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LÍNGUAS BLINDADAS CONTRA OS BÁRBAROS

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

Com o crescimento da informática, o inglês expandiu-se, consagrando seu império com a invasão de línguas indefesas como o português do Brasil. Se a gentil leitora pensa que isto é regra mundial, não vá pensando, pois não é. O francês e o português de Portugal (não sei de outras ocorrências, mas suponho que as há) usam uma espécie de blindagem contra os bárbaros: seus vocabulários não têm a tolerância da Casa d´Irene, onde qualquer palavra estrangeira entra sem pedir licença. Ouvi de um linguista dos mais novidadeiros que toda língua sem as portas abertas a tais contribuições está condenada à morte. Duvido. Se fosse assim, o português de Camões já teria batido as botas, de braço dado com o francês de Gustave Flaubert.

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Mouse é “rato” em Portugal e na França

O termo online não foi absorvido por aquelas línguas, como ocorreu aqui: o francês diz “em linha” (en ligne); o português, também.  Outro exemplo: mouse, em Portugal, virou rato; na França, souris (rato); o inglês site é, em terras d´além-mar, sítio; entre os franceses, idem (site). Uma lembrança anterior à informática me sopra a palavra nylon: o francês conservou a grafia, mas adaptou a pronúncia para… nilón! São línguas que se respeitam e se defendem. Tivemos aqui, lá pelo início dos oitenta, discussão a propósito de falarmos Sida (Síndrome de imunodeficiência adquirida) ou Aids (Acquired immune deficiency syndrome), venceu a segunda, de goleada. Colonizados acham que até doença fica chique, desde que in English.

Os jogos de 2016 serão “paraolímpicos”

Há poucos anos, o governo resolveu chamar a Petrobras de Petrobrax, tontice abortada a tempo. Agora, o Comitê Olímpico Internacional (COI) inventou o termo paralímpico, em substituição a paraolímpico, mas o ministro Aldo Rebelo, dos Esportes (ardoroso defensor da língua portuguesa), subiu nas tamancas e convenceu a presidenta Dilma a não adotar essa bobagem, de sorte que em todos os documentos e peças publicitárias para 2016 o governo grafará Jogos Paraolímpicos, e não Paralímpicos, como querem os novidadeiros. João Ubaldo Ribeiro também desceu a ripa em paralímpico, mas, mesmo assim, é possível que a coisa pegue, pois a TV Globo (que criou o récorde) parece que já adotou a nova moda. Eu, sem brilho, mas sem medo, sou contra.

A PREMONIÇÃO DE FERNANDO LEITE MENDES

Tocam a campainha na casa de Fernando Leite Mendes, no Rio, ele vai atender. Era um fotógrafo do Correio da Manhã, confuso e, pelo sotaque, português: “– O senhor Júlio está?” “– Aqui não mora nenhum Júlio”. O homem saiu, e logo voltou. “– Perdoe-me a insistência, mas eu qu´ria falar com o senhor Júlio de Castilhos…”  “– Ah, o doutor Júlio de Castilhos não sabia que o senhor viria procurá-lo e morreu há exatamente 60 anos, em 1903. Se soubesse, talvez tivesse esperado”.“– Ora, pois, então esta não é a Rua Dr. Fernando Leite Mendes?” “– Ainda não, mas deverá ser daqui a 60 anos”. Fernando virou nome da rua, 48 anos depois (a história é contada pelo jornalista Sebastião Nery).

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Alberto Hoisel: “Lei, te emendes!”

Em não identificado momento dos anos sessenta, Alberto Hoisel, grande poeta satírico e boêmio juramentado de Ilhéus, está “fazendo o Rio de Janeiro”, em companhia do amigo e não menos boêmio Fernando Leite Mendes. Na boite Night and Day (1º andar do Hotel Serrador),  então o endereço dito obrigatório da boemia de bom gosto, Alberto, entre um gole e outro, anota num guardanapo esta bela quadrinha, com um trocadilho que é um achado: “Lei! Tu sempre foste errada,/ Por isso ninguém te entende…/ E sem que faça piada, / Eu te digo: ´Lei, te emendes!…´” (a história está em Solo de trombone – ditos & feitos de Alberto Hoisel, de Antônio Lopes). Faltou dizer que FLM é nome de rua também em Salvador, onde nasceu.

A FALTA QUE FAZ O DICIONÁRIO “POÉTICO”

Uma amiga me inquire a respeito de palavras “poéticas” – se há termos adequados para escrever poesia. Pelo que entendo, não. Dizer que sim seria admitir a existência de um dicionário apropriado para os poetas, de sorte que bastaria adentrar a livraria, comprar a última edição revista, atualizada e ampliada, depois sair por aí desembestado a escrever sonetos, elegias, odes, éclogas, epopeias, versos concretos, abstratos, brancos, pretos (ou afrodescendentes?) e o que mais nos desse na telha. Isto já nem seria um dicionário, mas uma usina de talentos, fabricando, como em desenfreada linha de montagem, drummonds, camões, cecílias, florbelas e bilacs à mancheia (para fazer o povo pensar).

As palavras estão à nossa disposição

Na falta desse livro mágico, é tratar de combinar palavras, extraindo-lhes ritmo, imagem, som e, às vezes, fúria. Vejam que elas são as mesmas à disposição de todos, e apesar disso não há em cada esquina um Castro Alves. É questão de saber usá-las. Algo parecido acontece com as notas musicais: são apenas sete (se abstrairmos os bemóis e sustenidos), mas sua combinação oferece os mais surpreendentes efeitos: de tão poucos recursos é possível fazer arrocha, “música baiana”, jazz, samba, Tom Jobim e a Quinta Sinfonia de Beethoven, para não citar muitos exemplos. A Quinta, aliás, me soa adoravelmente simples, ao menos no início do primeiro movimento – a parte que todo mundo conhece.

O destino (ou a morte) batendo à porta

A anedota de que as quatro notas que abrem a peça (tente sol-sol-sol-mi) significariam o destino (ou a morte!) batendo à porta carece de valor científico: um ex-secretário do velho Ludwig, aspirante à notoriedade, teria inventado estas e outras inverdades a respeito do músico, após o desaparecimento deste. Outra curiosidade: as três notas iniciais (três sons breves e um longo) correspondem à letra V no Código Morse. Não por acaso, a Quinta foi executada pela BBC de Londres, em 1965, logo após a morte de Winston Churchill – o estadista britânico usava o V (de Victory/Vitória) como gesto de incentivo a todo foco de resistência à agressão nazista.

(O.C.)

11 respostas

  1. É Ousarme, em nossa terra brasilis, os patrícios adoram propostas novidadeiras, acham chique. Aliás, chique já soa pobreza de espírito.

    Penso igual a você acerca do termo “paralímpico”. Confesso que fiquei chateada, mas não encontrei com quem falar disso, ou não tive tempo. Ainda bem que alguém com poder de fogo conseguiu acertar isso.

    A quinta sinfonia de Beetoven é a própria poesia. Vibrante, emocionante lembra as bachianas brasileiras…

  2. E pensar que era eu isolado nesta quixotesca batalha em defesa de nosso idioma ..!
    Alberto Hoisel escreveu realmente “foste errada” e não
    “fostes errada…”, ou foi defeito de digitalização ou o guardanapo fora manchado por um pouco de cerveja ?
    Não sei se gosto do que voce escreve. De uma coisa tenho
    cer
    teza: ninguém deu a liberdade de voce se ausentar.

  3. Hum… Pelo que andei ouvindo, há uma questão de “merchandising” por trás dessa medida. Se não me engano, o COI se apossou do termo “OLÍMPICO” e como os PARAOLÍMPICOS não são por ele patrocinados surgiu essa “fenda”. Ou seja, é tudo uma questão de dinheiro, mercado, ganância, egoísmo…

    Quem tem melhores e fidedignas informações contribua contestando ou completando o que eu disse.

    http://oarietenanet.blogspot.com.br/

  4. E seguindo esses disparates, desses colonizados, mestre Ousarme, teve um deles que teve coragem de sugerir brazuca como batismo para o mascote da copa. Imaginem!

    O brazil não conhece o Brasil, e ainda conta com a colaboração dos tontos.

    E quanto a belíssima quinta sinfonia de Beethoven, eu gostaria de que fosse Johan Sebastian Bach, batendo à minha porta, na hora da morte tocando Jesus Alegria dos Homens, uma das obras mais belas que a alma humana já produziu. Aí, então, eu gritaria: agora luz, mais luz, e daria o último suspiro com alegria.

  5. Quanto às palavras que “estão à nossa disposição” para serem transfiguradas em poesia, veja o que me contou um poeta (e juro que não foi nenhum Olavo Bilac).Foi-me garantido que a “caça” impõe uma sofrida alternância, verdadeira AGONIA:

    “Há o etéreo tapete, Via Láctea de ideias,
    Caminho de Santiago…
    e a alma do poeta se faz palco de estreias
    É…Luzes! Som! Ação!
    Explosão de sentimentos…

    Mas há o buraco negro, tenebroso esgotamento,
    o fluxo inverso, o reverso,
    a extrema sucção, o arrebatamento ao contrário
    Não há som…nem luz…nem nada!
    Não se encontra sequer estrada obscurecida.
    Só vertigem…vertigem…vertigem…”

    Como saber se ele tem razão? Deve ser mesmo uma agonia o negror
    de um arrebatamento MUDO…

  6. Em linguagem nem um pouco poética: “poesia” é somente uma das funções da linguagem (Ver Jakobson).
    Palavra serve pra (quase?) tudo: explicar o mundo, explicar a si mesma, comover , testemunhar, mentir, seduzir, divertir etc.
    Hipótese paranóica: às vezes acho que nós é que estamos à disposição das palavras. Sereias, elas nadam por aí; só esperando o vivente incauto que lhes ouça o canto silencioso e lhes dê voz.
    (Já dizia Lacan:”o inconsciente é estruturado como linguagem”. – E rebateria Skinner: a palavra é comportamento verbal; nada além disso.)
    ………………………
    SOLO DE TROMBONE – capa de Arnold Coelho. Tenho aqui. Já li. Foi presente da “Leitora Sempre Atenta”.
    …Exercício de biografia contrafactual: “Como seria uma Ilhéus com Alberto Hoisel na prefeitura?”
    …A.L. gabrielgarciamente… Contraponto a “Notícia Histórica de Ilhéus”(Ainda não li.), de Arléo Barbosa, meu antigo professor. Função fática prosapiando com a poética: gostava (lusitaneamente: imperfeito substituindo o condicional) de ler.
    Quando se trata de literatura, ninguém pode ser acusado de contar mentiras ou dar asas à imaginação (Eita!que chavão.).
    Que ninguém nos ouça: careces de menor fidelidade ao real. Salvo leitura mais atenta, em ESTÓRIA DE FACÃO E CHUVA, a única mentira inexoravelmente deslavada é o conto “Estória de facão e chuva”. Mesmo assim recolhida da boca do Barão de Macuco, pelo qual , tenho certeza,não hás de colocar a mão no fogo.
    A bem da mentira, fechas o livro com “A bem da verdade”; no entanto, nestes tempos de curtos-circuitos midiaticomatrixianoespetaculares – nos quais não há critério seguro para diferençar realidade e fantasia, seja o último agraciado com o Nobel de Medicina, seja o balconista Afonso , seja o Doutor House, são todos personagens verossímeis de uma mesma equipe miraculosa…
    …Ou seja, bem que pode ter acontecido.
    (Em rigor, assistindo à habilidade bruceleekungifuriana no manejo das peixeiras chinesas e dos porretes, nem mesmo posso duvidar do relato do Barão.)
    ………………………
    Retomo, por fim, as considerações técnicas a respeito da linguagem.
    Como mais ou menos aprendi de Umberto Eco: se não serve para mentir, um pretenso sistema significante não pode ser chamado de linguagem. Mesmo que não se esgote na arte da mentira, toda semiótica que se preze guardará sempre essa possibilidade.
    Poesia e mentira são irmãs que nadaram no mesmo líquido semiótico.
    (Funções: veredas…)
    ………………………
    Nem tudo está perdido: o plural de mouse ainda é mouses…
    ………………………
    Abração.

  7. leidikeit – É oportuna a lembrança das Bachianas de Villa-Lobos, série de músicas que aproxima o concerto clássico do folclore brasileiro. Aliás, o velho Bach, de repente, entrou em moda: Ricardo Seixas, abaixo, também vai reverenciá-lo. Creio que a “chateação” com certas “novidades” da linguagem (comportamento que temos registrado aqui) mostra como esta coluna, na sua despretensão, atingiu um público mais exigente e crítico do que o habitual.
    JORGE BITENCOURT – Penso que todo comunicador, para não citar as pessoas letradas em geral, precisam integrar-se a essa “quixotesca batalha”… O guardanapo estava molhado, sem dúvida, mas Alberto Hoisel usou corretamente o pretérito perfeito, na segunda pessoa (“foste errada”). “Fostes errada” ficaria bem se ele tratasse a Lei com cerimônia (“Vós”), mas ele a chamou de “Tu”, com intimidade. Se você disser que não gosta do que eu escrevo, saiba que isso em mim provoca imensa dor… Mas dizer que ninguém me deu liberdade para a ausência eu tomo como elogio.
    O Aríete – Que a invenção “paralímpico” esconda um nicho de mercado, não sei, tampouco duvido que seja verdade. Este, afinal de contas, é um país de gente muito “criativa”, quando se trata de ganhar dinheiro sujo. Quem tiver “melhores e fidedignas informações” que se apresente para nos esclarecer.
    Ricardo Seixas – “Brazuca” parece uma asneira de bom tamanho. Quanto ao símbolo escolhido, digo que adorei: o tatu-bola-da-caatinga (assim cheio de hífens, como a desafiar o acordo ortográfico). Esse simpático bichinho se enrola todo, fica parecendo uma bola, daí o nome (em Porto Alegre, ele foi chutado em praça pública, como se bola fosse). Para a turma do almanaque, lembro que se trata do Tolypeutes tricintus, que já foi servido assado, cozido e frito, por isso se encontra entre as espécies ameaçadas de extinção. E como hoje estamos “popularizando” Bach, remeto quem não conheça (e quem conheça também!) à gravação de Jesus Alegria dos Homens (Cantata 147) de Baden Powell. A citação de Goethe trouxe mais “luz” à coluna…
    Leitora (sempre) atenta – Irmãzinha querida, li por acaso seu comentário da semana passada (não costumo lê-los após a terça-feira) e, por saber que você não cultiva injustiças em seu quintal, penso num mal-entendido. Quando tomei meu cursinho de edição para tevê aprendi que o áudio deve ser “coberto” com imagens pertinentes: logo, porque Rosa de Otávio de Sousa é mulher (“estátua majestosa do amor” ) a ser conduzida “um dia aos pés do altar”, não se deve cobrir o áudio com um produto vegetal, nem que seja um dos mais belos que a natureza criou (seria como falar do Saara e mostrar o rio Macuco). Há exatamente um ano (16.10.2011) postamos aqui Rancho das flores (olha Bach outra vez!), em que, pela pena de Vinícius, louvamos a rosa, “Que em perfume e em nobreza/Vem antes do cravo/E do lírio e da hortênsia/E da dália e do bom crisântemo/E até mesmo do puro e gentil malmequer”. Rosa é, “tecnicamente”, para “mulheres divinas e graciosas”; Rancho das flores, para rosas se abrindo (talvez tenhamos nos excedido: eu em técnica, você em sensibilidade)… E “seu” poeta mostrou um lugar onde me vejo com frequência na minha luta mais vã de todos os dias: “o buraco negro, tenebroso esgotamento”. Sobre as “possibilidades” do verbo Ser, desde menino (há uns 100 anos, portanto) me encanta esta construção de Gonçalves Dias (O canto do guerreiro): “Os campos juncados/ De mortos são já:/ Mil homens viveram,/ Mil homens são lá”.
    Juliana Soledade – Eu também acho que pensar leva à dúvida e ao questionamento – e, segundo o velho René, é essencial à vida: “Penso, logo existo”. E gosto dessa “testa franzida” que interroga: o por que é mais importante do que o como e o que.
    Inté.

  8. Eita beleza!! Adoro uma celeuma!

    Ao meu irmão (registrado no cartório familiar):

    Quanto à Rosa, tudo bem, afinal não fiz nenhum “cursinho de edição para tevê”. Aceito as explicações…No que se refere ao verbo SER, vejamos:

    Após rápido entrevero,
    Encerrada a apuração,
    O Alberto estava certo
    na sua reverberação.

    Um beijo para Gonçalves Dias, este sim um IMENSO POETA!

  9. No apagar das luzes do assunto da semana, uma correção.
    Um vacilo, um descuido,uma sílaba a mais e o 4º verso da quadra sobre A.H. saiu com erro, trazendo prejuízo para o sentido e a métrica.
    Corrigindo:

    Após rápido entrevero,
    Encerrada a apuração,
    o Alberto estava certo
    na sua verberação.

    Sorry! (diriam os “bárbaros”)…

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