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“QUALIDADE” ANDA AO LADO DE ADJETIVOS

Ousarme Citoaian
É curioso como o falar das ruas ultrapassa a chamada norma culta e, nessa transgressão, facilita a linguagem assentada na gramática. Falamos aqui, há poucos dias, em adjetivos, e hoje retomamos o tema, de outro ângulo. Veja-se, por exemplo, “qualidade”, no sentido (Dicionário Michaelis) de “propriedade pela qual algo ou alguém se individualiza, distinguindo-se dos demais”. Já se vê que a palavra necessita de adjetivo que a explique: comida de boa qualidade, artigo de primeira qualidade, trabalho de qualidade inferior, música de qualidade – e demais lembranças que ocorram ao leitor. Se bem utilizado, o termo vem de braço dado com outro que o faça claro.

NOSSO FUTEBOL PRECISA DE “QUALIDADE”

É quando surge o falar brasileiro e faz a necessária adaptação. “Ronaldinho é um jogador de muita qualidade”, diz o narrador da tevê; “O ataque do Vasco não funciona porque falta qualidade no passe”, emenda o outro. Talvez regido pela lei do menor esforço (que abordaremos a qualquer dia), o falante eliminou o adjetivo, tornou a frase mais econômica e, pasmem, todos entendemos o que ele quis dizer: o jogador é de boa qualidade e o passe é de qualidade. Noel Rosa já dizia: “Isto é brasileiro, já passou de português” – mas o jornalismo não se pode permitir tal gênero de grosseria. Um jornalista tem que escrever tão bem quanto um romancista, sentencia Dad Squarisi.

NO HEROI MACUNAÍMA, “NENHUM CARÁTER”

“Caráter” (em referência a traços psicológicos, índole, temperamento, modo de ser e de agir dos indivíduos) parece seguir o mesmo modelo desvirtuado da norma culta. A divisão primária entre bom caráter e mau caráter já foi esquecida. Quando se deseja dizer que uma pessoa é moralmente sã diz-se que ela tem caráter (em vez de bom caráter); quando, ao contrário, se trata de cabra safado, é comum afirmar-se que ele não tem caráter. Pior é que tem; mau, mas tem. Lembram de Macunaíma? Era o herói sem nenhum caráter. Pode? Pode, como licença poética que o jornalismo não possui. E como ninguém aqui é Mário de Andrade, lembremo-nos de que todos têm “caráter” (bom, ruim, frágil, forte, irascível, leviano, colérico, dúbio etc).

“SHANE” OU… “OS BRUTOS TAMBÉM AMAM”

No Brasil resta consolidado o costume de dar aos filmes estrangeiros títulos capazes de atrair o público. Dois exemplos interessantes são The quiet man, de John Ford/1952 (aparentemente, “O homem quieto”), que  virou “Depois do Vendaval”; e The thin man (talvez “O homem magro”), W.S. Van Dyke/1934, sobre o romance noir de Dashiell Hammett), que chegou às telas (antes, às livrarias) como “A ceia dos acusados”. Porém, não tenho notícia de tradução mais manipulada pelo mercado do que “Os brutos também amam”, de Georges Stevens/1953, cujo título no original é um prosaico Shane, nome do personagem principal, feito por Allan Ladd (foto).

PERSONAGENS QUE NÃO TÊM AMOR A NINGUÉM

Guido Bilharino (O filme de faroeste, edição Instituto Triangulino de Cultura/2001) diz que a referência marota é aos “brutos” do filme: um fazendeiro ganancioso e seus pistoleiros, entre eles Jack Palance. “Mas estes não demonstram amor a ninguém, nem lhes é dada essa oportunidade pelo script”, ressalta o crítico. O título, portanto, é impróprio para definir a história mostrada na tela, embora tenha cumprido às mil maravilhas seu objetivo mercadológico: não há dúvida de que a expressão “Os brutos também amam” carrega a pieguice necessária para atingir o grande público. E o filme caiu (não pelo título subliterário) também no goto da crítica.

CRÍTICO OBSESSIVO VIU O FILME 82 VEZES


Shane é um clássico que tem lugar na estante de qualquer fã do faroeste. Densidade psicológica e feitura cuidadosa se destacam nesse trabalho que produziu até um especialista obsessivo no Brasil, o crítico Paulo Perdigão (1939-2007): ele viu Os brutos… 82 vezes, foi conhecer o set de filmagens nos Estados Unidos, entrevistou o diretor (na foto, à direita) e escreveu um livro a respeito do filme (Western clássico — gênese e estrutura de Shane). Treze críticos declararam à Folha de S. Paulo (1984) que este é o maior western de todos os tempos. Para Moniz Viana, “Shane é uma das obras mais perfeitas que não só o gênero, mas o próprio cinema produziu”.

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UM SAXOFONISTA GRANDE E POUCO BADALADO

Faço saber a todos que me dão a honra de dispensar a esta coluna uma vista d´olhos (acho-me hoje inusitadamente lusitano) que sou, desde  antigamentes já olvidados, fã de jazz. Mais: se fosse forçado a escolher um instrumento para símbolo desse gênero, apontaria o saxofone, o tenor, de preferência. Não me perguntem sobre os tenoristas geniais, que são tantos, e eu não me arriscaria a dar palpite: Coleman Hawkins, Lester Young, Charlie Parker, Sonny Rolins, John Coltrane, há muitos, cada um com seu estilo: o sax tenor, segundo os críticos, é tão pessoal quanto a voz humana. Para os não iniciados, mostramos aqui o resumo da trajetória de um dos grandes, porém menos badalados, Sonny Stitt (foto).

TODA A FAMÍLIA DO SAX, MENOS O SOPRANO

Não se trata, a rigor, de um tenorista, pois Stitt (1924-1982) domina quase toda a família do saxofone: tenor, alto e barítono. Não consta que toque sax soprano, mas aposto que ele fez isso alguma vez, às escondidas, talvez no banheiro. E trabalhou com as grandes feras do jazz a partir da metade dos anos 40: tocou com Dexter Gordon (na banda do cantor Billy Eckstine), depois no sexteto do trompetista Dizzy Gillespie (foto), gravou com os pianistas Bud Powell e Oscar Peterson, em horas diferentes. Em 1960 integrou o grupo de ninguém menos do que Miles Davis, substituindo ninguém menos do que John Coltrane. Um currículo impressionante, mesmo que tenhamos esquecido de Thelonious Monk e Art Blakey.

FILHO DE “BIRD” PARKER E DEXTER GORDON

Críticos apontaram, no começo da carreira de Sonny Stitt (1945, ao trabalhar com Gordon) clara influência de Charlie “Bird” Parker, mas hoje acusam a presença de “Bird” apenas no sax alto. No tenor, Stitt logo desenvolveu linguagem própria, afastando-se do mestre. Aponta-se ainda que ele tem, sobretudo ao tocar baladas, um lirismo relaxado que o assemelha mais a Dexter Gordon (foto)
do que a Parker. Dessa combinação do clássico “Bird” Parker e do moderno bebop de Gordon, nasceu o estilo Sonny Stitt. Aqui, para quem é do ramo (e quem não é está perdendo muito), o sax alto de Stitt num dos temas mais populares do jazz: Stardust (creio que, em língua de barbares, quer dizer “poeira de estrelas”).


O.C.

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A MÍDIA EMPOBRECEU A LINGUAGEM

Ousarme Citoaian

É incrível como a imprensa (seguida pelos outros meios de divulgação) abriga e cria novos termos ociosos, que nenhuma falta fazem à boa linguagem. Nos últimos anos, eles (os veículos de comunicação) deram guarida a muitos verbos que só empobrecem a língua portuguesa. “Torna-se incompatível sua atuação [do senador Gim Argello] como relator do orçamento”, pontuou o deputado federal Roberto Freire – é o que diz um jornal de Itabuna, repetindo algum congênere da chamada grande imprensa. Pontuou? Por que “pontuou”? Só mesmo a falta de imaginação para justificar tamanha bobagem.

PREOCUPAÇÕES COM A ESCRITA “BONITINHA”

O Aurélio (que costuma ser generoso com certas invenções gramaticais) não reconhece em “pontuar” o sentido dado na frase. O Michaelis também não, nem tampouco o Priberam (de Portugal). Não fui além, por não ter tempo a perder: “pontuar” significa colocar sinais ortográficos e quase nada mais (o termo é usado também em música, segundo o Aurélio). Logo, seu emprego no caso citado apenas denota a intenção de escrever “diferente”, “bonitinho”, mas sem compromisso com a linguagem de boa qualidade. O tal deputado não “pontuou” nada, apenas falou, disse, opinou ou coisa que o valha.

A SOFISTICAÇÃO NOS CONDUZ À INDIGÊNCIA

O ABC do Jornalismo ensina que a linguagem desse meio precisa ser direta, objetiva, clara, as palavras escolhidas com rigor técnico, porém simples, próximas da linguagem cotidiana, mas fiéis à norma culta. Ao tentar sofisticar-se, o texto jornalístico, ao contrário de atingir esse objetivo equivocado, cai na indigência e depõe contra quem o produziu. Entende-se que simplicidade (também concisão, objetividade, elegância e clareza) é meta a ser perseguida, não evitada pelo redator. A discussão sobre o paupérrimo “pontuar” nos tomou o tempo da apreciação de outros verbos. Fica para depois.

JOVENS E ANTIGAS TARDES DE AUTÓGRAFOS

Espero que minhas gentis leitoras (e leitores!) jamais tenham vivido a experiência de uma tarde de autógrafos, do lado de quem assina o livro.  O que digo? Não tarde, mas noite, pois já não se autografa à luz do sol, que esta é usada para atividades menos “poéticas”, como o ganho honesto do pão diário – solidificando a idéia já antiga de que essas filigranas intelectuais são coisas de desocupados. Entre parênteses, lembrar que o pai do poeta Telmo Padilha costumava dizer ao autor de Anjo apunhalado que literatura não é coisa de gente séria, melhor seria “trabalhar”. Acordemos, então, que são noites (e não tardes) de autógrafos. E que mais parecem de torturas.

ATÉ AMIGOS SE TRANSFORMAM EM ESTRANHOS

Um autografador (penso que o termo foi inventado agora) é um ser absolutamente solitário em meio à festa de lançamento, sentado à mesa, constrangido com a fila que se faz à sua frente, não raro com um sorriso descorado dirigido a cada possível (futuro) leitor. Estes, os leitores, parecem guardar entre eles uma característica que os identifica: são torturadores, embora utilizem métodos diferentes. Uns brincam com o autor, evitando dizer o nome, ou levá-lo escrito num papelzinho, o que é a prática mais comum. “Ele me conhece demais!” – dizem à pessoa encarregada de fazer esta anotação importante, e a convencem de que são mesmo velhos amigos do pobre escritor.

ALBERT EINSTEIN E A FILHA DESCONHECIDA

E são. O problema é que este disso já não tem mais notícia, tão apavorado se sente, a ponto de olhar antigos companheiros fazendo aquela cara de que “eu o conheço de algum lugar” – mas o nome, que é bom, cadê? Conta-se que Einstein (aquele mesmo!) estava numa tarde de autógrafos, quando chegou a vez, na fila, de uma simpática mocinha, com o livro para ser autografado. O cientista a reconheceu (de alguma forma), coçou a cabeleira, mas não conseguiu dali tirar o nome daquela pessoa, que lhe parecia muito familiar. Envergonhado, com um sorriso sem graça, lhe diz: Desculpe. Não me lembro do seu nome… E ela: Bobagem, papai. Escreva apenas “para minha filha…”.

USE O DICIONÁRIO E DURMA TRANQUILAMENTE

No começo do mês, chamamos a atenção para a armadilha em que caíra a Direc-06 (Ilhéus), ao confeccionar um cartaz eivado de boas intenções, mas com um chute nas chamadas partes pudendas da gramática portuguesa: “Bem Vindos”, em vez de “Bem-Vindos”. Erro crasso, grosseiro, palmar? Nem tanto, nem tanto, pois é difícil encontrar neste vasto país alguém que saiba, de verdade, usar o hífen. “Hífen não é sinal, é castigo de deuses mal-humorados”, costumo dizer, com o dicionário em punho. E acabo de revelar meu segredo: contra hífen, dicionário é o melhor remédio. Vá lá e fique livre de perder o sono após escrever um texto.

DIREC-6 AGE COM DISCRIÇÃO E HUMILDADE

Isto é para dizer que a Direc-06 retirou o cartaz logo após nosso comentário e, com igual discrição, o recolocou esta semana, corrigido. Esta coluna rejeita sentir-se responsável pela mudança, porém não resiste em festejar a humildade com que o agente público recebeu nossa crítica, e a agilidade com que reconheceu o equívoco e tratou de repará-lo. O escritor sergipano Gilberto Amado (que vem a ser irmão do “itabunense” Gileno e tio do “ilheense” Jorge) fez uma frase que me guiou pela vida inteira (mesmo antes de conhecê-la): “Sem dicionário, não posso escrever”. Habituar-se a, frente à dúvida, levá-la ao dicionário me parece um conselho sensato.

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COLUNA É REPRODUZIDA NO MP CIDADANIA

A partir da semana passada, o Universo Paralelo passou ser reproduzido no site MP Cidadania, do Ministério Público Estadual, por iniciativa do promotor Clodoaldo Anunciação (foto). Após entendimentos com o Pimenta, o MP passa a utilizar, no todo ou em parte, a seu exclusivo critério, e sem custos, o material aqui publicado. O promotor faz doutorado em Direito Internacional na Sorbonne, em Paris (de onde nos segue) e neste momento se encontra em Itabuna, de férias, em visita a familiares, colegas e amigos. “Sou leitor assíduo da coluna e não escondo minha admiração pelo trabalho do seu autor”, afirmou Clodoaldo Anunciação. Merci.

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BETHÂNIA DESCONSTRUIU ORESTES BARBOSA

Sílvio Caldas, que fez a melodia de Chão de estrelas para uma letra de Orestes Barbosa, não acreditava nessa canção, por ter os versos todos em decassílabos. Enganou-se. Chão de estrelas transformou-se numa espécie de hino da MPB e ainda teve um verso eleito por Manuel Bandeira como o mais belo da poesia brasileira: “Tu pisavas nos astros, distraída…”. Maria Betânia não decorou a letra corretamente e mudou para estranhas onze sílabas um dos versos, o sétimo: “Meu barracão no morro do Salgueiro” ficou “Meu barracão no morro do Salgueiro”. Crime inafiançável contra a métrica .

NOEL E A (INOCENTE) SALADA PRONOMINAL

A mesma Betânia gravou em 1965 uma seleção de Noel Rosa (deixando Araci de Almeida enciumada), quando deu umas cacetadas no Poeta da Vila: o verso (Último desejo) “Nunca mais quero o seu beijo” foi transformado em “Nunca mais quero o teu beijo”. E antes que sobre mim caiam de pau os linguistas permissivos, lembro que Noel era letrista do modelo clássico, que nunca poria no mesmo samburá os pronomes você e teu: “Perto de você me calo/ Tudo penso, nada falo… Nunca mais quero o seu beijo…”. Os professores antigos, formais, identificavam essa mistura de você e teu como “salada pronominal”.

ATENTADO CONTRA O ARTISTA E A HISTÓRIA

Em outra faixa, Betânia investe contra Feitio de oração: “Por isso agora/ Lá na Penha vou mandar” foi alterado para “lá pra Penha…”;  “E quem suportar uma paixão/ Sentirá que o samba então/ Nasce do coração transformou-se em “Nasce no coração”. E nem me venham dizer que essas alterações não agridem o sentido do texto. Embora isto seja verdadeiro, a obra literária, para o bem ou para o mal, há de ter preservada na forma como foi concebida. Mudá-la, à revelia do autor, é uma intervenção abusiva e autoritária, um atentado indefensável contra a arte, o artista e a história. Isto se não for  apenas burrice.

EMÍLIO SANTIAGO E AS ROSAS QUEIXOSAS

Sendo a gravação de música um trabalho coletivo, fica difícil entender que não surja nem uma só pessoa na equipe para dizer “alto lá!” e evitar as pedras comumente atiradas contra os letristas. Demos aqui, por motivos óbvios, só uma pequena amostra. E mesmo com as limitações de espaço, vai mais uma: Emílio Santiago, ao gravar As rosas não falam (Cartola) comete um erro de palmatória: onde estava “Queixo-me às rosas” ele leu “Queixam-me as rosas”. Pedrada tamanho família. A lição vem de Ângela Maria, uma das maiores da MPB: ao cantar, costumava ter ao alcance da mão uma “pesca” da letra.

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NOEL ROSA, REPÓRTER DO SEU TEMPO

Dizer que Noel foi “repórter do seu tempo” é, embora lugar-comum, verdade. Nosso último vídeo da série de quatro com que marcamos o centenário do Poeta da Vila é Onde está a honestidade? (melodia de Francisco Alves), aqui na voz de Ivan Lins. Uma “reportagem” atual, 77 anos depois.

(O.C.)