Walmir Rosário transforma entrevista em aula de jornalismo
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Walmir Rosário é um contador de histórias, no melhor sentido da expressão. Radialista, jornalista, escritor e advogado, faz da palavra instrumento de trabalho. Com cinco décadas na estrada, sua trajetória se confunde com a história recente do jornalismo no sul da Bahia. Tudo começou no rádio. “Por acaso”, recorda Walmir ao PIMENTA. Estreou com participações em programas religiosos da Rádio Sociedade de Feira de Santana, dos Capuchinhos.

Nascido em Ibirataia, em 1950, viveu em Itabuna desde os dois anos. Deixou o município cedo para estudar nos seminários dos Capuchinhos, em Vitória da Conquista e Feira de Santana. Quando a ordem de inspiração franciscana assumiu a Rádio Clube de Itabuna, sob o comando de Frei Hermenegildo, Walmir voltou para a cidade, manteve as participações em programas religiosos e foi contratado pela emissora.

Nos tempos áureos do cacau, integrou a equipe de comunicação da Ceplac. Também apresentou o programa De Fazenda em Fazenda, na Rádio Difusora de Itabuna. Na imprensa escrita, foi editor dos jornais A Região e Agora e repórter do Correio da Bahia – hoje Correio 24h. Prestou serviços, como freelancer, a jornais de Salvador e das regiões Sudeste e Sul do Brasil.

Ainda na comunicação, atuou em campanhas eleitorais e foi assessor e secretário das prefeituras de Itabuna, Ilhéus, Itajuípe, Floresta Azul e Canavieiras. Com a persona de advogado, militou em Itabuna (inclusive, como procurador do município), Ilhéus e Canavieiras, onde mora atualmente.

Já publicou livros como Josias Miguel – 70 anos de história; Crônicas de Boteco, um guia sem ordem; Como sobreviver à pandemia; Os Grandes craques que eu vi jogar – nos estádios de Itabuna e Canavieiras; O Berimbau, valhacouto de boêmios. Tem mais quatro obras no prelo e escreve crônicas semanais no blog que leva seu nome. e que também é reproduzido por este site.

Nesta entrevista ao PIMENTA, Walmir Rosário recupera os grandes nomes das redações grapiúnas e conta momentos pitorescos e tensos que viveu na cobertura da política. Também analisa o exercício da profissão no sul da Bahia e compara a dinâmica entre a sociedade civil organizada e a imprensa nas cidades de Ilhéus e Itabuna. Leia.

PIMENTA – Quais são as características elementares de uma boa história?

WALMIR ROSÁRIO – Todas as histórias são boas, dependendo de como são contadas. Basta ter começo, meio e fim bem definidos que agradará. Claro que um personagem forte, por si só, se garantirá. É preciso que o comunicador compreenda a mensagem que o personagem carrega e a transmita para o texto. O personagem pode ser político, empresário, médico, engenheiro, policial, infrator, cumprindo pena ou não, padre, pastor, ou o chamado “alguém do povo”. Basta que tenha uma história verdadeira para contar. E todas as histórias são boas, volto a dizer, a depender do ponto de vista, pois pouco se conhece da vida de uma pessoa, desde a mais simples até as que ocupam os altos cargos, os poderosos. Cada um tem o que dizer.

E as de um bom narrador?

Saber ouvir, apurar, ter paciência e senso de desconfiança quando não conhece o personagem. Não pode deixar o personagem correr solto, falar à vontade. É bom interromper a entrevista quando acredita que a fala não tem sentido. Se for verdadeira, ele retomará sem problemas. Um bom narrador tem que ter um bom ouvido, anotar tudo que considere importante e, se possível, gravar. Na gravação dá para sentir a emoção do entrevistado, se fala a verdade ou não, a depender da segurança – não confundir com nervosismo. O comunicador tem que ser um profissional especialista em conhecimentos gerais, saber concatenar a história, ligar um fato a outro, conhecer lógica, mesmo de forma rudimentar, e ter raciocínio rápido. É esse feeling que vai tornar a narrativa agradável, texto simples e de fácil leitura, e, sobretudo, verdadeira. E isso é tudo que agradará a um leitor, não importando o seu nível de escolaridade. Escrever para todos é o ideal e mais inteligente.

É possível comparar a qualidade do jornalismo de 40 anos atrás com a do atual? Evoluiu?

Apesar de saudosista, as comparações nem sempre são verdadeiras, pois é preciso situar o tempo, o espaço, os costumes. No século passado, até o início da década de 1950, boa parte dos jornais eram veículos de propaganda de partidos e governo. Em Itabuna este fato está bem documentado por Ramiro Aquino no seu livro De Taboca a Itabuna, 100 anos de jornalismo. A partir de 1960, houve uma mudança na forma da apresentação dos textos e diagramação. Dessa época pra cá muito se falou em jornalismo com isenção, e até que chegou a ser praticado pela direção dos principais veículos, embora muitos pequenos também tenham feito o dever de casa. Do ano 2000 para cá, a militância política voltou em cheio aos meios de comunicação, só que agora com o engajamento da direção.

Falta isenção?

Briguei muito nos veículos de comunicação para manter a democracia, dividindo os espaços com a sociedade. Muitas vezes, fui incompreendido. Cada um tem sua ideologia, mas não pode ser vendida se sobrepondo aos fatos. Se o jornalista quer expressar opinião, que assine seu pensamento. Não pode é influenciar numa matéria substantiva, adjetivando-a, distorcendo os fatos. Há algum tempo os comunicadores se revestem de policiais, representantes do ministério público, juízes, sem os poderes conferidos. Muitas vezes, causam prejuízos irreparáveis e o mea-culpa não é feito com o destaque do dano. Sempre dei espaço a todos os segmentos. Vez ou outra, no mesmo número do jornal, assinava um artigo contrário àquela posição. Então, posso afirmar, houve uma perda de qualidade, embora tenhamos bons veículos e excelentes profissionais.

Poderia citar profissionais em quem se inspirou no jornalismo?

Minha infância e adolescência foi bastante rica na comunicação, pois ouvíamos e líamos grandes profissionais. Em Itabuna, em frente ao Colégio Estadual, ficava a sede do Intransigente, para onde eu ia ver formatar o texto do jornal em tipos frios, conversar com os redatores. No Diário de Itabuna, ainda na Paulino Vieira, ficava horas conversando com Milton Rosário, o editor da época. Na publicidade, me encantava com as sacadas rápidas de Cristóvão Colombo Crispim de Carvalho (CCCC); o mesmo com Nelito Carvalho, os editoriais do poeta santamarense Plínio de Almeida no rádio e nos jornais; o poder da lábia de Titio Brandão, Germano da Silva, Pedro Lemos, Gonzales Pereira, Orlando Cardoso, Geraldo Santos (Borges), Edson Almeida, Iedo Nogueira. E, nos jornais do sul, Carlos Castelo Branco, Nélson Rodrigues, Waldir Amaral, Rui Porto e tantos outros.

O jornalismo do sul da Bahia conseguiu estabelecer identidade e marcas próprias? Ele tem (teve) expoentes no patamar da nossa literatura, por exemplo?

O poeta e escritor Plínio de Almeida é um deles. Alguns jornais, muitos deles de vida efêmera, trouxeram grandes nomes. Um desses veículos foi o SB – Informações e Negócios, uma maternidade do jornalismo e literatura de Itabuna, capitaneado por Nelito Carvalho. Época de Jorge Araújo, Manoel Lins, Hélio e Célio Nunes, Firmino Rocha, Antônio Lopes, Kleber Torres. Quase esqueci de dois monstros sagrados, Telmo Padilha e Hélio Pólvora.

Qual foi o episódio mais pitoresco que viveu na comunicação política?

Walmir relembra episódio pitoresco ao lado de José Adervan

No jornal Agora, fazíamos constantes matérias sobre os serviços públicos nos bairros. Numa delas, recebemos reclamações da Prefeitura de Itabuna, de que não seriam verdadeiras. Como confiava na repórter, resolvi convidar o diretor José Advervan para ir constatar a veracidade. Quando chegamos lá, a situação era pior do que a narrada. Quando voltávamos, Adervan recebeu uma ligação do prefeito para dizer que era tudo mentira, no que o diretor revela que ele estava justamente vindo de lá e que teria comprovado as denúncias já publicadas e outras várias. E tudo acabou em risadas.

Tem mais?

Eu era editor do jornal A Região e repórter do Correio da Bahia. A Região não era bem-vista pelo governo municipal e eu fui atender a um convite da assessoria para elaborar um caderno especial de 32 páginas para a Prefeitura de Ilhéus. Época de festas juninas, inauguração de obras, apresentação de um novo futuro com a vinda de empreendimentos. Cheguei, fui anunciado e me pediram para aguardar numa antessala, até que fosse encerrada uma reunião com os profissionais. De onde eu estava, ouvia tudo que falavam. De repente, o assunto da reunião deles foi a elaboração de um caderno vibrante sobre Ilhéus, que eles comparavam com uma edição de A Região. Isto até que fui visto, quando passaram a esculhambar o jornal A Região. Tranquilo, continuei sentado, aguardando ser chamado para a pauta do especial do Correio da Bahia.

E o momento mais tenso que já enfrentou?

O jornalismo é sempre tenso, desde a entrevista, a apuração, a redação e o fechamento do jornal – escrito, falado e televisado. Imagine quando alguém se sente contrariado em seus interesses. Já recebi a visita de pessoas que já chegam prometendo bater, matar. Como editor, sempre tinha que comprar a briga, por telefone ou pessoalmente. Nunca me intimidei e, de início, busquei uma conversa franca e educada, o que quase sempre conseguíamos.

Já teve ameaça?

Várias. A primeira no caso da venda da Sulba, em que fiz uma série de reportagens para o Agora; de outra feita prometeram me matar quando estivesse em um bar; que poderia ser preso em flagrante por posse de drogas em meu carro. Nesse caso sugeri que melhor seria colocar litros de whisky ou cachaça, do contrário ninguém acreditaria. Mas continuo vivo.

Os movimentos sociais, as entidades de classe e a imprensa de Itabuna têm mais influência nas disputas eleitorais do que em Ilhéus?

Infelizmente, os jornais perderam espaço em Itabuna e Ilhéus. Os que continuam sobrevivem como podem e bem-feitos. Há uma grande diferença na comunicação entre Itabuna e Ilhéus, e uma distinção é a sede dos canais de TV. De certa forma, em Itabuna, a comunicação sempre foi mais incisiva, e as entidades de classe sempre souberam utilizar os veículos de comunicação em causa própria. Esse poder ficou maior com as mídias sociais, de maior agilidade e sem filtros. Os políticos que sabem interagir com a dita imprensa e as redes sociais levam grande vantagem. Mas, nos últimos anos, Ilhéus avançou no poder da mídia tradicional e da rede social, não só com as notícias corriqueiras, como também das analíticas, influenciando mais eleitores. Desde os anos 1980 que o sociólogo Agenor Gasparetto costuma dizer que a eleição em Ilhéus é decidida um ano antes. Como exemplo mais antigo, a eleição de Valderico Reis, em 2004. Duas cidades, pesos diferentes, mas que passam a ficar com a mesma cara, pelo trabalho de alguns dos comunicadores ilheenses.

Walmir Rosário e Odilon Pinto, em Brasília, na comemoração do aniversário do Ministério da Agricultura || Foto Águido Ferreira
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Realmente, os esforços de Mílton e Zé Haroldo não foram em vão. Odilon era um artista nato; um músico que tocava os sete instrumentos e ainda cantava; um comunicador por excelência e que sabia fazer se entender pelo doutor e o operário rural.

 

Walmir Rosário

Que me perdoem os puristas acostumados a tecer comentários desairosos sobre os estabelecimentos dedicados à transferência de felicidade ao gênero humano por meio da venda de bebidas e tira-gostos. Desinformados ou rancorosos, não conhecem nada do que se passa entre aquelas quatro paredes e mesas e onde se conversa sobre todos os temas, com exaltação e nenhuma briga a perdurar.

Para mim, não há melhor local recomendado para aliviar o stress, enriquecer o conhecimento, construir amizades sólidas, duradouras, mesmo que não se conheça nada de nada sobre a origem e a família do quase irmão. Chego até mesmo a nomear um boteco como um templo da cultura, dada a amplitude dos assuntos ali abordados, enriquecendo o cabedal de conhecimento dos fiéis frequentadores.

Digo, afirmo e provo! E eis que, no sábado passado, eu e os amigos Batista e Arenouca resolvemos colocar a conversa em dia e nos dirigimos ao Laginha, em Canavieiras, boteco que se preza pela cerveja gelada e bons tira-gostos. Nem bem chegamos à mesa, encontro o colega advogado Leonício Guimarães (Léo), canavieirense, ex-vereador em Itabuna, às voltas das reminiscências sobre o rádio grapiúna.

Há muito queria lembrar o texto da vinhenta de encerramento do programa De Fazenda em Fazenda e Na Fazenda do Odilon, que apresentamos – o locutor que vos fala e Odilon Pinto – há bem mais de 30 anos. Confesso que não me lembrava, mas diante da insistência de Léo, começamos a falar sobre os programas, os estilos, a qualidade da informação que levávamos a um público urbano e rural.

Para os que não conheceram ou sequer ouviram falar, o programa de rádio De Fazenda em Fazenda foi um canal de comunicação entre a Ceplac e seu público-alvo: agricultores e trabalhadores rurais, traduzindo as mensagens técnicas ao homem do campo de forma simples, alegre e descontraída. Teria de levar a mensagem técnica de forma compreensível e que produzisse resultados positivos em toda a região cacaueira da Bahia.

Alguns formatos foram pensados e levados ao ar por grandes comunicadores, mas a interação não chegava ao pretendido, até o chefe da Divisão de Comunicação, Mílton Rosário, se bater com Odilon Pinto. Só que tinha um problema quase intransponível: Odilon Pinto era comunista de carteirinha, volta e meia interrogado e preso, e não poderia trabalhar num órgão do governo federal, principalmente nos tempos da revolução de 64.

Para convencer os militares, foi necessário o aval de Mílton Rosário ao secretário-geral José Haroldo Castro Vieira, que conseguiu convencer os militares.

– O homem é bom e eu respondo por ele – garantiu José Haroldo.

Realmente, os esforços de Mílton e Zé Haroldo não foram em vão. Odilon era um artista nato; um músico que tocava os sete instrumentos e ainda cantava; um comunicador por excelência e que sabia fazer se entender pelo doutor e o operário rural. Paralelamente ao programa de rádio, Odilon criou um grupo regional, que se apresentava nos eventos técnicos e culturais da Ceplac, ou nas noites festeiras das cidades próximas.

Mas eis que chega a democracia e os homens do PMDB mudam a direção da Ceplac e resolvem, também, trocar a emissora de rádio: em vez da Rádio Jornal de Itabuna, onde era apresentado, o De Fazenda em Fazenda passou a ser transmitido na Rádio Difusora, do político Fernando Gomes. De pronto, Odilon enfrenta a direção da Ceplac, se coloca à disposição da Dicom e passa a apresentar um seu programa, agora Na Fazenda do Odilon.

Para os ouvintes isto criou uma confusão danada, pois as duas emissoras apresentavam programas parecidos, com nomes e apresentadores diferentes. E assim continuou. Após um curto espaço de tempo e muitos apresentadores, acumulo a reportagem e a apresentação do De Fazenda em Fazenda, na Rádio Difusora, das 4 às 7 horas, sem abandonar o trabalho nos veículos impressos e de vídeo da Ceplac.

Para competir com o artista e amigo dos ouvintes, Odilon Pinto, fizemos uma reformulação no programa, criando quadros com a participação de engenheiros agrônomos, médicos veterinários, técnicos agrícolas, utilizando toda a estrutura dos escritórios da Ceplac na região, além de músicas. Deu certo, e por incrível que pareça, chegamos a receber cerca de até 600 cartas por semana, enviadas por uma população quase sem alfabetização.

E Odilon continuou fazendo sucesso com seu programa. Tempos depois deixo a Ceplac (depois retornei), e Odilon Pinto resolve se candidatar a deputado estadual.

– Está eleito, diziam, basta encomendar o terno para a posse – garantiam todos.

Odilon, que sempre foi filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), se candidatou pelo Partido da Reconstrução Nacional (PRN), de Collor de Mello, à época liderado na Bahia pelo empresário Pedro Irujo. A cada pesquisa o nome de Odilon Pinto aparecia com maiores pontuações. Essa confiança do eleitorado contagiou Pedro Irujo, que investiu pesado na campanha eleitoral de Odilon.

Proibido pela lei eleitoral de apresentar o seu programa, Odilon me convida para tomar seu lugar ao microfone da Rádio Jornal e entra de cabeça na campanha que poderia lhe dar uma vaga na Assembleia Legislativa. Devido a minha experiência em campanhas políticas, uma semana antes da eleição, perguntei ao candidato Odilon se já tinha elaborado o planejamento para a boca de urna. Recebi um não como resposta.

Me disse que no dia da eleição sairia de casa, votaria e retornaria ao lar, onde descansaria da campanha. Nesse dia, saí da rádio e fui a Itajuípe, onde atuava como assessor de comunicação. Uma rápida visita às entradas da cidade, observei como os políticos locais abordavam os eleitores que chegavam da zona rural para votar e recebiam promessas de vantagens. Me veio à cabeça a falta de planejamento e a mudança nas pesquisas.

Resultado, o consagrado Odilon Pinto obteve uma votação pífia, e sequer alcançou a suplência. Pouco tempo depois, Odilon conclui seu mestrado, depois doutorado em Linguística e se dedica ao ensino do português na Uesc e outras faculdades.

Antes que me esqueça, consegui lembrar do jingle de encerramento do programa:

– Acorda João Grilo, Porfírio e Odilon, que o momento é bom pra nós viajar, o jegue corre que faz até medo, e amanhã bem cedo nós torna (sic) a voltar.

Walmir Rosário é radialista, jornalista e advogado.

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ESCREVER NÃO É TRABALHO, É PASSATEMPO

Ousarme Citoaian

Milton Rosário, integrante de qualquer lista, por menor que seja, dos melhores jornalistas de sua geração (além de ser gente de excepcional qualidade), me contou esta. Certa vez, o pai do poeta Telmo Padilha (foto) virou-se para o autor de Girassol do espanto e, olho no olho, o chamou à terra: “Meu filho, deixe esse negócio de escrever e arranje um trabalho decente, pois literatura não dá camisa a ninguém”. Telmo persistiu e obteve reconhecimento nacional, o que não invalida a lição de que intelectual, para ganhar uma camisa nova, precisa suar (e muito!) a antiga. Não temos tabela de preços nem sindicato como proteção – e escrever, diz o senso comum, não é trabalho, é passatempo.

JORNALISTA É QUEM VIVE DO JORNALISMO

Aqui, uma questão semântica. Para a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) –  que anda pelas redações ameaçando prender e arrebentar quem por lá se encontre que não seja diplomado – é jornalista profissional quem tem o curso superior específico (aos demais, considerados no exercício ilegal da profissão, cadeia). Já o conceito “clássico” é diferente: jornalista é quem atende aos dois requisitos de 1) trabalhar regularmente na atividade e 2) ser remunerado por esse trabalho. Com ou sem diploma, é profissional o indivíduo que exerce o jornalismo periodicamente e é pago para fazê-lo. Fora dessa fórmula simples e clara, não há salvação, pouco importa o que pense a Fenaj.

“GANHARÁS O PÃO COM O SUOR DO TEXTO”

A região tem muitos (e bons) jornalistas não diplomados, e me arrisco a citar apenas um, na tentativa de síntese do que quero dizer. Refiro-me a Eduardo Anunciação (foto), um “bicho de jornal”, com mais tempo de redação do que urubu de vôo (às vezes penso que ele, por essa escrita em linhas tortas próprias dos deuses, teria nascido num ambiente de jornal – e, para completar a quimera, bebeu tinta de impressão, em vez de leite materno). Nunca foi balconista de loja, não trabalhou em banco, não sabe botar meia-sola em sapato, não é pedreiro nem médico. É jornalista. Daqueles que lutam com as palavras todos os dias, mal rompe a manhã – e pagam o supermercado com o suor do seu texto.

JORNALISMO DO DIFUSO E DO IMPALPÁVEL

O Sul da Bahia é terreno fértil para  colunistas de todos os jaezes, com amplo espectro de textos dirigidos a leitores interessados em confetes, serpentinas, lantejoulas, plumas, paetês ou temas difusos e impalpáveis. Temo-los também de amenidades, política, economia e do que mais lhes der na telha e for suportado pela “democracia” dos donos de veículos. Esse banquete de vaidades e tolices (exemplo típíco na foto) nada de bom acrescenta ao pensamento regional, mas é incentivado pelos jornais: são colunas e artigos que nada custam para aspergir ideias de segunda mão, enquanto tomam espaço dos profissionais. Jornalistas como Eduardo correm perigo: se escaparem da Fenaj, serão desempregados pelos diletantes.

PARA O BEM OU PARA O MAL, EIS O HÍFEN

Não há dúvida: a maior armadilha de nossa ortografia é o hífen. A depender do caso, ele é bem-vindo e bem-visto. É o hífen é do bem, digamos. Mas quando surge sem ser “convidado”, causa mal-estar e mau humor, deixa o leitor mal-humorado, faz o texto mal-amado, sugere que quem o escreve é mal-educado (mal-afortunado, em termos de língua culta). Aí, é o hífen do mal. Às vezes, ele é bendito, bem-visto, benquisto, benfeitor e bem-querido; noutras, é malnascido, malcuidado, malcriado, mal-ajambrado, mal-afamado, malvisto e, portanto, contra-indicado. É o contra-exemplo da boa construção.

GOVERNO MUDA GRAMÁTICA PORTUGUESA

O governo estadual houve por bem abolir, por sua inteira conta e risco, o hífen de “Bem-Vindos”. A CLMH (Comunidade dos Linguistas Mal-Humorados) há de dizer que isto não tem importância, pois todos os leitores vão entender que a placa indica a gentileza e a cortesia com que a autoridade recebe quem visita a Direc de Ilhéus. Mas peço licença para manifestar meu estranhamento com mais este descaso oficial com a língua portuguesa. Afinal, se nem num local feito por e para professores as regras gramaticais são obedecidas, onde mais vamos obedecê-las?

O VEÍCULO DÁ SUA OPINIÃO NO EDITORIAL

Era o fim do ano, numa redação de jornal. O redator-chefe vira-se para o editorialista e lhe encomenda, para o dia seguinte, um editorial sobre Jesus Cristo. “Contra ou a favor?” – pergunta candidamente o articulista… A história é conhecida por todo jornalista, ou quem trabalhou numa redação – seja como estagiário, servindo cafezinho ou dobrando jornal. Ela pretende ilustrar que o editorial não é a opinião de quem o escreve, mas a do veículo que o publica. Teoricamente, o autor de editoriais é alguém com isenção bastante para, como na historieta acima, escrever contra ou favor de Jesus, com a mesma desenvoltura.

CAVALO COM CHIFRES E COBRA COM ASAS

Se o prezado leitor (ou a prezada leitora!) concluiu que não se assina editorial, parabéns. Não se assina porque, se assinado, vira artigo “comum”, a espelhar a opinião do signatário, não mais do veículo. Editorial “assinado” se define com uma palavra de nossa língua culta pouco utilizada por nós, mas corriqueira em Portugal: contrafação – que vem a ser fraude, disfarce, fingimento, imitação, falsificação, e por aí vai. Editorial “assinado” é tudo isso (e mais alguma coisa), mas editorial não é. Será, mudando da língua erudita lusitana para a popular brasileira, um cavalo com chifres. Ou uma cobra com asas.

ROBERTO MARINHO E O EDITORIAL ASSINADO

Há tempos, o Jornal Nacional costumava, numa noite sim e na outra idem, antecipar o que O Globo publicaria no dia seguinte, como “o editorial do jornalista Roberto Marinho” – na foto, à direita do general Figueiredo. No afã de agradar ao chefe (ou, quem sabe, por ordem do mesmo), violentavam-se as regras e se desserviam as novas gerações de redatores. Essa contrafação (!) durou até quando apareceu no JN alguém com juízo e pôs cobro  à farsa – ou Doutor Roberto se cansou da brincadeira. O fato é que este morreu e, para nosso alívio, resolveu, em definitivo, o problema. “Editorial do jornalista Roberto Marinho”: nunca mais.

A LEI DE MURPHY EM VISITA ÀS REDAÇÕES

Morre o homem, ficam-lhe os defeitos. Em pleno 2010, há veículos por aí que identificam seus editoriais com a palavra “Editorial” no alto da página (o que é uma informação supérflua, ociosa, mas aceita por alguns grandes veículos) e ainda os assinam, numa prova irretocável de que não sabem o que fazem. Mas, como diz o muito citado Murphy (creio que esta é a Lei nº 81, do seu elenco de 100), “nada está tão ruim que não possa ficar pior”: pois acaba de surgir entre nós o editorial com foto. Isso mesmo: editorial assinado e com foto de quem o assina. Aí, pego meu boné e caio fora, pois a discussão já adentrou a órbita da insensatez .
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NOEL E A FÁBRICA QUE NÃO ERA DE TECIDOS

A imortal Três Apitos foi composta em 1933 para uma das paixões de Noel Rosa, Josefina (a Fina), que ele julgava trabalhar numa fábrica de tecidos (a Confiança) mas que, na verdade, era empregada numa pequena fábrica de botões.  Esse engano o levou a criar a famosa rima de pano/piano.  Ao descobrir o equívoco, ele manteve os versos. Coisa de poeta: sacrificou a verdade, em benefício da rima: “Mas você não sabe/ Que enquanto você faz pano/ Faço junto do piano/ Esses versos pra você”. E aqui há outra pequena fraude, pois Noel nunca foi pianista. Vejam o contraste desses dois operários em construção: a moça tece pano, ele tece poesia.

A POESIA RESISTINDO À INDUSTRIALIZAÇÃO

Aliás, contraste é o que não falta nesta bela canção de Noel (foto). O mundo, com seu pragmatismo, parece conspirar contra o amor e outras cardiopatias, da mesma forma que a fábrica, símbolo do progresso, contrapõe-se ao piano – que o poeta usa para dirigir-se à amada. Três apitos mostra o mundos dividido em dois: de um lado, o artista e sua carga de sensibilidade, claramente à margem da sociedade de consumo; do outro, o capitalismo, o progresso industrial, a busca do lucro. “Quando o apito da fábrica de tecidos/ Vem ferir os meus ouvidos/ Eu me lembro de você”. O chamado ao trabalho é, para o poeta, a invocação para o amor.

APESAR DOS ERROS, UM MOMENTO MÁGICO

Noel Rosa foi listado aqui entre pessoas e efemérides que completavam, ao lado de Itabuna, um século em 2010. De repente, vejo que mais um ano se passou, sem nenhuma homenagem ao Poeta da Vila – logo eu, que tenho predileção pela sua arte, e até, se posso ser imodesto, razoável conhecimento de sua lavoura. Caso esta coluna se mantenha, vamos postar ainda uns dois vídeos sobre este grande nome da cultura brasileira. Hoje, um grande momento da MPB, reunindo Elizeth Cardoso e Jacob do Bandolim. Mesmo com a grande intérprete, ao vivo, errando a letra de forma deplorável, penso que vale a pena ouvir.

(O.C.)