CAYMMI E A ESCOLHA DO VERBO ACONTECER
Falamos aqui do verbo acontecer e seu bom uso, exemplificando com o clássico de Caymmi, Não tem solução (“Aconteceu um novo amor/ que não devia acontecer…”). Como conversa puxa conversa, chegamos hoje a outras acontescências (o termo foi inventado por Vilma Guimarães Rosa, que tem pedigree suficiente para tanto): o verbo está bem distribuído na MPB, pois só o mesmo Caymmi o empregou com certa prodigalidade em composições além da citada. “Acontece que eu sou baiano,/ acontece que ela não é/ minha Nossa Senhora,/ meu Senhor São José”, diz ele em Acontece que eu sou baiano/1943.
EM CARTOLA, NINHO VAZIO, CORAÇÃO FRIO
Numa de suas melhores canções românticas, o cantor do mar da Bahia é didático sobre o sentido que defendemos para o verbo acontecer: “O amor acontece na vida/ estavas desprevenida/ e por acaso eu também” (Nem eu/1949). Perceba-se que o acontece é algo surpreendente, não está planejado, atinge os amantes distraídos. Cartola não deixa por menos: “Acontece que o meu coração ficou frio/porque nosso ninho de amor está vazio” – trazendo o mesmo sentido do não planejado: de repente (não mais que de repente), a ave bateu asas, ganhou o espaço, deixou vazio o primitivo ninho. Acontece.
O AMOR NOS IMPÕE URGÊNCIA E SURPRESA
JORGE AMADO E SUA “SINFONIA INACABADA”
LIVRO QUE ESTAVA “EM TODOS OS JORNAIS”
Certa vez, numa coletiva em Ilhéus, Jorge Amado (foto) foi “alugado” por uma repórter, que lhe fez várias perguntas mais ou menos ociosas, às quais o escritor respondia pacientemente. Mas tudo tem limite. Lá pras tantas, quando ela perguntou se ele estava trabalhando “em algum livro, atualmente”, o autor de Terras do sem fim quase saiu do sério. Respirou fundo, virou-se para o poeta Telmo Padilha, que o acompanhava naquela aventura, e soltou, entre dentes: “Telmo, assim eu não aguento”. Mas agüentou. Repregou o sorriso no rosto, chamou a repórter de “minha filha” e lhe explicou, com certo enfado, que tecia um romance (era Bóris, o Vermelho), que estava “em todos os jornais”.
GREEN, TRANQUILO: “LEIA MEUS LIVROS”
Mas nem todo mundo tem a bonomia de Jorge Amado. Em 1958, o escritor Graham Greene (foto) esteve no Brasil e, ainda no aeroporto Tom Jobim (então chamado Galeão), deu uma exclusiva ao irrequieto repórter Severino de Albuquerque, dos Diários Associados. Ou melhor, quase deu, pois só houve uma pergunta e uma resposta. Severino: Mr. Greene, quais são os livros que o senhor escreveu? Mr. Greene (com tranquilo ar britânico, mesmo sem cachimbo): Meu filho, volte para casa, leia meus livros e só depois venha me entrevistar. A historinha eu tirei do delicioso Nonadas – O livro das bobagens (Flávio Moreira da Costa – Francisco Alves/2000), ótima leitura para pessoas de bom ou de mau humor .
ANTIGA LIÇÃO QUE MUITOS NÃO APRENDERAM
ATRAPALHAÇÃO AO REDOR DE POLICHINELO
Em edição recente, conhecido jornal diário de Itabuna, referindo-se a uma investigação conduzida pelo Ministério Público Estadual, afirma: “Ninguém toma conhecimento do que irá acontecer com os vereadores que tiveram participação na malandragem da Câmara”. E conclui, para minha mais absoluta palidez de espanto: “É um segredo polichinelo (sic), guardado a sete chaves”. Data vênia, creio que foi confundido o significado dessa expressão popular e antiga, velha de muitos séculos, quando ainda estava em moda a Commedia dell´Arte, talvez mãe e pai do teatro de rua.
AFINAL, O QUE É “SEGREDO DE POLICHINELO”?
Segredo de Polichinelo (assim, com preposição e P grande!) significa, ao contrário do publicado, alguma coisa que é considerada segredo, mas que todos já sabem, isto é, aquilo que alguém trata confidencialmente, mas que deixou de ser segredo, é algo de conhecimento público. A referência é ao personagem Polichinelo (na ilustração), da modalidade teatral européia (italiana, mormente) Commedia dell´Arte (com início lá pelo século XVI). Elementos mais conhecidos desse gênero são Colombina, Pierrô e Arlequim, um triângulo amoroso do Carnaval, na já longínqua era pré-trio elétrico.
Respostas de 10
Prezado Ousarme,
Não seria o Aeroporto do Galeão, hoje Tom Jobim?
Essa do Greene foi bem britânica mesmo, mas merecida. Nada contra a nossa proverbial capacidade de improvisar, mas preparação prévia é sempre bom.
Um jardim… Um repuxo…Uma mulher…Um beijo
Um jardim…Um repuxo…Uma mulher…Um sonho…
Um Arlequim debochado…
Um branco Pierrot tristonho…
Entre a história de um Arlequim lascivo e de um Pierrot apaixonado, os versos de um poeta genial: MENOTTI DEL PICCHIA.
MÁSCARAS…Um poema que relata de forma inigualável o conflito feminino diante da escolha entre o BEIJO de Arlequim e o SONHO de Pierrot.
Quisera que essa história ainda tivesse vez, nesses tempos modernos!
Esse Ousarme é D+… Tá na hora dele sair do armário (no bom sentido, claro!). Algumas vezes penso que Ousarme é Daniel Thame, outras que é Antônio Lopes. Noutra semana acho que é Jorge Araújo ou Marival Guedes. Vão endoidar outro… Quem é não tem importância. O que vale é que somos brindados semanalmente com a mais espetacular coluna sobre cultura geral. Parabéns, seu Pimenta. Parabéns, Ousarme.
Gesil Amarante,
Você está certo, é Galeão mesmo. Obrigado pela “parceria”, corrigindo meu erro.
“De Arlequim, o beijo quente, de Pierrô o sonho manso”, diz o poeta evocado por Dinah. Creio que a humanidade inteira vive esse dilema: quem está com Arlequim, busca Pierrô; quem tem a mansidão, almeja a aventura. “Quando tenho Arlequim,/quero Pierrô tristonho,/pois um dá-me prazer,/o outro dá-me o sonho” – e me confesso um pouco assustado ao descobrir que este espaço é frequentado por gente que lê Menotti Del Pichia, um dos ícones da Semana de Arte Moderna. A citação, sobre ter aumentado a responsabilidade da coluna, lhe agregou prestígio. Máscaras (anterior à Semana de 22), o poema citado, é eterno, definitivo, sobre a nossa frágil (e muitas vezes ridícula) condição humana.
Isaac esteve “morno” na tentativa de um nome real para Ousarme Citoaian. Na verdade, suas “suspeitas” deixaram minha a alma em festa, por ter sido superestimada: os nomes sugeridos estão acima da competência deste hebdomático colunista. Qualquer deles escreveria muito bem esta coluna, provavelmente melhor, resguardadas as naturais peculiaridades de estilo. Uma pedra no caminho dos caçadores de heterônimos: e se O. C. não fosse um, mas muitos?
Obrigado a todos.
Está muito, muito para ser meu querido astro brilhante, Jorge de Souza Araújo. Essa eloquência, esses termos, sei não…
OUSARME, VOCÊ APRECIA UMA ANTARCTICA GELADA??
GF,
Sou eclético, porém democrático: além da citada, não desdenho, em hora aprazada, o bom uísque e os vinhos, tintos de preferência; asseguro-lhe, porém, não ser racista, portanto nenhum ódio devoto aos brancos…
hehehe… sempre com o texto devidamente concatenado!
Fui específico quanto à bebida, pois também suspeitava que você fosse um grande escritor citado pelo Isaac, que notoriamente aprecia a referida. Moro próximo ao doutor, mais precisamente no Ceará (Teresópolis, Piedade etc.).
Contudo, deixemos a identidade preservada em prol do brilhantismo, assim como expressou o Isaac, logo acima.
Abraços!
Obs.: os bairros são de Ilhéus.