EUFEMISMOS, PRECONCEITO E SUPERSTIÇÃO
AS DIVERSAS FÓRMULAS PARA NÃO “MORRER”
Para a palavra morrer, há dois grupos de eufemismo, ambos dando cores e odores próprios à língua. O respeitoso: falecer, descansar, fechar os olhos, desencarnar (entre espíritas) e dar o último suspiro – além do detestável “passar para o andar de cima”, ao gosto de quem aprende português com a Globo. Do lado gaiato: bater as botas, esticar as canelas, ir comer capim pela raiz, bater a caçoleta, botar o bloco na rua (por certo, lembranças serão despertadas). Tenho minhas preferidas nos dois conjuntos: no primeiro, formal, gosto de “faltar”; no jocoso, destaco “subir no telhado” (resquício de uma das melhores piadas de português de todos os tempos).
“MINHA MÃE FALTOU-ME ERA EU PEQUENINO”
E por falar em português, sem gracinhas, reporto-me a Guerra Junqueiro (1850-1923), com cuja poesia abono o eufemismo para morrer, a que me referi. No poema “Os simples”, ele canta (chora!): A minha mãe faltou-me era eu pequenino,/mas da sua piedade o fulgor diamantino/ficou sempre abençoando a minha vida inteira,/como junto dum leão um sorriso divino,/como sobre uma forca um ramo d´oliveira! Penso que “minha mãe morreu” não teria jamais a pungência de “minha mãe faltou-me”. E imagino tempestivo lembrar que esse Abílio Manuel Guerra Junqueiro nasceu num lugar de nome lindo, ao norte de Portugal: Freixo de Espada-à-Cinta, pois, pois.
A LINGUA É NOSSA HERANÇA E PATRIMÔNIO
CONFUSÃO ENTRE HIPOCRISIA E LIBERDADE
PRINCÍPIO DE JORNALISTAS E COSTUREIRAS
Os (maus) exemplos são legião. Antes, parodiemos Cláudio Abramo, que disse (em A regra do jogo) ser a ética do jornalista a mesma ética do marceneiro (e creio nisso, pois a ética é mesmo um valor comum a qualquer atividade): jornalistas, do ponto de vista operacional, não são diferentes de costureiras, por exemplo. Àquelas, se não conhecem linha e agulha, ninguém daria emprego; destes, há de se exigir conhecimentos básicos de língua portuguesa. São princípios, mutatis mutandis, indispensáveis para quem quer costurar ou escrever (que talvez seja, no final das contas, um gênero de costura).
VERBO TRANSITIVO DIRETO E MÁ COMPANHIA
UM HOMEM DE RELAÇÕES (MUITO) PERIGOSAS
David Nasser (1917-1980) foi um dos brasileiros mais influentes do seu tempo. Homem de muitas faces, publicou vários livros e reportagens de altíssima octanagem, que lhe renderam fama e dinheiro. Principal pena alugada de Chateaubriand, perseguiu desafetos e defendeu monstruosidades como o Esquadrão da Morte. Certa vez, com o fotógrafo Jean Manzon, fez uma reportagem para “ensinar” aos brasileiros como distinguir um japonês de um chinês. E dentre outras coisas, disse que o japonês podia ser identificado pelo aspecto “repulsivo, míope, insignificante”. Ao morrer, riquíssimo, teve o caixão coberto pela bandeira da organização criminosa que apoiou.
DE DENTRO DO MONSTRO EMERGIA UM POETA
Dentro do monstro habitava, além do panfletário temido, um poeta de belos versos. É, esse David Nasser de tão degradada biografia, um dos letristas mais festejados da MPB, parceiro de grandes músicos, sobretudo de Herivelto Martins. É autor de pérolas como Canta Brasil (com Alcir Pires Vermelho), Confete (Jota Júnior) e Normalista (Benedito Lacerda). Com Herivelto, fez Atiraste uma pedra, Pensando em ti e Camisola do dia, (as de que me lembro), uma memorável série de tangos (Estação da luz, Carlos Gardel e Hoje quem paga sou), além da vinheta de fim de ano usada pela Globo ( “Adeus ano velho, feliz ano-novo…”), em parceria com Francisco Alves.
RELEMBRADO POR BETÂNIA, CAETANO E GAL
Na minha memória, quem mais gravou David Nasser foi Nelson Gonçalves. Maria Betânia – que pode não ser a cantora que dizem, mas é dona de indiscutível bom gosto e cultura musical – regravou Atiraste uma pedra e A camisola do dia (Gal Costa também cantou Atiraste uma pedra) e Caetano recuperou Pensando em ti. Percebam como o jornalista, ao contrário de muitos coleguinhas por aí, não se permite cair na armadilha dos pronomes da segunda pessoa: eu amanheço (e anoiteço) pensando em “ti”, eu não “te” esqueço, vejo a vida pela luz dos olhos “teus”, “te” vejo nas espirais de fumaça, se leio um livro, em cada frase “tu” estás – e por aí vai. Uma aula.
(O.C.)