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Não sou rico, meus familiares e amigos também não dispõem de grandes recursos. Porém, em sua maioria, tem algo, em comum, o gosto pela leitura, gosto esse que o inominável quer nos tirar..

Cláudio Rodrigues

Membro da bancada do Partido Comunista e eleito para a Assembleia Constituinte de 1946, o então deputado baiano Jorge Amado, eleito por São Paulo, foi autor da Emenda 2.850, aprovada naquele ano e 42 anos depois ratificada e ampliada na Constituição Cidadã de 1988. A Emenda do parlamentar e escritor grapiúna proibia a União, Estados, Distrito Federal e Municípios de criar impostos sobre livros.

Eis que o desgoverno de extrema-direita de Jair Bolsonaro em seu projeto de reforma fiscal prevê taxação sobre a aquisição de livros em 12%, com o argumento pífio de que “pobre não lê”, somente os ricos. O mesmo desgoverno que não tributa bancos, grandes fortunas e zera alíquotas para importação de armas quer dificultar o acesso aos livros, inclusive os didáticos.

O escritor Monteiro Lobato disse que um país se faz de homens e livros. Já o atual mandatário brasileiro acredita que uma arma tem mais valor que o exemplar de um livro. Não sou rico, meus familiares e amigos também não dispõem de grandes recursos. Porém, em sua maioria, tem algo, em comum, o gosto pela leitura, gosto esse que o inominável quer nos tirar.

Como pode um presidente que já assumiu que a única “obra” que leu, se é que leu, foi Verdade Sufocada, autobiografia do torturador Brilhante Ustra, e que nem bula de cloroquina, que ele receita a 3×4 para combater a Covid-19, chegou a ler. Quer dificultar o acesso dos brasileiros aos livros? Coisa que nem mesmo os militares – com seu regime de pouco mais de duas décadas de exceção – foram capazes de fazer.

Com o intuito de bajular o chefe, o “Posto Ipiranga”, cada vez com menos combustível, Paulo Guedes e os burocratas da Receita Federal criaram um argumento desprezível para dificultar que os brasileiros obtenção conhecimento e cultura literária.

Como disse Nelson Cavaquinho e Elson Soares, na letra da canção Juízo Final, “quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer…”. Cabe aos escritores, editores, deputados, senadores e – principalmente – ao povo se unir para barrar essa proposta que extrapola o absurdo. O legado do amado Jorge irá prevalecer.

Cláudio Rodrigues é consultor.

Tempo de leitura: 5 minutos

MONTEIRO LOBATO E O “PATRULHAMENTO”

1Caçadas de PedrinhoOusarme Citoaian | [email protected]

Creio que ninguém de minha geração sentiu prazer na polêmica que envolveu o escritor Monteiro Lobato (1882-1848), acusado de racismo. De Caçadas de Pedrinho (de 1933) foram pinçadas referências racistas, em relação a Tia Nastácia, negra.  Numa delas, o autor a compara a uma “macaca de carvão”. É racismo “leve”, dissimulado, que o Ministério da Educação, alertado, não levou a sério – e em que vários escritores, Ziraldo à frente, pregaram uma velha etiqueta: patrulhamento ideológico. Tudo ia bem até que chegamos às cartas do autor do Sítio do pica-pau amarelo – e vimos que o racismo em Monteiro Lobato é de estarrecer seus velhos admiradores.

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De tempo em que o racismo era “moda”

O escritor manteve vasta correspondência com o paulista Renato Kehl (1889-1974) e o baiano Arthur Neiva (1880-1943), revelando-se adepto de uma ideia esdrúxula chamada eugenia (que defendia a superioridade da raça “branca” sobre as demais), definida como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer qualidades raciais das futuras gerações”. O racismo estava em “moda” no começo dos anos vinte: lembremo-nos de que Euclides da Cunha também era apegado a isso, e que, tendo Renato Kehl como líder, criou-se, em 1918, uma certa Sociedade Eugênica de São Paulo. Kehl não queria que o Brasil aceitasse imigrantes, a não ser “brancos”.

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3KKKPovo da Bahia comparado a… esterco

A Bahia, com Neiva, foi o outro centro de difusão do racismo. Lobato aqui esteve e ficou chocado com o povo, que chamou de “feio material humano”, “um resíduo”, “um detrito biológico”, mas  reconheceu: “a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas”. O racismo americano entusiasmou o autor de Urupês, em particular os matadores de negros. “Um dia se fará justiça à Ku-Klux-Klan”, diz ele em carta dos Estados Unidos, pregando que o Brasil tenha uma coisa “dessa ordem”. As cartas de Monteiro Lobato, escritor de alta qualidade, são de arrepiar. Mais uma prova de que caráter nada tem a ver com talento.

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UM MONSTRO QUE MORREU POR SER QUENTE

Importante jornal de Itabuna diz que “durante muito tempo o Poder Judiciário baiano serviu a um grupo político, longe do quimérico controle externo que alguns setores reivindicavam”. Não discuto a afirmação, incontestável, mas atenho-me ao “quimérico”, que confirma o peso da mitologia greco-romana em nossa linguagem. Este adjetivo advém, todos sabem, de quimera – os dicionários diriam “relativo a quimera”. E quem foi essa tal de quimera? Um monstro improvável, portador de três cabeças, sendo na frente uma de leão, nas costas uma de serpente, e no meio uma cabeça de bode, atirando fogo pelas ventas. Muito assustador.
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5A  caixa de PandoraCícero: tempo, imaginação e verdade

O herói Belorofonte, espertíssimo, encontrou um jeito de atacar a fera, sem virar carvão: montou em Pégaso, o cavalo alado, veio pelo alto, pairou acima da malvada (em feitio de Dario Beija-Flor, lembram-se?) e atirou-lhe na bocarra aberta uma grande bola de chumbo. Aquecido por aquele hálito de 480 graus Celsius, o chumbo se liquefez e escorreu goela abaixo do monstro mal-intencionado e, claro, o matou de faringite. No século I a. C. Cícero indagava: “Quem hoje acredita em quimeras? O tempo destrói as invenções da imaginação, mas confirma os julgamentos da natureza e da verdade”. Quimera já estava se tornando símbolo de coisa situada além dos limites do possível. Está tudo em Ferdie Addis (A caixa de Pandora – Editora Casa da Palavra/2012).

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UM PIANISTA BIZARRO E REVOLUCIONÁRIO

Thelonious Monk carrega atrás de si uma fileira de adjetivos: misterioso, bizarro, estranho, complexo, difícil, problemático são os mais comuns. Mas, além desses, é portador dos que definem um grande músico, como criativo e revolucionário, um dos pais do bebop, que influenciou muitos pianistas mais novos. Concorreu para esse “mistério” ser um tipo ensimesmado, com crises de mutismo que o levavam a passar dias sem falar. O crítico Arrigo Polillo conta que, ao ser preso por porte de drogas, com um amigo, Monk, que era “limpo”, recusou-se a falar: considerou uma indignidade permitir que o amigo fosse preso sozinho. Calado, foi parar no xilindró.
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7HarlemPara escândalo das escolas de música

Foi pianista único, que nunca deu atenção ao trabalho alheio, nem ouviu cuidadosamente os mestres. Quando, numa turnê pela Europa, lhe perguntaram quem exercera maior influência em sua música deu uma resposta ao seu estilo: “Eu, naturalmente”. É justo. Desde o começo (tentou o trompete, depois passou para piano e órgão), seu trabalho é pessoal, com acordes dissonantes e técnica fora dos padrões: martelava o teclado, mantendo os cotovelos abertos (tipo asas de borboleta), num estilo capaz de escandalizar qualquer aluno de conservatório. Mesmo assim, aos 14 anos já era profissional, tocando em festas e igrejas, ao tempo em que se familiarizava com o jazz do Harlem.

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As crises de mutismo incluíam Nellie

Compositor festejado, tem entre suas produções mais conhecidas Round midnight, que deu até nome de filme (Por volta da meia-noite, de Bertrand Tavernier), Monk´s dreamSomething in blue e Crepuscule with Nellie (dedicado a Nellie, sua mulher, por quem era apaixonado – mas com quem passava dias sem falar). Num festival de jazz, em Copenhague, Monk apresenta seu tema mais popular, Round midnight. Interpretação magistral, com o apoio de um grupo de feras conhecidas, catalogadas e reverenciadas poucas vezes reunido: Dizzy Gillespie (trompete), Sonny Stitt (sax alto), Al McKibbon (baixo) e Art Blakey (bateria).

 

                                                                                                                                                                                                                                                                      O.C.

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“SE A MONTANHA NÃO VAI A MAOMÉ…”

Ousarme Citoaian | [email protected]
001BilacPor e-mail, questionam-me sobre a diferença entre plágio e citação, dúvida que para mim tem quase a idade do ovo e da galinha. Fazendo árbitro o dicionário, fica fácil: plágio é cópia ilegal, apropriação indébita da produção de outra pessoa, coisa sorrateira, sub-reptícia; já a citação exige remessa à fonte, creditando-se a autoria, tudo dito e feito às claras. Mas essa abordagem lexicográfica não satisfaz à consulente (ops!), e a mim muito menos: no escrever, é frequente a referência a outros autores, sem citação de fonte, e que não é plágio, mas homenagem. Certas expressões se tornam de domínio público, a exemplo de “ajuda luxuosa”, “se a montanha não vai a Maomé…”, “última flor do Lácio”…

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“Sou apenas um pobre homem de Itabuna”
No belo poema “Cacau, canto, clamor”, do livro Poesia reunida e inéditos, Florisvaldo Mattos escreve sobre a ascensão e queda da agricultura regional: “…livres de turbantes, burkas e sandálias,/ outros mais, mais outros, enfim dezenas,/ vieram, por desejo de erguer e construir/ o que a alma na carne gravara como dívida”.  É evidente a citação de “As pombas”, de Raimundo Correia (em itálico) – e eu, de propósito, citei Ascensão e queda do terceiro reich, de William Shirer. Hélio Pólvora, um dos poucos para quem vale o lugar-comum “dispensa apresentação”, costuma autointitular-se “apenas um pobre homem de Itabuna” – Eça de Queirós (1845-1900) se disse “apenas um pobre homem de Póvoa de Varzim”.
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Voltaire é citado em diário de Itabuna
003CândidoEm artigo recente em importante jornal diário, o autor diz que o povo de Itabuna não vive “no melhor dos mundos” – empregando, bem, uma expressão tirada de Voltaire (1694-1778), em Cândido ou O otimismo. Machado de Assis, com sua vasta cultura, usou muito a citação, às vezes em língua estrangeira: Et nunc et semper (do latim, “nunca e sempre”), no conto O anel de Polícrates, é de São Mateus, 5:9; “… como a esposa que desce do Líbano”, no conto Último capítulo, vem do Cântico dos Cânticos. E é impossível não lembrar que Hemingway tirou do livro de Salomão um dos títulos mais importantes da literatura mundial: O sol também se levanta. A citação, sobre ser prova de conhecimento e bom gosto, é homenagem ao citado e ao leitor perspicaz.
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(ENTRE PARÊNTESES)

É impenetrável o raciocínio da chamada nova direita brasileira: enquanto cerca de 96% dos crimes são cometidos por bandidos adultos, ela se preocupa com o potencial de 3-4% representado pelos menores. Daí, prega que, ao reduzir a maioridade penal (e fechar os olhos aos criminosos engravatados, fardados, togados, nomeados ou concursados), reduz a criminalidade. Combater o crime tornando adultos os marginais infanto-juvenis me lembra a anedota sobre o cara que encontrou a mulher (lá dele!) no sofá, em intimidades com Ricardão. A gentil leitora e o atento leitor sabem como ele resolveu o problema: vendeu o sofá.

ALIENAÇÃO E CONCEITOS POR EMPRÉSTIMO

005VenezuelaNo ano passado, um deputado inglês, em palestra na Universidade de Oxford, chamou a atenção sobre “como ter pouco conhecimento é perigoso”. Isto não quer dizer que nos devemos transformar todos em sábios, como num passe de mágica, o que seria impossível; mas que precisamos aprofundar um pouco mais nossas informações, se queremos sair por aí dando opinião. Sobre Hugo Chávez, por exemplo (o tema da palestra do parlamentar), se um indivíduo disser  “não sei quem foi”, será um alienado; se disser “foi um ditador da Venezuela”, entrará para a lista dos que alardeiam conceitos tomados de empréstimo, talvez ouvidos em algum telejornal.
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Como o “inocente útil” se faz perigoso

O alienado não influi nem contribui, é um inocente inútil; o outro, também inocente (mas útil), é perigoso, pois anda a espalhar “verdades” sob encomenda. É por esse caminho do “pouco conhecimento” que elegemos candidatos inadequados (para empregar um eufemismo) ou transformamos em herói qualquer pessoa que, a exemplo do jurista Joaquim Barbosa, desempenhe razoavelmente bem suas funções. Tentei evitar Brecht, mas não pude: “Triste do povo que precisa de heróis”. A ideia de fazer de JB presidente da República seria hilariante, se não fosse infeliz. Mas eu confesso que gostei quando ele disse que os três maiores jornais brasileiros são “mais ou menos” de direita. É óbvio, mas me fez bem ouvir.

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A MELHOR “CAIPIRA” DE TODOS OS TEMPOS

007Jeca TatuNenhuma lista (relação, antologia ou coisa que o valha) é inquestionável, pois sempre reflete a opinião de quem a fez. Mas isto nunca foi obstáculo para quem gosta de listar os “melhores” (ou “maiores”) de qualquer coisa. Veículos de imprensa do mundo inteiro andam, às vezes, por esse caminho, e eu, confesso, gosto de ler tais seleções – que me dão o pensamento médio dos outros. Em 2009, a Folha de S. Paulo reuniu dezesseis críticos, pesquisadores e compositores, para escolher as melhores músicas caipiras de todos os tempos. No topo da lista, como melhor de todas, ficou Tristeza do Jeca, de Angelino de Oliveira (1888-1964) – compositor paulista nascido em Itaporanga.
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Com 95 anos, parece novinha em folha

Tristeza no Jeca nasceu a 24 de maio de 1918, cantada em público pela primeira vez, pelo autor. Conta, portanto, 95 anos, e parece novinha em folha. Teve gravações de diversos artistas, antigos e novos, caipiras e “caipiras”, mas o registro fundamental é da dupla Tonico e Tinoco. A canção se baseia no livro de Monteiro Lobato, Urupês, que deu vida longa a Jeca Tatu, o tipo rural infeliz e doente, típico brasileiro excluído, morador dos grotões da Pátria. Aqui, a interpretação de Paula Fernandes, ao lado de Sérgio Reis e Renato Teixeira. A gentil leitora, exigente, questionará se a bela Paula já cursou ao menos um semestre de violão; o leitor, de olho rútilo, não questionará nada.

(O.C.)

Tempo de leitura: 8 minutos

QUEM TEM FÉ EM DEUS VAI “À CALIFÓRNIA”

Ousarme Citoaian
“Carro despenca de barranco na Califórnia” – diz uma manchete do Pimenta, em edição recente. E eu festejo a construção da frase, pois ela vai de encontro a uma tendência de chamar aquele bairro de o Califórnia, assim como certas pessoas têm coragem de escrever o Fátima. Eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira, que não pode ser, mas já li o texto de um redator (aliás, redatora, o que vai deixar mais alegre os guerreiros da igualdade gramatical) em que o Instituto Nossa Senhora da Piedade era tratado como o Piedade! É uma escrita novidadeira, elitista, que nada tem a ver com a evolução da língua, pois não nasce no povo, mas nas redações, com gente mal informada.

AGRESSÃO À ESPONTANEIDADE DAS RUAS

Quem já teve contato com o falar espontâneo das ruas, praticado pelas camadas mais simples da população, aquelas que se valem do nosso precaríssimo transporte urbano (para se ter um metro comparativo), sabe que nenhum indivíduo temente a Deus chamaria a Califórnia de o Califórnia.  “A Califórnia está com as ruas esburacadas”, denuncia o crítico; “O ônibus da Califórnia já passou?”, pergunta o distraído. Quanto a o Piedade, é sandice estratosférica. Há anos e anos fala-se em ir à Piedade, estudar na Piedade, as irmãs (ursulinas) da Piedade e outras coisas. A propósito, o jornalista Maurício Maron foi o primeiro homem que teve a matrícula aceita pela Piedade (até então, o instituto era exclusivamente feminino).

TRÊS VERSOS E UM ABALO ÍNTIMO

Na edição passada, parece que no frenesi de criticar a prosódia de haicai, esqueci-me do principal: a referência a esse tipo de poesia – ainda que a voo de pássaro, como costumamos tratar os assuntos. Vá lá: o haicai é um poema de origem japonesa, sóbrio e minimalista, formado por três versos, respectivamente de cinco, sete e cinco sílabas poéticas. Comparando com o soneto, como este tem 14 versos (em geral de dez ou doze sílabas), nele caberiam, sem superpopulação, quatro haicais e meio. O exercício consiste exatamente em aprisionar em tão poucas palavras uma mensagem, em geral profunda, que nos faz pensar. Creio que, ao ler um (bom) haicai, sofremos um abalo íntimo.

MODELO QUE VEM DO SÉCULO XVII

Há quem o adote sem rimas (primeiro e terceiro versos), como um dos desbravadores do gênero no Brasil, Afrânio Peixoto (nasceu em Lençois e morou em Canavieiras). Eu os prefiro rimados, à moda de Guilherme de Almeida, mas minha opinião vale muito pouco.  Na origem do haicai está o poeta Bashô, no século XVII, para quem o poema era uma prática espiritual, ligada ao zen-budismo. Na região, há haicaístas bissextos e pelo menos um que cultuou o gênero como principal manifestação artística. Entre os primeiros estão Gil Nunesmaia e Cyro de Mattos (de Itabuna) e Paulo Lopes (de Ilhéus). Mas o grande “profissional” entre nós é o ilheense Abel Pereira (1908-2006).

“GEMAS RARAS DA POESIA ORIENTAL”

Abel, com Colheita, de 1957, foi (simplesmente) o terceiro autor brasileiro a publicar livro de haicais, seguindo-se ao também baiano Oldegar Vieira e ao carioca Osório Dutra. A acolhida foi entusiástica, por parte de Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Abigar Renault, Octávio de Faria, Ledo Ivo e o português Fernando Namora, dentre outros. Malba Tahan destacou que “nas páginas de Colheita cintilam as gemas raras da poesia oriental”, e Francisco de Assis Barbosa, da Academia Brasileira de Letras, sentenciou: “Ninguém pode disputar a primazia da arte de composição de haicais ao baiano Abel Pereira”. O poeta publicou ainda Poesia até ontem, Mármore partido e Haicais vagaluminosos .

BAR DE ITABUNA NA NOITE DE SÁBADO

Baco adora quando desço a praça
Adami, caminho do Elite Bar
Lá (no Bar de Emetério), busco o morno
canto, próximo às mesas de sinuca;
observo os jogadores do apostado,
os azes das tacadas. O maior,
Zito Maleiro, já tuberculoso,
captura a solidão da bola-sete:
o infinito resvala sobre o verde
espaço de luz acabando o jogo (…)

Sorvo o vinho do Porto, calmamente.
Atento o ouvido para o andar de cima,
ouço o ruído abafado da roleta,
na sensação das coisas clandestinas.
Chegaram os amigos. Planejamos
o que faremos no frescor da noite.
Saímos.  Vamos pela rua da Lama,
em direção à zona, ao bar de Juca (…).

DOMÍNIO DE METÁFORAS E IMAGENS

Florisvaldo Mattos  (foto)evoca no poema “Itabuna, 1950” (ilustrado por quadro de Walter Moreira) um tempo ido e vivido na cidade hoje centenária. O texto é de A caligrafia do soluço & poesia anterior, de 1996. Nesse livro, o poeta é saudado por João Carlos Teixeira Gomes como num autor de completo domínio das estruturas formais e da construção rigorosa, “que refletem a eficácia da sua linguagem poética, plena de poderosas metáforas e imagens dinâmicas”. Além da literatura, Forisvaldo, nascido em Uruçuca (Água Preta do Mocambo, 1932), milita no jornalismo, tendo começado as duas atividades na região cacaueira, com trabalhos publicados em A voz de Itabuna e no Diário da Tarde, de Ilhéus.

EUCLIDES DA CUNHA E A PONTE QUE CAIU

Um site encontrado ao acaso me lembra de umas curiosidades sobre escritores e me informa de outras, que eu não conhecia. Ei-las, para quem gosta de detalhes da vida alheia: Goethe escrevia de pé, para isso mantendo em sua casa uma escrivaninha alta; Pedro Nava (foto), o memorialista mineiro, parafusava sua mesa, para que ninguém a tirasse do lugar; Gilberto Freyre não se dava bem com aparelhos eletrônicos – dizem que não sabia sequer ligar a televisão; Euclides da Cunha levou três anos construindo uma ponte em São José do Rio Pardo (SP), e a ponte ruiu, alguns meses depois de inaugurada. Ele a refez e, por via das dúvidas, abandonou a carreira de engenheiro.

GRACILIANO RAMOS E O LIVRO DE CABECEIRA

Machado de Assis (pobre, mulato, gago, míope, epiléptico e gênio), quando escrevia Memórias póstumas de Brás Cubas teve uma crise intestinal, complicando sua visão (que já não era boa). Sem poder ler nem escrever, ele ditou grande parte do romance para sua mulher, Carolina. Graciliano Ramos, comunista e ateu, tinha na Bíblia uma de suas leituras favoritas, para observar os ensinamentos e os elementos de retórica ali contidos. Carlos Drummond (foto) tinha, entre outras manias, a de picotar papel e tecidos. Certa vez, estraçalhou uma camisa nova em folha do neto, tendo de comprar outra. “Se não fizer isso, saio matando gente pela rua”, disse, com um sorriso.

UM LONGO SILÊNCIO DE PAI E FILHO

Érico Veríssimo era quase tão introspectivo quanto o filho Luís Fernando, também escritor. Numa viagem de trem a Cruz Alta, Érico fez uma pergunta que Luis Fernando respondeu quatro horas depois, quando chegavam à estação. Monteiro Lobato adorava café com farinha de milho e tanajura torrada (argh!). Manuel Bandeira (foto) contava que teve um encontro com Machado de Assis, aos dez anos, numa viagem de trem. Puxou conversa e ouviu que Machado gostava de Camões. Bandeira recitou uma oitava de Os Lusíadas que o mestre não lembrava. Na velhice, confessou: era mentira. Tinha inventado aquela história para impressionar os amigos.
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A CANÇÃO COM 38 INTERPRETAÇÕES

“Summertime” é um clássico do jazz que nasceu na ópera Porgy and Bess (os dois personagens principais do libreto de Ira Gershwin, sobre texto original de DuBose Heyward). Não falo da peça de trajetória polêmica, mas da curiosidade do confronto entre o canto erudito e jazzístico na mesma canção. O tema é pouco encontrado como peça “erudita”, ao contrário de sua versão jazz ou pop. Conheço gravações de Janis Joplin, Ella Fitzgerald, Armstrong, Sarah Vaughan, Frank Sinatra e outras. Soube que há também um registro de Cazuza (foto), mas nunca o ouvi. Críticos falam que o mercado dispõe de 38 gravações diferentes de “Summertime”.

ENCONTRO DO JAZZ COM O “ERUDITO”

Pouco afeito ao “erudito”, só agora descobri a versão de Charlotte Church para “Summertime”. Eu não sabia que a jovem soprano inglesa esteve na trilha sonora de Terra Nostra (possuo até uma gravação de “Tormento d´amore”, dela com o brasileiro Agnaldo Rayol, que, parece-me, é cantada na novela). Desculpem minha ignorância, mas eu não vejo telenovelas, nem sob tortura – daí não saber se “Summertime” fez parte da trilha. Vamos aproveitar para comparar duas das muitas leituras dessa famosa canção, nas vozes de Charlotte Church e Sarah Vaughan (uma de cada vez!), sem que eu me dê ao trabalho de declinar minha preferência.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

A SOPRANO QUE GOSTA DE ROCK

Aos noveleiros, o que talvez seja uma curiosidade: Charlotte Church (foto), com todo seu vozeirão, é uma (linda) moça de 24 anos, que canta desde os 11. É “normal” para sua idade: gosta de Alanis Morissette, Madonna, Marcv Anthony, Lauryn Hill e outros desconhecidos para mim, sem a veneração ao repertório “sério”, que se poderia supor. “Raramente ouço música clássica, gosto mesmo é de rock”, diz ela, para minha surpresa – e explica que canta clássico devido a seu timbre de voz. Charlotte se descobriu por acaso, quando foi convidada, a participar de um programa de auditório, no País de Gales, onde nasceu e vive. Bombou, é claro. Já se apresentou até numa festa de Natal do Vaticano, sob João Paulo II, em 1998. Se lhe apraz, veja/ouça as duas versões de “Summertime”.


(O.C.)