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Foto KVKaroline Vital | karolinevital@gmail.com

 

Toda essa confusão a respeito do nível de dificuldade do tema da redação do Enem me fez refletir sobre como a população surda vive à margem da sociedade brasileira. Nós, ouvintes, investimos em dominar outros idiomas, a exemplo do inglês e do espanhol, mas não nutrimos qualquer interesse em aprender o básico sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras), segundo idioma oficial do país.

 

Desde 2004, ganho a minha vida escrevendo. Já fiz redação para rádio, jornal, internet. Em 2011, obtive 960 na redação do Enem. E, em 2012, marquei 100 pontos no concurso da Polícia Militar da Bahia. Portanto, posso não ser a melhor escritora do mundo, mas entendo alguma coisinha sobre como produzir um bom texto.

Neste ano, fui presenteada com a grata oportunidade de ganhar minha vida ajudando os outros a escrever. Quem me abriu essa possibilidade foi o professor Emenson Silva, após nos conhecermos quando fui contratada para escrever sobre o segredo do sucesso do Curso Gabaritando. E tem sido uma incrível experiência de partilha, pois sinto que estou aprendendo muito mais do que tenho mediado.  

Ao longo das aulas de redação, trabalhei com os estudantes do Pré-Enem os temas apontados pelos grandes cursos do país como os mais prováveis a cair no certame deste ano. Mais do que entregar uma redação pronta, tentei mostrar maneiras de extrair ideias dos textos motivadores, sempre frisando: vocês devem estar preparados para escrever sobre qualquer coisa. Portanto, mantenham a calma, reflitam sobre o tema, construam a estrutura da dissertação, escrevam e revisem.

Todavia, a preocupação com o tema sempre pareceu maior do que o domínio das técnicas de redação. Na busca por uma fórmula pronta, alguns estudantes chegaram a propor que eu escrevesse uma dissertação sobre o tema que considerado mais provável para ser usada como modelo. Respondi que, se tinham tanta certeza sobre o assunto, investissem em pesquisas para embasar seus argumentos. Afinal, muito mais do que a capacidade de escrita, o Enem avalia a leitura dos candidatos, a aplicação dos conhecimentos adquiridos das mais várias áreas, incluindo do Grande Livro do Mundo, como diria Descartes.

Porém, o tema da prova discursiva do Enem 2017 passou uma rasteira nos palpites dados pelos grandes conglomerados da educação brasileira. Ninguém esperava a proposta do Inep: “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Quando divulgaram o tema, a celeuma tomou conta da internet. O Guia do Estudante – “bíblia” dos educandos e educadores brasileiros, pertencente ao Grupo Abril – publicou em sua página do Facebook: “Tema de redação é considerado complexo por professores e leitores”. Claro que não poderiam gostar! Afinal, o mais perto que chegaram do tema foi quando citaram a probabilidade de cair algo sobre acessibilidade. Apenas isso.

A confusão sobre o nível de dificuldade do assunto seguiu assim que o MEC divulgou o tema na internet. Particularmente, não considerei nada absurdo. Afinal, o Enem costuma abordar questões relacionadas à promoção da cidadania e à inclusão dos surdos no processo educacional segue tal vertente.

Assim que vi os textos motivadores, os quais ajudam a nortear a construção da tese e dos argumentos dos candidatos, deparei-me com quatro belas inspirações: um trecho da Constituição Federal sobre o direito à educação da pessoa com deficiência; um gráfico demonstrando a queda do número de matrículas de surdos na Educação Básica; uma peça publicitária abordando a falta de oportunidades no mercado de trabalho para pessoas surdas e, por fim, um breve histórico do acesso dos surdos à educação. Diante de tantas informações disponibilizadas, só pude pensar: “Se alguém não tiver a mínima capacidade de desenvolver algo sobre isso a partir de tantas informações, infelizmente, o problema está com a interpretação de textos, não com o assunto”.

Segundo o IBGE, o Brasil possui quase 10 milhões de pessoas com alguma deficiência auditiva. Então, onde essas pessoas se escondem, uma vez que tanta gente afirma ser complicado falar a respeito da inclusão dessa parcela da população nos processos educacionais?

Toda essa confusão a respeito do nível de dificuldade do tema da redação do Enem me fez refletir sobre como a população surda vive à margem da sociedade brasileira. Nós, ouvintes, investimos em dominar outros idiomas, a exemplo do inglês e do espanhol, mas não nutrimos qualquer interesse em aprender o básico sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras), segundo idioma oficial do país. Não conseguimos considerar qualquer tipo de relação com colegas surdos ou com qualquer nível de deficiência auditiva na escola, na igreja, no trabalho ou em qualquer outro círculo social.  Foi tanto barulho por conta dessas quase 10 milhões de pessoas que, não apenas vivem no silêncio, mas também invisíveis aos olhos da maioria dos seus compatriotas.

 Karoline Vital é comunicóloga e Mestre em Letras: Linguagens e Representações.

4 respostas

  1. Este comentarista é formado em História pela UESC e lecionou em alguns colégios
    a disciplina de História.

    Dentre tantos alunos do ensino fundamental e médio,o que ele gostou de ensinar foi uma aluna do 5º ano fundamental na Rede Estadual de Itabuna,a classe tinha 65 discentes cheios de energias.

    Dentre os abençoados e abençoadas tinha uma aluna que era surda e muda,esta era a melhor aluna da classe,interagia com a mesma através da Lousa e foi aprovada na disciplina e no final do ano letivo têm o conselho de Classe e a Munda e surda foi reprovada pelo conselho.

    Aí este comentarista argumentou que foi feito neste conselho a maior injustiça em reprovar esta aluna, a mesma é melhor aluna da sala,ouve um silêncio e arguir
    e neste momento a coordenadora indagou-me: como você se comunica com ela? Pela
    lousa,o conselho voltou atrás e aprovou a doce aluna muda e surda.

    Outra turma boa de lecionar é o EJA (Educação Para Jovens e adultos) a classe não pisca os olhos e fica ligada na aula, professores e professoras tem maior felicidade é com o aprendizado da turma.

    “Ser aluno é melhor do que ser professor” Autor desconhecido.

  2. Karoline, as pessoas preferem aprender inglês e espanhol pela utilidade das duas línguas. Todo mundo encontra chance de falar essas línguas com certa frequência. Já encontrar um surdo (4,69% da população) é muito raro. Na minha vida inteira só encontrei um, que lia lábios e conseguia articular as palavras o suficiente para eu entender. É essa raridade que não desperta o interesse, não algum desprezo pela linguagem de sinais ou os surdos.

  3. Excelentes ponderações e pertinentíssimas reflexões. Tanto no que concerne ao vício da “redação pronta” (com fórmula mágica e tudo mais) quanto naquilo que faz refletir sobre o quanto ignoramos.

    São muito apropriadas as observações acerca dos modelos de redação que supostamente ensinam a redigir, mas que parecem abolir uma condição essencial à boa escrita: o pensar de forma adequada.

    E, ainda mais elogioso, é o convite que a colunista efetiva ao evidenciar o fato de que nós brasileiros estamos a ignorar (literalmente deixando no silêncio) quase 5% de nossa população.

    Emblematicamente, tive o prazer de conhecer S. Raimundo, ali na Av. Canavieiras, que no passado fazia um pastel delicioso (não sei se ainda faz). Deficiente auditivo, ou surdo (se assim preferirem), uma pessoa daquelas que não se esquece. Gente boa. Sem ouvir bem, escuta as pessoas com mais carinho e atenção do que tantos que não têm qualquer problema na audição. Sempre bem humorado, de bem com a vida. Sai. Vai á feira. Se vira como pode.

    Também conheci (em Uruçuca) D. Elizete, uma senhorinha que faz um doce de banana maravilhoso. Sempre na luta para conseguir seu aparelho auditivo (e as pilhas que teimam em terminar), simpaticíssima. Uma guerreira.

    Esse dois seres humanos, ainda que com limitações na audição, são pessoas perseverantes, que lutam, que se empenham e que mesmo contra todos os entraves e obstáculos, não perdem o otimismo e a alegria.

    Se o tema do ENEM, citado como complexo por alguns, não tivesse servido a nada mais, mas apenas para que lembrássemos de pessoas como pessoas como S. Raimundo e D. Elizete, já teria feito muito, pois teria servido para notássemos tanta gente boa que está ao nosso lado e que sente o mundo de forma diversa.

    Este foi, sem dúvida, um tema muito adequado… Porque faz pensar… Isso é o mais importante.

    Parabéns à colunista pelo brilhantismo no trato com as palavras.

  4. Aprender sem ter a necessidade não interessa. Então todos devem escrever em braile? Argumentos românticos, mas de quem não vive na realidade.

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