos sobre nossas práticas, o barulho do trio elétrico foi naturalmente trocado pelo silêncio, o que possibilita escutarmos as vozes internas para quem sabe trocar o cancelamento de pessoas pelo acolhimento, nossa arrogância pela tolerância, mesmo com os que não toleram. Talvez neste processo se colha um fruto saudável, a geração de consciência sobre a diversidade social.

Marcos Cardoso é técnico em Segurança Pública e graduando em Ciências Sociais (Uesc).