Tempo de leitura: 2 minutos

O grande desafio dessa doença reside em amar o “improdutivo”, aquele que não pode oferecer muito, é amar o velho e compreender o amor em sua plenitude, em sua forma mais gratuita e genuína, sem cobrança, sem expectativas. É cuidar de nossas lembranças, da nossa história.

Juraci Leal Filho

Somos testemunhas de uma guerra e, ao mesmo tempo, combatentes dela. Crianças estão partindo, jovens, mas principalmente idosos. Nossos velhinhos estão sendo dizimados, famílias tendo seus entes arrancados, acometidos antes pela dor da solidão, que mata devagarinho, e, por fim a partida sem o adeus.

Em algum lugar de nossas vidas, antes dessa pandemia avassaladora, o tempo para os mais velhos parecia artigo de luxo. O filho quase não tinha, o neto, também não. E assim a vida, o ninho vazio seguia para aqueles seres que não mais “produtividade” exercia para a sociedade. Afinal, o velho sempre foi a sobra de um tempo, aquele que somente figurava na vida dos outros, um apetrecho da sociedade que descarta pessoas como objetos.

Mas o tempo se encarregou de aplicar uma lição, surgindo uma doença, que isola as pessoas em suas casas, e o trabalho no escritório teria que dar um intervalo atípico, longo, bem maior que o programado. Trabalhadores incansáveis e indispensáveis a toda uma sociedade tiveram que parar.

Uma doença nova, sem precedentes científicos e literários, tudo novo, no ineditismo do novo Coronavírus, tudo fora da programação normal, pessoas, governos, empresas… Tudo fugiu do script, ninguém tem certeza de nada, a todo tempo inauguramos algum protocolo, alguma estratégia. Roteiro absolutamente longe do nosso controle. O nosso projeto cotidiano precisou ser reinventado, vidas sacudidas.

Muitas reflexões precisaram surgir, e se tudo acabasse agora, em meio a essa doença cruel, a convivência familiar e suas nuances intrageracionais, o vovô e o netinho, histórias recontadas, remoídas, o novinho muitas vezes cansado, sem paciência quase nem escutava mais, sem saber do esforço tremendo que o idoso fazia, para se apoiar na sua maior riqueza, sua memória, lugar onde suas lembranças estariam intactas, preservada nos mínimos detalhes.

Desta vez a saudade deu lugar a um enredo estranho. Não estamos tendo histórias com começo, meio e fim. É começo e fim, rápido assim, abruptamente vidas desaparecerem, famílias não se despedem dos seus entes, idosos recebem uma convocação extraordinária de partida, sem direito a despedida, muitos lutos são sufocados, e com coração mutilados, estamos assistindo a gerações desaparecerem, nossas histórias partindo junto. Quem conseguiu ouvir, guardou, quem não teve tempo, ficará a dor do remorso, e para todos nós algumas lições. E se amou de verdade, ficou o amor. Esse, verdadeiramente, nunca morre!

Aos jovens que mergulham na arrogante ilusão de vitalidade, na inebriante sensação de infinitude, ficam os ensinamentos dessas experiências de dor, saudade e sofrimento – e que tudo aqui é efêmero.

O grande desafio dessa doença reside em amar o “improdutivo”, aquele que não pode oferecer muito, é amar o velho e compreender o amor em sua plenitude, em sua forma mais gratuita e genuína, sem cobrança, sem expectativas. É cuidar de nossas lembranças, da nossa história. É reencontrar o caminho da fraternidade através de nossas tragédias, aproveitando a certeza do presente, sem perdermos o espírito de gratidão e a capacidade resiliente de amar.

Juraci Leal Filho é policial militar e assistente social.

4 respostas

  1. Belíssimo artigo, parabéns meu caro amigo, vc é um ser humano sensível e especial. O amor ao próximo é o sentimento essencial a vida do homem.

  2. Lendo o texto e debulhando em lágrimas…
    Pois é, a guerra chegou até nós, sem que desse nos o tempo de arrumar as mochilas e nos despedir- mos de quem amamos…nem velar podemos!

Deixe aqui seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *