Celina Santos | [email protected]
É preciso entender que desrespeitar os limites, quando está envolvido o corpo do outro, é crime hediondo. Não cabe, portanto, o silêncio nem a tentativa de justificar o definitivamente injustificável.
“Será que ela não quis?”; “Também pudera! O que ela queria àquela hora da noite, com uma saia tão curta?”; “Se provocou, o cara não resistiu, ora!”; “Homem não é de ferro!”. Estas são colocações bastante comuns diante de um caso de violência sexual. Elas comprovam o estudo realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), segundo o qual 58,5% dos brasileiros concordam que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”.
O dedo da sociedade muitas vezes transforma vítimas em algozes – até mesmo quando os abusos ocorrem dentro de casa, a partir de pais, padrastos e outros familiares. Assim, o temor do julgamento leva ao silêncio, em lugar da busca por punição àqueles capazes de cometer um dos crimes mais covardes. A mulher estuprada, além do trauma pelo resto da vida, amarga a vergonha de suporem que a causa foi a roupa, o lugar onde estava, o comportamento diante do homem que a violentou.
Apesar dos inúmeros episódios ocultos, as estatísticas (um caso registrado a cada 11 minutos) mostram o quanto resiste no Brasil o que prefiro chamar de “contracultura do estupro”. Talvez como um absurdo indício de naturalização, é possível identificar diversas manifestações de um discurso machista a tratar a figura feminina como objeto. É o caso de letras de músicas que incentivam a exploração sexual, a imposição do desejo do homem sobre a mulher, mesmo que não seja esta a vontade dela.
Não se pode desconhecer, por exemplo, que fiquem no imaginário letras do funk, ritmo que atrai centenas de jovens para bailes com uso indiscriminado de bebida e droga. Muitos desses “versos” incentivam atos sexuais violentos – sobretudo com mulheres menores de idade, as chamadas “novinhas”. E ali se forjam comportamentos deploráveis, mas impunes, porque envoltos numa moldura de naturalidade.
Na Bahia, onde lamentavelmente foram registrados 576 estupros nos primeiros três meses de 2016, não é diferente. Letras repetidas até mesmo por meninos, que sequer sabem o seu significado, também estimulam o sexo com violência. Enojados, ouvimos expressões como “joga lá no meio/ … em cima, … embaixo”, “bota com raiva”, “passa a madeira” etc. Do mesmo modo, está implícito um discurso a incitar práticas passíveis de punição, que esbarram na falsa naturalidade (sempre ela!).
Há quase quatro anos, repercutiu na Bahia o caso do estupro de duas adolescentes por nove integrantes da banda de pagode “New Hit”. Em 2015, eles foram condenados a 11 anos e oito meses de prisão, puderam recorrer em liberdade e, ao que se sabe, não foram detidos. Não bastasse a aparente impunidade, permanece, entre várias pessoas até hoje, a visão de que a culpa foi das garotas que entraram num ônibus onde estavam tantos rapazes.
Parece que o imperativo do momento, além da óbvia necessidade de denunciar e prender estupradores, é reconstruir a maneira como os gêneros se reconhecem e se tratam. Para que outras gerações não testemunhem a mesma desvalorização da mulher nem o inaceitável pensamento de que cabe ao macho decidir quando, como e onde deverá “possuir” a fêmea que deseja. Afinal, não estamos enquadrados no mundo dos animais irracionais.
O rol de barbáries agora transformado em espetáculo através das redes sociais sugere indiferença quanto à velha noção de direitos e deveres que cabem a todos. Contudo, é preciso entender que desrespeitar os limites, quando está envolvido o corpo do outro, é crime hediondo. Não cabe, portanto, o silêncio nem a tentativa de justificar o definitivamente injustificável.
Celina Santos é pós-graduada em Jornalismo e Mídia e chefe de redação do Diário Bahia.
Respostas de 3
Gostaria de saber da nobre jornalista, e no caso de Kátia Cristina que foi assassinada aqui em Camacan na porta da Igreja Assembleia e a imprensa não ajuda essa mãe, divulgando e cobrando das autoridades competentes a punição dos responsáveis, é lamentável como a imprensa não se importa com os pobres, já não basta ser pobre e sofredor ainda tem que ser discriminados até por aqueles que poderiam ajuda-la em tal situação, cito por exemplo esse caso mencionado por quase todos os órgãos e no entanto um caso com um assassinato bárbaro, covarde, pré meditado, sem direito de defesa, na frente da genitora, filhos, tia e membros da igreja, e de repente nos deparamos com uma imprensa omícia, muda e surda, dando a entender que há algo por trás que o impede de divulgar tal fato. Com fato dessa natureza bem próximo de nós, nos atemos a um fato distante, não que o fato seja sem relevância, mais e esse crime? Não foi com uma mulher também? E pior, será que não era mãe? e a forma como aconteceu? Será que merecia ser melhor acompanhado pelos órgãos de imprensa? E porque que a imprensa se calou? Onde estão os Blogs, a imprensa escrita, televisiva e faladas, eis aí alguns questionamentos, pois já não basta a justiça, os direitos…
Boa tarde, sr. “Camacaense Revoltado”. Atendendo a seu pedido, de semanas atrás, esta pauta está em apuração. Porém, ainda não obtivemos o êxito desejado. Sua indignação, assim como a de todos que se deparam com atos de barbárie, é compreensível. A expectativa de todos nós, inclusive da imprensa, é por justiça. Um abraço.
Bem colocada a matéria. Parabéns Celina! Concordo também com o Camacaense Revoltado. O que me irrita é a legislação. E a falta de interesse social dos governantes em todos os níveis, sem esquecer as autoridades. E há uma desgraça social chamada de ‘direitos humanos’. Epa, logo quem defende? Mas defende apenas alguns deixando de lado outros. A moça estuprada no Rio era um caso social difícil; vivia na rua, tentavam dar acolhida e ela fugia; engravidou, davam acolhida ela de novo fugia. E ia pra onde? Pro meio do que ela conhecia como sociedade-outros perdidos em dia de sol: juventude socialmente enferma. Cada dia milhares de mulheres são estupradas não por que exista uma ‘cultura’ e sim porque a Cultura é permissiva com festas onde as músicas destroem o psicológico de crianças em famílias incompletas de trabalho, moradia razoável e estrutura espiritual. Pior, várias vezes paga-se com recurso público a esses tipos de defensores do que chamam cultura.