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QUEM NÃO SABE REZAR, XINGA DEUS

Ousarme Citoaian
Professora de língua portuguesa e latim da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), experiente em corrigir redações do Vestibular (e de quem não declino o nome por não estar autorizado a fazê-lo) explicou-me um dos problemas mais freqüentes em seu trabalho: “O candidato quer escrever uma coisa e escreve outra”. Ótimo resumo. Penso que o fenômeno também ocorre na linguagem oral: às vezes, queremos dizer uma coisa e o que chega ao interlocutor é diverso do nosso pensamento. Já falamos do assunto nesta coluna, e o explicamos com um dito do falar brasileiro muito saboroso: “quem não sabe rezar, xinga Deus”.

“VOU ACABAR COM OS ANALFABETOS”

Há tempos, um candidato a prefeito de Itabuna, famoso por traumatizar a gramática portuguesa e os cofres públicos, disse num programa de rádio que, se fosse eleito, iria “acabar com os analfabetos”. Mesmo que o ilustre representante do povo não tenha minha simpatia, nunca o imaginei dono de crueldade tamanha, capaz de, em tal sanha analfabeticida, matar tantos itabunenses – afinal, a Bahia é campeã nessa modalidade e Itabuna, por certo, dá grande contribuição à conquista. Quer dizer: eu entendi que ele queria, patrioticamente, “acabar com o analfabetismo”. Mas nem por isso, como querem certos lingüistas, a formulação dele há de ser aceita..

COMUNICAÇÃO POR SINAIS DE FUMAÇA

Uma reportagem da TV Record, em Salvador, colheu interessante depoimento de uma senhora, a propósito de ações do governo. “Diante da violência que nós veve…”, preambulou a soteropolitana – e, para o caso, não interessa o resto da fala. Achei ótimo, mesmo que isto espante os leitores desta coluna tida como ranheta em questões de língua portuguesa. Neste caso, pode. O que não pode é o Fórum de Itabuna, tocado por gente muito estudada, produzir e autorizar a divulgação de um anúncio como o da foto ao lado (O. C. clicou). Ao povão que não foi à escola é válido comunicar-se até por sinais de fumaça; das autoridades, com responsabilidade na formação do público, não. E a crase não humilha ninguém.

ALFABETIZADOS SEGUEM DONA NORMA

Ouvi dizer que sou “formal”. Surpresa. Por não ter estudos específicos, ignorava essa divisão entre linguistas e “formais”. Sei é que, mesmo sem consulta, me puseram na escola, onde  gastei esforço e dinheiros público e da  comunidade, via CNEC  (Google, urgente!). Queimei as pestanas para aprender a dizer “Nós vamos”, em vez de “Nóis vai”, como era minha natural inclinação – e agora me vêm dizer que “tudo está certo”. Não está. Quem não foi à escola do professor Chalub, que fale como puder, com nosso respeito. Mas os alfabetizados – e jornalistas, até prova em contrário, o são – têm que seguir a norma culta. Eu sigo, também, a vizinha do 6º andar, inculta mas bela.

DA ARTE DE ESCREVER BEM

Antônio Naud Júnior (foto) é, sem questionamentos, o mais profícuo dos produtores literários da nova geração grapiúna. Leu, viveu, sofreu, acumulou experiências, escreveu e, sobretudo, andou. É um andarilho, inquieto, envolvido ao mesmo tempo com variadas atividades. Sua principal área de interesse, pode-se dizer, são todas: prosa, poesia, teatro, cinema, televisão e gente. Lê tudo, sem preconceitos. Discorre, com igual paixão, sobre o mais novo romance nas livrarias, a trama da novela das oito e um recém-lançado blog de poesia. O poeta Vicente Franz Cecim o chamou de “cigano incorrigível por vocação luminosa ou oculto fado”. Disse-o bem.

ACORRENTADO AO SILÊNCIO

Se um viajante numa Espanha de Lorca (um diário de viagem pela Europa, publicado em 2005) é seu trabalho mais pessoal, no sentido de mostrar-se em inteira sensibilidade de homem dilacerado. Porém é corajoso o bastante para adentrar os esconderijos, truques e subterfúgios deste mundo, traduzindo-os, poeticamente, para nós sedentários. Quem se propõe a tarefa de ler o mundo há de, primeiro, ler-se a si próprio. Mas qual de nós se lê com clareza? “Sou tantos. Há um Antônio poético e aventureiro errante, um Antônio porra-louca e pessimista, um Antônio disposto a saltar no vazio sem paraquedas, outro obcecado pelo amor. Há ainda um Antônio espiritualizado e acorrentado ao silêncio…”. As contradições de todos nós.

UM CÉU DE MUITO POUCO AZUL

Antônio Júnior, na Europa, descreve a solidão angustiante que nos esmaga nas grandes metrópoles: “Estar em Madrid (foto) é como estar em Londres, o peso do cinzento, do vazio interior, o ar asfixiante e pegajoso, o céu que só muito raramente mostra a cor azul, as estrelas que mais parecem imitação de péssima qualidade (…). Como não conheço ninguém e ninguém me conhece, é quase como não existir. Sou um estranho numa grande cidade, flechado por uma sensação assustadora de saber que posso cair duro no meio da rua e nem uma só alma local notará minha ausência” – obra citada.

INCITATUS, O SENADOR BIÔNICO

Sem propósito ou objetivo eis-me posto a lembrar de cavalos famosos, saídos de antigas leituras. Rocinante, esquelético feito o dono, era o cavalo de Dom Quixote (foto); Heroi, do Fantasma (que tinha também um cachorro, Capeto); Silver era o lépido cavalo do Zorro; John Wayne, em O último pistoleiro, montou Dólar; Incitatus, cavalo de Calígula, foi o primeiro senador biônico de que se tem notícia. Com a ditadura militar, ressuscitou-se o modelo no Brasil (mas aqui nomearam, além de cavalos, burros); Dr. Robledo montava um sonolento pangaré, que em algumas histórias teve esse nome: Pangaré. Justiceiro, no bom sentido do termo, o pacato médico virava o Cavaleiro Negro, enquanto Pangaré se transformava no fogoso Satã.

NAPOLEÃO E SEU CAVALO BRANCO

Muito famoso é o cavalo de Napoleão, embora ele tivesse vários. “Qual a cor do cavalo branco de Napoleão?” – diz a velha “pegadinha” (se você acertar, ganha o CD O melhor do arrocha, incluindo uma faixa-bônus com Caetano Veloso cantando Rebolation). O nome do principal cavalo de Napoleão era Vizir, um árabe, presente do sultão do Egito. Reza a lenda que Vizir (na gravura) levou o velho Bonaparte de Paris a Moscou em 1812 e, na grande retirada, com 60 graus abaixo de zero, trouxe seu dono de volta, são e salvo. Depois de morto, foi empalhado e, nessa condição, encontra-se no Museu do Exército, em Paris. São cavalos muito importantes, mas nenhum deles ganhou o Oscar da Academia.

PANGARÉ “GANHA” METADE DO OSCAR

O cavalo mais vitorioso do cinema não recebeu a divulgação merecida. Foi um anônimo montado por Lee Marvin, em Dívida de sangue, de Elliot Silverstein. Marvin faz um pistoleiro pé-de-cana (Kid Sheleen), montando um cavalo igualmente bêbado (foto). Ao ganhar o Oscar como melhor ator de 1965, Lee Marvin, chegado a um copo, fez um discurso inusitado: disse que passara a vida toda “treinando” para ser um beberrão nas telas; e que metade do prêmio deveria ser dado ao cavalo do filme. É um dos meus (muitos) faroestes preferidos. Engraçado e diferente, tem Jane, a rebelde filha de Henry Fonda na plena forma dos seus 28 aninhos – além da criativa trilha sonora (“ao vivo”) de Nat King Cole e Stubby Kaye (A balada de Cat Ballou).

O MAIOR DOS NOSSOS COMPOSITORES

“Ora – direis – Tom Jobim é muito citado nesta coluna”. E eu vos direi no entanto que, a meu juízo, ele aparece até pouco. Tenho dúvidas sobre se nosso país de tão parco reconhecimento a seus valores intelectuais tem consciência da importância de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim para a MPB. E embora não seja neste espaço que se corrigirá tal injustiça, algo precisa ser dito: para começar, que Tom Jobim é o maior dos nossos compositores modernos, com uma produção imensa em que (não pude conhecê-la toda, é verdade) nunca encontrei nada que não fosse de alto nível. A produção de Tom Jobim é horizontal, no melhor sentido que possa ter a palavra.

NENHUM MÚSICO TEVE TANTO PRESTÍGIO

Foi ele, não Carmen Miranda, conforme se apregoa por aí, quem abriu as portas do mercado mundial (a partir dos Estados Unidos, é claro) para o canto brasileiro. Tom Jobim “invadiu” o jazz, ensinou Frank Sinatra a cantar música brasileira, mostrou a Gerry Mulligan como emitir  no sax uns acordes de Samba de uma nota só (isto tudo circula na internet). Foi gravado, além de Sinatra e Mulligan, por Ella Fitzgerald, Stan Getz, Sarah Vaughan e todo mundo que interessa. Imagino que Billie Holiday não o gravou porque não conseguiu sair do túmulo. Mas tentou. Anita O´day (que esteve no Brasil nos anos oitenta) abre e fecha suas apresentações com  Wave. Nunca na história deste país alguém teve tanto prestígio internacional. Tom era o cara.

A TERNURA ANTIGA DE JOE HENDERSON

Joe Henderson (1937-2001), saxofonista dos  mais respeitados do mundo, também fez um cancioneiro de Tom Jobim (Double raimbow, que enriquece minha humilde coleção). Sonoridade límpida, suave, “flutuante”, com certa nostalgia das baladas de  Coleman Hawkins (foto). Mas JH é discípulo confesso de Stan Getz e Charlie Parker, capaz de alternar a simplicidade do primeiro com a sofisticação do segundo. Mesmo nas notas agudas, não chega à agressão auditiva, mantém-se lírico, como se tocasse um acalanto. Como diria o velho Che (para quem balada se fazia com rifle, não com sax), Joe Henderson não perde a ternura, jamais.  No vídeo (com Desafinado), os “coadjuvantes” são Pat Matheny (guitarra) e Tom Jobim (ao piano). Em meio a esse luxo, brilha o sax de Henderson.
(O.C.)
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