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EUFEMISMOS, PRECONCEITO E SUPERSTIÇÃO

Ousarme Citoaian
Expressões populares, frases feitas e eufemismos constituem o apanágio de cada língua. Às vezes, tais construções mal conseguem disfarçar a carga de superstição e preconceito que carregam, levando o povo a dar voltas à imaginação e nós na língua, para evitar o nome verdadeiro das coisas. Há comunidades que nunca pronunciam a palavra diabo, tenho uma amiga que não fala em azar (ela prefere “má sorte”), em outros tempos não se dizia que uma pessoa estava com tuberculose, câncer é palavra que muitos não usam – e na grande fase do Santos a torcida adversária não pronunciava, durante o jogo, o nome de Pelé: era somente… Ele.

AS DIVERSAS FÓRMULAS PARA NÃO “MORRER”

Para a palavra morrer, há dois grupos de eufemismo, ambos dando cores e odores próprios à língua. O respeitoso: falecer, descansar, fechar os olhos, desencarnar (entre espíritas) e dar o último suspiro – além do detestável “passar para o andar de cima”, ao gosto de quem aprende português com a Globo. Do lado gaiato: bater as botas, esticar as canelas, ir comer capim pela raiz, bater a caçoleta, botar o bloco na rua (por certo, lembranças serão despertadas). Tenho minhas preferidas nos dois conjuntos: no primeiro, formal, gosto de “faltar”; no jocoso, destaco “subir no telhado” (resquício de uma das melhores piadas de português de todos os tempos).

“MINHA MÃE FALTOU-ME ERA EU PEQUENINO”

E por falar em português, sem gracinhas, reporto-me a Guerra Junqueiro (1850-1923), com cuja poesia abono o eufemismo para morrer, a que me referi.  No poema “Os simples”, ele canta (chora!): A minha mãe faltou-me era eu pequenino,/mas da sua piedade o fulgor diamantino/ficou sempre abençoando a minha vida inteira,/como junto dum leão um sorriso divino,/como sobre uma forca um ramo d´oliveira! Penso que “minha mãe morreu” não teria jamais a pungência de “minha mãe faltou-me”. E imagino tempestivo lembrar que esse Abílio Manuel Guerra Junqueiro nasceu num lugar de nome lindo, ao norte de Portugal: Freixo de Espada-à-Cinta, pois, pois.

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A LINGUA É NOSSA HERANÇA E PATRIMÔNIO

Nossa língua é mais do que caminho de expressão de ideias e sentimentos. Ultrapassa a utilidade imediata da comunicação entre as pessoas para ser ferramenta da história, da cultura, dos valores do passado, da construção do presente, da projeção do futuro. Bem lembra Bilac que, em português, ”Camões chorou, no exílio amargo, o gênio sem ventura e o amor sem brilho”. A linguagem é herança, patrimônio que nos legaram – e do qual nos cabe cuidar, conservar o que precisa ser conservado, transformar o necessário e passar esse conjunto às gerações próximas, com orgulho e responsabilidade.

CONFUSÃO ENTRE HIPOCRISIA E LIBERDADE

O jornal, por ser mais perene do que o rádio e a tevê (apesar de mais transitório do que o blog), é grande repositório desse cabedal, por isso precisa ser menos permissivo na abertura de seus espaços, numa hipocrisia travestida de vaga liberdade de expressão. Nossas páginas estão cheias de artigos e comentários de autolouvação, que em nada ajudam a melhorar a sociedade, mesmo que sirvam ao ego de quem os assina. Texto tatibitate, bajulação aos poderosos do momento, redação descuidada, solecismos à mancheia e lugares-comuns a dar no meio da canela – são um desserviço imposto à língua.

PRINCÍPIO DE JORNALISTAS E COSTUREIRAS

Os (maus) exemplos são legião. Antes, parodiemos Cláudio Abramo, que disse (em A regra do jogo) ser a ética do jornalista a mesma ética do marceneiro (e creio nisso, pois a ética é mesmo um valor comum a qualquer atividade): jornalistas, do ponto de vista operacional, não são diferentes de costureiras, por exemplo. Àquelas, se não conhecem linha e agulha, ninguém daria emprego; destes, há de se exigir conhecimentos básicos de língua portuguesa. São princípios, mutatis mutandis, indispensáveis para quem quer costurar ou escrever (que talvez seja, no final das contas, um gênero de costura).

VERBO TRANSITIVO DIRETO E MÁ COMPANHIA

O exemplo foi colhido em coluna de jornal de Ilhéus. Ao prantear a morte da professora Nélia de Saboia Orrico, o colunista descreve o ambiente do cemitério em linguagem romântica, talvez para atenuar o trágico. “O farfalhar do vento entre as alamedas com árvores frondosas nos convida a fazer sempre uma reflexão sobre o sentido da vida”, filosofa. Em merecida adjetivação à mestra, ele destaca a “perda irreparável” e saca este fecho infeliz: “Nunca vamos lhe esquecer”. Verbo transitivo direto, como este, acha que o “lhe” é má companhia: “Nunca vamos esquecê-la” é a forma requerida.

UM HOMEM DE RELAÇÕES (MUITO) PERIGOSAS

David Nasser  (1917-1980) foi um dos brasileiros mais influentes do seu tempo. Homem de muitas faces, publicou vários livros e reportagens de altíssima octanagem, que lhe renderam fama e dinheiro. Principal pena alugada de Chateaubriand, perseguiu desafetos e defendeu monstruosidades como o Esquadrão da Morte. Certa vez, com o fotógrafo Jean Manzon, fez uma reportagem para “ensinar” aos brasileiros como distinguir um japonês de um chinês. E dentre outras coisas, disse que o japonês podia ser identificado pelo aspecto “repulsivo, míope, insignificante”. Ao morrer, riquíssimo, teve o caixão coberto pela bandeira da organização criminosa que apoiou.

 

DE DENTRO DO MONSTRO EMERGIA UM POETA

Dentro do monstro habitava, além do panfletário temido, um poeta de belos versos. É, esse David Nasser de tão degradada biografia, um dos letristas mais festejados da MPB, parceiro de grandes músicos, sobretudo de Herivelto Martins. É autor de pérolas como Canta Brasil (com Alcir Pires Vermelho), Confete (Jota Júnior) e Normalista (Benedito Lacerda). Com Herivelto, fez Atiraste uma pedra, Pensando em ti e Camisola do dia, (as de que me lembro), uma memorável série de tangos (Estação da luz, Carlos Gardel e Hoje quem paga sou), além da vinheta de fim de ano usada pela Globo ( “Adeus ano velho, feliz ano-novo…”), em parceria com Francisco Alves.

RELEMBRADO POR BETÂNIA, CAETANO E GAL

Na minha memória, quem mais gravou David Nasser foi Nelson Gonçalves. Maria Betânia – que pode não ser a cantora que dizem, mas é dona de indiscutível bom gosto e cultura musical – regravou Atiraste uma pedra e A camisola do dia (Gal Costa também cantou Atiraste uma pedra) e Caetano recuperou Pensando em ti. Percebam como o jornalista, ao contrário de muitos coleguinhas por aí, não se permite cair na armadilha dos pronomes da segunda pessoa: eu amanheço (e anoiteço) pensando em “ti”, eu não “te” esqueço, vejo a vida pela luz dos olhos “teus”, “te” vejo nas espirais de fumaça, se leio um livro, em cada frase “tu” estás – e por aí vai. Uma aula.

(O.C.)

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