Presidente conseguiu emplacar medo de vacina num país onde o vírus contra o qual ela protege chegou a matar 4 mil pessoas num dia
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Do ponto de vista de quem sabotou a compra de vacinas e discursou contra as medidas restritivas (e impopulares) de combate ao vírus, faz sentido convencer as pessoas de que não há justificativa para pressa em se proteger contra uma doença que matou mais de 3 milhões de semelhantes em 18 meses.

Thiago Dias

No segundo semestre de 2020, enquanto o mundo corria atrás de farmacêuticas para garantir a compra de vacinas entregues a tempo de salvar vidas,  o presidente da República não aceitou os termos do contrato da Pfizer, que ofereceu sua vacina contra covid-19 ao Brasil.

Feita em agosto, a oferta previa a entrega de 500 mil doses em dezembro, 3 milhões em fevereiro e 70 milhões até junho de 2021. No sábado (24), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou que o Brasil vai receber 1 milhão de doses da Pfizer até esta quinta-feira (29).

Dessa vez, o governo aceitou todas as cláusulas da fabricante, inclusive a que a isenta de responsabilização por eventuais efeitos colaterais da vacina. Essa cláusula está presente nos contratos de todos os países com a Pfizer. Um mês depois de negar a oferta, Bolsonaro não se insurgiu contra o acordo da Fiocruz com a Astrazeneca, que tem a mesma cláusula.

Segundo as associações farmacêuticas, essa isenção é regra comum há décadas, mesmo porque os países têm instituições que controlam a qualidade de vacinas e medicamentos disponibilizados à população, a exemplo da nossa Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Portanto, são as nações e seus governantes, orientados por agências especializadas, que assumem a responsabilidade inerente ao exercício do mandado político.

“E DAÍ?”

Bolsonaro age como se fosse inimputável, pois zomba da responsabilidade do cargo mais poderoso do sistema de governo presidencialista. Na sua versão distorcida sobre a competência concorrente entre os entes federativos na gestão da crise, ele não tem culpa pelo descontrole da pandemia, porque o STF teria esvaziado o poder do Executivo Federal nessa matéria. Mentira. O Supremo apenas reconheceu a autonomia de estados e municípios, sem afastar a competência da União, para legislar sobre as medidas de saúde pública. A verdade é que Bolsonaro não quis assumir a parte que lhe cabe desse latifúndio macabro.

Quem esqueceu o questionamento lapidar do ex-ministro Pazuello, feito em dezembro de 2020, quando o país beirava a marca de 200 mil mortes pela Covid-19, e jornalistas, estes idiotas, pediam o cronograma da campanha nacional de vacinação? “Pra que essa ansiedade, essa angústia?”, perguntou o auxiliar do capitão. Talvez não imaginasse que o dobro de vidas seriam perdidas quatro meses depois. Apesar do flagrante descolamento da realidade, pode ter faltado imaginação ao general de 3 estrelas.

Do ponto de vista de quem sabotou a compra de vacinas e discursou contra as medidas restritivas (e impopulares) de combate ao vírus, faz sentido convencer as pessoas de que não há justificativa para pressa em se proteger contra uma doença que matou mais de 3 milhões de semelhantes em 18 meses.

No meio desse terror, o presidente conseguiu emplacar o medo de vacina. Alguém, neste exato momento, está sendo surpreendido por outro alguém dizendo-lhe que não quer ser vacinado, e o mérito desse grande feito de convencimento contra a razão é, em grande parte, de Jair. Um grande feito, como se sabe, não é necessariamente bom. O adjetivo dimensiona o substantivo, mas seu produto pode ser uma catástrofe. É esse o caso da obra de Bolsonaro, o protagonista de uma tragédia nacional.

Thiago Dias é repórter e comentarista do PIMENTA.

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