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JORGE AMADO E OS REQUINTES DA ESTUPIDEZ

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
Jorge Amado folheia edição em dinamarquês de Tocaia Grande.

Nas muito justas louvações a Jorge Amado (cujo centenário de nascimento ocorre nesta sexta-feira, 10), detenho-me sobre um documento que se agiganta diante de toda a obra vasta do grande romancista. Trata-se de uma surpreendente “Ata de Incineração” produzida pela Sexta Região Militar em 19 de novembro de 1937 – e publicada pelo jornal Estado da Bahia em 17 de dezembro daquele ano. É de estarrecer, ou como gostaria de dizer a própria vítima, “de espantar”. A notícia da queima de 1.694 livros de Jorge Amado é narrada com detalhes (melhor seria chamá-los de requintes de estupidez), começando por nomear os “senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros” (três trogloditas do Exército, Marinha e Polícia do Estado).

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MONUMENTO À BESTIALIDADE

A ordem de incinerar “os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista” partiu do Cel. Antônio Fernandes Dantas, comandante da 6ª RM, e incluiu pequena quantidade de outras obras. O integralista José Lins do Rego teve queimados 82 volumes de seus romances Doidinho, Pureza, Banguê, Moleque Ricardo e Menino de Engenho – prova de que as ditaduras distribuem “democraticamente” suas patadas sem olhar a quem. Mas o grande perseguido era, de fato, Jorge Amado, visto pelo sistema como “perigoso agitador”: dos seus livros levados à fogueira, o de menor quantidade (Cacau, 89 exemplares) ultrapassa os cinco de Zé Lins. A bestialidade do Estado Novo seria, com ligeiras adaptações, reeditada pela ditadura militar de 1964.

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O CAVALEIRO DA ESPERANÇA

Jorge Amado não foi só o escritor picaresco, de humor tipicamente brasileiro (em oposição ao humour britânico de Machado de Assis) vulgarizado pela tevê. Foi, sim, um lutador pelo seu povo, defensor da miscigenação, antirracista. Denunciou o trabalho semi-escravo na região cacaueira, defendeu a liberdade de culto e todas as liberdades. Várias vezes preso no Brasil, exilado na Argentina, no Uruguai, em Paris e na Tchecoslováquia, ele manteve a militância também fora de sua terra: em 1950, foi expulso da França, devido à atividade política com Camus, Sartre, Picasso e outros. Em 1941, durante o exílio na Argentina escreveu O cavaleiro da esperança: a vida de Luís Carlos Prestes, pungente defesa do líder comunista preso desde 1936.

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LIVRO CONTRABANDEADO

É um livro notável, pelo conteúdo explosivo (a denúncia candente da tortura, da perseguição aos comunistas, da violação dos direitos humanos no Estado Novo) e pelas circunstâncias especiais que o cercaram: proibido no Brasil, O cavaleiro… (em espanhol) era vendido clandestinamente, às vezes por preços absurdos. Também apareciam cópias datilografadas e em fac-símile, que passavam de mão em mão, sem dono certo. O livro ganhou nomes carinhosos, como Vida de são Luís, Vida do rei Luís e Travessuras de Luisinho. No governo Perón, O cavaleiro… foi proibido também na Argentina e queimados os exemplares encontrados, valorizando ainda mais os que circulavam no Brasil. “Houve quem vivesse do aluguel de exemplares”, contou Jorge Amado.

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O SORRISO AMARELO DA SOCIEDADE

A pena de Jorge Amado nunca esteve a serviço da literatura dita “o sorriso da sociedade” (expressão cunhada por Afrânio Peixoto) e que Graciliano Ramos bem definiu como “uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha”. É a literatura dos saraus, da poesia tatibitate e bem comportada, que não incomoda. “Foi ela que, em horas de amargura, receitou o sorriso como excelente remédio para a crise”, resume o mestre de Quebrangulo. Jorge Amado trouxe para o romance brasileiro os negros, os pobres, os trabalhadores do cacau, as prostitutas e, avant la lettre, os meninos de rua.

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PREMONIÇÃO SOBRE MENORES INFRATORES

Capitães da areia (808 exemplares queimados), uma premonição sobre os menores infratores de hoje, saiu do prélio em 1937 e logo foi para o fogo. Não valeu esse “sacrifício” do governo: quando veio a anistia, em 1945, Capitães… vendeu feito pão quente, sendo até hoje uma das obras mais lidas do autor. Os demais romances levados à fogueira são Jubiabá (267 exemplares), O país do carnaval (214), Suor (93) e Cacau (89). Jorge Amado retomaria as questões sociais, dentre outros títulos, em Terras do sem fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Os subterrâneos da liberdade (1954) e, principalmente, em Seara vermelha (1946), que, por óbvios motivos, não viraram cinza. Faltou dizer que 223 exemplares de Mar morto também foram queimados.

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SÓFOCLES ESCAPOU DO PAU-DE-ARARA

Mar morto? – perguntaria a atônita leitora; Mar morto? – ecoaria o atônito leitor (desde que cultuem este objeto em extinção chamado livro), e concluiriam que este velho O. C. perdeu de vez o juízo ou bebeu em má fonte. Mar morto, sim, insisto, lembrando-lhes que nas ditaduras a burrice é uma segunda natureza. E afianço ainda que esse mal é contagioso e longevo: em1965, esbirros da ditadura militar (“herdeiros” da fogueira de 1937) invadiram um teatro no Rio de Janeiro, para prender o autor da peça em cartaz, um certo Sófocles, e submetê-lo ao pau-de-arara, choque elétrico nas partes baixas e outros mimos. Pois saibam todos que destas linhas tomarem conhecimento que Sófocles escapou – tinha-se dado ao luxo de morrer há 565 anos.

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JORGE AMADO É MELHOR DO QUE VICTOR HUGO

Faltou dizer que Mar morto, leitura de infância em Buerarema, a história de Lívia e Guma, é um dos mais belos textos de Jorge Amado. Para mim, foi o contato com o que se chamava de “poesia em prosa”: o cotidiano dos trabalhadores do mar em permanente risco, a vida árdua, mas narrada com surpreendente lirismo. Penso que só alguém doente da cabeça ou do pé (talvez dos dois) seria capaz de ver ali obra de ameaça ao regime, livro “simpatizante do credo comunista”. A quem não percebeu a citação, informo que “trabalhadores do mar” é o título de festejado livro de Victor Hugo (traduzido por Machado de Assis), que não chega aos pés de Mar morto.

O lirismo de Jorge Amado chegou também à MPB, numa parceria de Jorge Amado e Dorival Caymmi. 

O.C.

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CAYMMI E A ESCOLHA DO VERBO ACONTECER

Ousarme Citoaian

Falamos aqui do verbo acontecer e seu bom uso, exemplificando com o clássico de Caymmi, Não tem solução (“Aconteceu um novo amor/ que não devia acontecer…”). Como conversa puxa conversa, chegamos hoje a outras acontescências (o termo foi inventado por Vilma Guimarães Rosa, que tem pedigree suficiente para tanto): o verbo está bem distribuído na MPB, pois só o mesmo Caymmi o empregou com certa prodigalidade em composições além da citada.  “Acontece que eu sou baiano,/ acontece que ela não é/ minha Nossa Senhora,/ meu Senhor São José”, diz ele em Acontece que eu sou baiano/1943.

EM CARTOLA, NINHO VAZIO, CORAÇÃO FRIO

Numa de suas melhores canções românticas, o cantor do mar da Bahia é didático sobre o sentido que defendemos para o verbo acontecer: “O amor acontece na vida/ estavas desprevenida/ e por acaso eu também” (Nem eu/1949). Perceba-se que o acontece é algo surpreendente, não está planejado, atinge os amantes distraídos. Cartola não deixa por menos: “Acontece que o meu coração ficou frio/porque nosso ninho de amor está vazio” – trazendo o mesmo sentido do não planejado: de repente (não mais que de repente), a ave bateu asas, ganhou o espaço, deixou vazio o primitivo ninho. Acontece.

O AMOR NOS IMPÕE URGÊNCIA E SURPRESA

Depois de Caymmi e Cartola, chega a vez de Abel Silva (com João Bosco), em Quando o amor acontece/1976: “O amor quando acontece/ a gente logo esquece/que sofreu um dia”.Vinícius disse que a mulher amada não vem; surge. Então é isso. Mesmo se estamos à espera, o ser amado acontece, emerge, sempre nos pega desprevenidos, nos impõe urgência e surpresa, taquicardia e respiração entrecortada. Os meninos Kim, César e Júlio, do ex-gospel Catedral atestam (Quando o amor acontece): “Quando o amor acontece/ é difícil dizer não”. Tudo muito longe da pobreza do acontece das colunas sociais e dos convites mal redigidos.

JORGE AMADO E SUA “SINFONIA INACABADA”

Bóris, o Vermelho é talvez o livro não publicado que mais teve espaços na mídia. Jorge Amado não lhe pôs o ponto final (e determinou que seus trabalhos não concluídos jamais venham a público). Bóris, de nome russo, é um hippie de Itapuã, de cabeça oca, interessado somente em surfe e erva. O sobrenome Vermelho se impôs devido a seu cabelo sarará. É na ditadura militar e um cara chamado Bóris, o Vermelho não fica impune, segue o figurino: prisão, tortura e morte (talvez por ser “morredor”). Apesar da cobrança dos rodapés dos jornais, o livro cedeu espaço para Tocaia grande, O sumiço da santa e outras obras, permanecendo como uma espécie de sinfonia inacabada do filho de Ferradas.

LIVRO QUE ESTAVA “EM TODOS OS JORNAIS”

Certa vez, numa coletiva em Ilhéus, Jorge Amado (foto) foi “alugado” por uma repórter, que lhe fez várias perguntas mais ou menos ociosas, às quais o escritor respondia pacientemente. Mas tudo tem limite. Lá pras tantas, quando ela perguntou se ele estava trabalhando “em algum livro, atualmente”, o autor de Terras do sem fim quase saiu do sério. Respirou fundo, virou-se para o poeta Telmo Padilha, que o acompanhava naquela aventura, e soltou, entre dentes: “Telmo, assim eu não aguento”. Mas agüentou. Repregou o sorriso no rosto, chamou a repórter de “minha filha” e lhe explicou, com certo enfado, que tecia um romance (era Bóris, o Vermelho), que estava “em todos os jornais”.

GREEN, TRANQUILO: “LEIA MEUS LIVROS”

Mas nem todo mundo tem a bonomia de Jorge Amado. Em 1958, o escritor Graham Greene (foto) esteve no Brasil e, ainda no aeroporto Tom Jobim (então chamado Galeão), deu uma exclusiva ao irrequieto repórter Severino de Albuquerque, dos Diários Associados. Ou melhor, quase deu, pois só houve uma pergunta e uma resposta. Severino: Mr. Greene, quais são os livros que o senhor escreveu? Mr. Greene (com tranquilo ar britânico, mesmo sem cachimbo): Meu filho, volte para casa, leia meus livros e só depois venha me entrevistar. A historinha eu tirei do delicioso Nonadas – O livro das bobagens (Flávio Moreira da Costa – Francisco Alves/2000), ótima leitura para pessoas de bom ou de mau humor .

ANTIGA LIÇÃO QUE MUITOS NÃO APRENDERAM

Há quem ache que Greene (1904-1991), autor de clássicos lidos em todo o planeta (por exemplo, O poder e a glória, Nosso homem em Havana), foi muito duro com o repórter. Eu, não (até porque ele respondeu em tom educado). A mais primária das lições que um entrevistador aprende é que ele precisa conhecer o básico sobre o entrevistado. Repórter que pergunta a um escritor (músico, pintor, ator e outros) o que ele fez, conforme já vi em nossa mídia, revela-se, além de ignorante do assunto, despreparado profissional e grosseiro com a pessoa entrevistada. O autor de O americano tranquilo deixou uma lição que não deve ser desdenhada pelas novas gerações de comunicadores.

ATRAPALHAÇÃO AO REDOR DE POLICHINELO

Em edição recente, conhecido jornal diário de Itabuna, referindo-se a uma investigação conduzida pelo Ministério Público Estadual, afirma: “Ninguém toma conhecimento do que irá acontecer com os vereadores que tiveram participação na malandragem da Câmara”. E conclui, para minha mais absoluta palidez de espanto: “É um segredo polichinelo (sic), guardado a sete chaves”. Data vênia, creio que foi confundido o significado dessa expressão popular e antiga, velha de muitos séculos, quando ainda estava em moda a Commedia dell´Arte, talvez mãe e pai do teatro de rua.

AFINAL, O QUE É “SEGREDO DE POLICHINELO”?

Segredo de Polichinelo (assim, com preposição e P grande!) significa, ao contrário do publicado, alguma coisa que é considerada segredo, mas que todos já sabem, isto é, aquilo que alguém trata confidencialmente, mas que deixou de ser segredo, é algo de conhecimento público. A referência é ao personagem Polichinelo (na ilustração), da modalidade teatral européia (italiana, mormente) Commedia dell´Arte (com início lá pelo século XVI). Elementos mais conhecidos desse gênero são Colombina, Pierrô e Arlequim, um triângulo amoroso do Carnaval, na já longínqua era pré-trio elétrico.

PIERRÔ CHORA PELO AMOR DE COLOMBINA

Esses elementos ítalo-franceses estão incorporados à nossa cultura, via MPB: “Pierrô, Pierrô/ teu destino, tão lindo/ é sofrer, é chorar toda a vida…” (Pierrot, Joubert de Carvalho-Paschoal Carlos Magno/1932); “Um Pierrô apaixonado/ que vivia só cantando/ por causa de uma Colombina/ acabou chorando, acabou chorando” (Noel Rosa-Heitor dos Prazeres/1936); “Colombina eu amei/ mas você não quis/ eu fui para você/ um Pierrô feliz” (Colombina, Armando Sá-Miguel Brito/1956); “Arlequim está chorando/ pelo amor de Colombina/ no meio da multidão” (Máscara negra, Zé Kéti/1967).

POLICHINELO PARECE RIR DOS APAIXONADOS

Polichinelo é uma espécie de palhaço, que parece se divertir com a confusão de sentimentos que vê a seu redor: Pierrô ama Colombina (foto), que ama Arlequim, que ama todas as belas damas do salão. Na irônica canção de Noel e Heitor, o triângulo amoroso da Commedia dell´Arte aterrissa no Carnaval do Rio de Janeiro e, por extensão, na cultura brasileira. Clique e (re) veja a leitura da dupla, na voz de Betânia.
(O.C)