Jeferson Santos (de verde) recebe placa de Orientador de Trânsito Padrão
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O início da relação do escritor Jeferson Tenório com a poesia foi parecido com o de muitos brasileiros contemporâneos. Deu-se com a obra dos Racionais MCs. Impactado pelo realismo dos rappers paulistanos, ele montou a banda Magna Rap, que não prosperou, conforme disse na conferência de encerramento da Festa Literária de Ilhéus, evento coberto pelo PIMENTA no último sábado (16).

Vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2021, com o livro O Avesso da Pele (Companhia das Letras), Jeferson concluiu o ensino médio aos 23 anos. As constantes mudanças da família, chefiada pela mãe solteira, contribuíram para o atraso na formação, outro traço comum para grande parte da juventude brasileira. Raro era ver professor negro em Porto Alegre, há mais de vinte anos, quando ele teve os primeiros professores negros no curso de pré-vestibular da ONG Superação

No cursinho, que era gratuito e voltado para estudantes negros, Jeferson conheceu o professor Jorge Fróis, que lhe apresentou à literatura por meio do livro Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca. O encontro com Jorge foi decisivo para a escolha do curso de Letras, feito por Jeferson na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na biblioteca numerosa e qualificada de Jorge, que hoje ainda é seu amigo, o carioca radicado em Porto Alegre descobriu um horizonte de possibilidades para além da lanchonete onde trabalhava e da qual sonhava ser gerente.

A IDEIA DO ROMANCE

Todo escritor é perguntado sobre a presença de elementos autobiográficos nas suas obras. Jeferson Tenório ressalva que é sempre difícil dizer, exatamente, o que é e o que não é autobiográfico em suas ficções (ele também publicou O beijo na parede e Estela sem Deus). No entanto, alguns elementos biográficos são evidentes, como o fato de ser professor, mesma profissão do narrador de O Avesso da Pele, que se dirige ao pai – morto em uma abordagem policial – num processo de elaboração do luto.

Outra coisa presente na vida do autor e no livro é a relação com abordagens policiais. Jeferson conta que já foi abordado, pelo menos, quatorze vezes em Porto Alegre. Discutiu o assunto em artigo para o jornal El País, mas decidiu que precisava ir além.

– Pensei: preciso fazer mais. A minha maneira de lutar contra essa violência é fazendo o melhor que eu posso, é fazendo literatura, e decidi fazer O avesso da pele. Mas, antes disso, queria contar uma história entre pais e filhos. Por isso, quem narra a história é Pedro, contando a história do pai, que morreu após uma abordagem policial – disse o escritor.

O AVESSO DA PELE COMO MORADA DO QUE NÃO É RACIALIZADO

Jeferson, à direita, ouve pergunta de leitor após conferência || Foto ALI

No romance, Henrique, o pai de Pedro, não abre mão do afeto, mas, ao mesmo tempo, mantém certa distância do filho. “O que tem aqui…”, diz Jeferson apontando para o exemplar do livro em suas mãos. “O que se estabelece aqui é um amor intelectual, porque Henrique é esse pai que tenta, de todas as formas, dizer para o filho que o mundo é cruel e que o mundo é cruel por causa da cor da pele dele. [Ter que dizer] isso é muito dolorido”.

No final da conferência, o autor leu um trecho do livro para a plateia. Nele, Pedro relata que, aos 9 anos, seu pai o perguntou quem era Deus. Lembrando de histórias de terror e assombração, o menino respondeu que Deus era um fantasma que morava no Céu. A resposta causou espanto, mas deixou o pai satisfeito.

As lições de Henrique se tornavam mais complexas à medida que o filho amadurecia. Queria prepará-lo para ter estratégias de sobrevivência numa sociedade estruturada pelo racismo. No discurso ao pai morto, Pedro revela a lição que aprendeu, ainda na leitura de Jeferson Tenório:

Agora eu sei que você estava me preparando. Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo, e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar o que ninguém vê, porque, não demora muito, e a cor da pele atravessa o nosso corpo e determina o nosso modo de estar no mundo. E, por mais que a sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois, entre músculos, órgãos e veias, existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos e são esses afetos que nos mantêm vivos.

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