Casa do fundador de Itabuna, no centro da cidade, é demolida na surdina || Reprodução
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Sociedade civil itabunense organizada, representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário, todos calados, todos coniventes com a demolição da casa do fundador de Itabuna, um dos poucos prédios históricos da cidade, até então, sobreviventes. Mais uma vez a estratégia foi a de demolição na surdina. 

 

Janete Ruiz de Macêdo

A cidade de Itabuna, mais uma vez, foi obrigada a se confrontar com perdas irreparáveis. Perdas que levam à melancolia e ao enfraquecimento da memória, do sentimento de si, da sua identidade. Alguém se importa? Após os acontecimentos deste 19 de outubro de 2024, a demolição do sobrado do comendador José Firmino Alves, construído no final do século XIX, local onde foi pensado e gestado o processo emancipatório da cidade, centro social e político da vila da Tabocas e da cidade de Itabuna, a impressão que fica é de que não. Lá se processaram duros debates para escolha do primeiro Intendente, planos para prover a novel cidade dos aparatos urbanísticos e culturais necessários.

De onde veio mesmo essa cidade? Que imagem queremos construir? Estamos dispostos a apagar a imagem que a cidade adquiriu ao longo da sua trajetória, a imagem que lhe foi construída e que tem sido apresentada aos outros e a si própria?

A ideia de uma identidade cultural coletiva pautada em referentes materiais parece ser uma impossibilidade para os governantes municipais. Da mesma forma, é impossível encontrar quem se identifique com a ideia de patrimônio cultural. Nietzsche, em sua obra Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, afirma que os seres humanos precisam ter futuro, “estabelecer-se como garantia de si mesmo como futuro”, por isso desenvolveram uma vontade ativa de guardar impressões, apreender o acontecimento necessário, antecipar-se ao possível no tempo com segurança. Para tanto, foi preciso, pois, criar a responsabilidade. E esta seria algo vazio se a promessa de ontem caísse no esquecimento.

Dentro dessa perspectiva, onde está a nossa responsabilidade? Sociedade civil itabunense organizada, representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário, todos calados, todos coniventes com a demolição da casa do fundador de Itabuna, um dos poucos prédios históricos da cidade, até então, sobreviventes. Mais uma vez a estratégia foi a de demolição na surdina. Diante do seu susto e indignação, alguém escreveu ao memorialista Moacyr Garcia: “calma, foi a família que vendeu e não foi tombada a pedido dela própria”. Assim foi também com o Castelinho, casa de Aurea Alves Brandão Freire, localizada no canto norte da praça Olinto Leone, construída entre os anos de 1919 a 1924 e demolida em 1989. Deixo aqui registrado fragmentos do texto de Helena Borborema Era uma Vez um Castelo:

“Era uma vez… muito tempo atrás, bem no início da década de vinte, um rico senhor de terras e cacauais[…] desejou dar a uma de suas filhas noivas, como presente de casamento, uma bela mansão. Mas, como realizar o seu sonho numa terra onde tudo faltava, onde as coisas belas do espírito nem eram cogitadas… Queria uma bonita vivenda, algo que embelezasse a sua cidade… era aquela construção o testemunho de uma época endinheirada, monumento de amor à terra que tanto prodigalizou as benesses aos que a ela se dedicaram, nela fizeram fortuna e souberam retribuir a sua dadivosidade. Era ele o símbolo, a expressão da crença de um homem, Firmino Alves, no futuro de uma cidade. E num triste dia, silenciosamente, na calada da noite, impiedosamente, sem protestos, sem o menor respeito […] sem nenhuma causa justificável, o Castelinho foi jogado abaixo, como se com ele jogassem no lixo as relíquias do passado de um povo, de uma cidade”.

Renegamos esse passado? Que memória queremos construir? Para que conservar o que nada significava de amor para elas?

A memória de pedra e cal da cidade é praticamente inexiste: já não existe o teatrinho ABC, o prédio de Martinho Luiz Conceição, o casarão de Tertuliano Guedes de Pinho, a casa pertencente a Carlos Maron e o mesmo destino, em breve, terá a Cadeia Pública Municipal de Itabuna, o Museu Casa Verde e o pouco que resta do sobrado do médico Moisés Hage. Se quisermos ir um pouco adiante, por que não falar da deformação do prédio da Maçonaria Areópago Itabunense e o da Associação Comercial de Itabuna?

É certo que a memória coletiva itabunense não é um baú de tesouros depositados democraticamente, ao longo do tempo por razões afetivas, por todos os cidadãos da cidade. Sabemos que é uma memória exercitada por poucos, uma memória pouco ensinada, e a derrubada da casa de Firmino Alves, atesta, mais uma vez, a falta de efetividade da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania (FICC), e do Conselho Municipal de Cultura, órgãos que deveriam ser guardiões do nosso patrimônio histórico e cultural.

Parece só restar, então, a escriturística da saudade, buscando soluções na memória para oferecer uma sensação de identidade sólida apesar dos efeitos do tempo, pois por meio dela, como afirma Joel Candau em sua obra Memória e Identidade, “o que passou não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver graças à lembrança. Juntando os pedaços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar sua vida presente”. É isso que alguns memorialistas itabunenses têm realizado incessantemente, buscando soluções na memória para manter viva a história da cidade como um legado para o tempo presente.

A escriturística da saudade busca impedir que no fluxo temporal o esquecimento engula as memórias e a história de um povo e de um lugar, mas para uma memória forte e uma consciência viva sobre seu passado, é necessário a preservação de referentes materiais que lhe deem suporte. Para tanto, se faz necessário o exercício da Responsabilidade que tem faltado de forma profunda a grande parte dos agentes sociais que, direta ou indiretamente, labutam no campo da história e daqueles que ocupam cargos estratégicos no campo da política e da cultura.

Janete Ruiz de Macêdo é professora, doutora em História, fundadora do Centro de Documentação e Memória (Cedoc) da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) e curadora do Centro Cultural Teosópolis.

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Estamos perto das eleições municipais. Será que com o prefeito que vai chegar, ou mesmo que o atual se reeleja, ocorrerá mudança nessa mentalidade tacanha? Tomara! Ainda há tempo para amparar a nossa cultura, que é rica de conteúdo e história, e salvar o que resta. Basta boa vontade.

 

Cyro de Mattos

A quem cabe zelar pela cultura de um povo e não corresponde aos seus apelos comete omissão imperdoável. A cultura alimenta a autoestima e reforça os laços identitários de uma sociedade nas suas relações com a vida. Se a educação é o corpo da sociedade, que precisa ser bem alimentado, que dizer de sua alma, a cultura? Quem não valoriza a cultura de seu povo, contribui para que não haja resposta quando se pergunta qual é o seu nome, onde você nasceu e para onde você vai. Torna assim o ser humano um caminhante no vazio do estar para viver ou, se quiserem, cadáver ambulante que procria, como diz o poeta Fernando Pessoa.

O que vemos por aqui entristece. Ainda hoje viceja esse comportamento atávico para anular o que foi produzido para representar e permanecer como referência do nosso patrimônio cultural. O Museu da Casa Verde, por exemplo, que antes foi o espaço de convivência social da elite, com reuniões importantes de políticos, quando então eram debatidos assuntos relevantes de nossa cidade, encontra-se fechado há tempos. Seu patrimônio valioso, que muito diz sobre a história da burguesia cacaueira no tempo dos coronéis, está encoberto pelas sombras da indiferença do poder público. Assim contribui para que o visitante, o estudante e o habitante dessa terra desconheçam um capítulo importante da civilização do cacau, com seus costumes, valores, linguagens, suas relações políticas e sociais como marcas de uma maneira singular de proceder perante o mundo. Não recebe o mínimo apoio do poder público, da classe empresarial e de clube de serviço, para que se torne um espaço movimentado com vistas ao conhecimento da história coletiva municipal e regional.

O quiosque Walter Moreira, na praça Olinto Leoni, obra realizada na gestão do professor Flávio Simões, quando presidente da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania, foi demolido. Já serviu para exposições de artistas plásticos locais, comércio de artesanato, lançamento de livro e local como parte das comemorações no Dia de Cidade, com exposição de fotos históricas e dos prefeitos. Dá pena saber o destino que impuseram ao Quiosque Walter Moreira no jardim da Praça Olinto Leoni. A memória desse artista da cor, que passou uma vida retratando na tela a paisagem humana e física dessa terra, não merece essa pancada.

O Monumento da Saga Grapiúna, criado pelo artista Richard Wagner, itabunense de fama mundial, erguido nas proximidades do Supermercado Jequitibá, é uma homenagem aos elementos formadores da civilização grapiúna – o sergipano, o negro, o índio e o árabe, e não está tendo melhor destino. Monumento que remete as gerações de hoje e de amanhã à infância da civilização do cacau, em nossa cidade e na região, encontra-se também no descaso. O gradil protetor ao seu redor está danificado, lá dentro o seu interior serve de depósito de coisas imprestáveis e lixo. Não existe fiscalização nem proteção para preservar uma obra artística e cultural de valor inestimável. Árvores cresceram ao seu redor, tirando-lhe a visibilidade.

Com sua beleza rica de significados, em que se retrata a história da civilização cacaueira baiana, representada em figuras, símbolos, cenas e paisagens, o painel composto de azulejos, criado pela arte genial de Genaro de Carvalho, instalado no prédio Comendador Firmino Alves, onde funcionava o antigo Banco Econômico, entre a avenida do Cinquentenário e a praça Adami, nos idos de 1953, é indiscutivelmente um dos patrimônios artísticos de incalculável valor dessa terra onde nasceram o romancista Jorge Amado e o poeta Telmo Padilha.

Essa obra de arte magnífica esteve entregue à indiferença de autoridades, ao longo dos anos. Ficou sem alguns azulejos, na frente serviu para que camelôs fixassem seus produtos à venda no comércio informal. A FICC fez a reconstituição das avarias no painel, mas até hoje a valiosa obra de Genaro de Carvalho não teve a preservação merecida para que seu estado não volte como antes. Na frente dele, camelôs improvisam o gradil como expositor para vender seus produtos. Dentro do gradil protetor guardam a bicicleta. A poluição visual do painel às vezes prossegue com a faixa estendida de um poste a outro, na frente, para anunciar a venda de um produto novo chegado ao comércio local.

O prédio do Colégio Divina Providência e o do Cine Itabuna tomaram uma destinação comercial, nem parece que ali a vida saudável fez morada, através de gerações que aprendiam com mestres do ensino em um e se divertiam com Oscarito e Grande Otelo, o Gordo e o Magro, no outro.

Perdemos o Castelinho, o Cine Itabuna, o prédio do Ginásio Divina Providência, o casarão do coronel Henrique Alves dos Reis, o Campo da Desportiva, o Teatrinho ABC na Praça Camacã, a fachada da residência onde morou o comendador Firmino Alves e sua família na praça Olinto Leoni está desfigurada. Até quando vamos continuar maltratando a nossa memória e o nosso patrimônio arquitetônico, portador de rico simbolismo em nossa história?

E o rio Cachoeira, que tanto contribuiu para a progressão da cidade, alimentou os pobres, forneceu ganho às gentes do povo, teve peixe em abundância quando as águas eram claras? Há tempos vem chorando água, virou um esgoto a céu aberto.

Estamos perto das eleições municipais. Será que com o prefeito que vai chegar, ou mesmo que o atual se reeleja, ocorrerá mudança nessa mentalidade tacanha? Tomara! Ainda há tempo para amparar a nossa cultura, que é rica de conteúdo e história, e salvar o que resta. Basta boa vontade.

Cyro de Mattos é itabunense, autor de 67 livros editados e publicados também em vários países, premiado internacionalmente, além de ser detentor da Comenda Dois de Julho e do título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).

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walmirWalmir Rosário | [email protected]

Trabalhamos juntos em algumas oportunidades, inclusive na Divisão de Comunicação da Ceplac (Dicom), onde exerceu a chefia num dos períodos mais conturbados da política brasileira: a volta do país à democracia. Com sua experiência, sabia desarmar os espíritos, conquistar novos amigos.

Do alto de sua sabedoria, o jornalista e escritor Antônio Lopes costuma nos ensinar que começamos a desconfiar que estamos ficando mais velhos quando os nossos amigos vão nos deixando. E nos deixando de vez, partindo desta para a melhor, como costumam dizer as pessoas chegadas aos elogios fáceis e gratuitos para consolar as famílias e os amigos do de cujus.
E essa constatação vai ficando mais presente nas pessoas de minha geração. Desaparecem os amigos de infância e os que conseguimos fazer durante os anos, seja m na escola, no trabalho, nas atividades de lazer, nas mesas de botecos. Não importa, chegada a hora, vencida a obrigação, o sujeito tem de adimplir o contrato firmado com o Pai Eterno. Podemos, até, resmungar que não seria chegada a hora, mas não importa, a morte é implacável.
Nesta sexta-feira (15) chegou o dia aprazado de Eduardo Anunciação. E ele teimou em não cumprir o aprazado, relutando em fazer a última viagem, ficando mais um tempo por aqui. Teimoso como ele só, buscou a ajuda médica, passou por cirurgia, relutou ao ócio durante o restabelecimento, continuou a trabalhar até não mais aguentar.
Essa atitude é própria da natureza do jornalista que preza sua profissão, na maioria das vezes remando na contracorrente, por se colocar – de forma intransigente – contra a intolerância, se indignando contra as desigualdades. Como dizia Voltaire, “Eu posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o direito de dizê-la”.
E assim Eduardo Anunciação viveu seus 67 anos na plenitude dos seus direitos. Agitador, sim, esse seria o melhor adjetivo para qualificá-lo. Sim, pois antes do jornalismo foi líder estudantil, vereador, agitador cultural, jornalista. Essa foi a sua trajetória, que está gravada na mente de seus contemporâneos e registrada nos veículos de comunicação.

Eduardo Anunciação.
Eduardo Anunciação.

Como vereador, inovou ao se eleger com apenas 18 anos por um partido de direita, a Arena, embora tenha dedicado seu mandato às causas de Itabuna, principalmente à cultura. Junto com figuras de sua idade – ou poucos mais velhos – promoveram, nos fins dos anos 1960 e início de 70 a maior revolução cultural de Itabuna.
No mesmo grupo, Eduardo Anunciação, Jorge Araujo, Roberto Junquilho, Chiquinho Briglia, Maria Antonieta, dentre outros promoveram, cada um na sua especialidade, ações culturais nas mais diversas expressões artísticas, colocando Itabuna no circuito cultural brasileiro. Nessa época, contávamos com o Teatro Estudantil Itabunense (TEI), o Teatrinho ABC, exposições de arte plásticas, eventos literários e o jornalismo em plena ebulição.
Em todas essas manifestações lá estava Eduardo Anunciação, o Gaguinho, com sua voz rouca, porém ouvida. Aqui, era amigo de toda a turma da cultura, desde os iniciantes no teatro, na música, na literatura, como aos já consolidados, a exemplo do nosso poeta maior: Firmino Rocha, autor de O Canto do Dia Novo, Momentos e o mais conhecido de todos Deram um Fuzil ao Menino, que se encontra gravado numa placa de bronze na sede da Organização das Nações Unidas (ONU).
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