Arthur Lira e Lula no 1º encontro após a eleição de 2022 || Foto José Cruz/Agência Brasil
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Lula acertou ao não entregar o Ministério da Saúde a Lira. Foi uma decisão importante, porque esta é uma área fundamental para um governo que se proponha a recuperar os serviços públicos fundamentais e que foi dilapidada a partir do governo Michel Temer e, principalmente, nos quatro anos de Bolsonaro.

Cid Benjamin

Em países como o Brasil, as grandes questões políticas quase sempre só entram em debate nas eleições para presidente. Aí, todo o país – dos seringueiros da Amazônia aos peões gaúchos – tomam conhecimento dos temas nacionais, como gosta de lembrar Milton Temer.

Já quando se trata da escolha dos parlamentares em geral, o eleitor é movido por questões locais e pelo fisiologismo. Não por acaso, a adoção do parlamentarismo tem sido proposta pelos conservadores, mais interessados em manter a disputa naquilo que o pensador italiano Antonio Gramsci chamava de pequena política, marcada por clientelismo e questões menores, para assim impedir mudanças mais de fundo.

Esse quadro aparece agora nas tentativas de emparedamento do governo Lula pela maioria do Congresso, encabeçada por parte do Centrão e seu capo maior – o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, sucessor do gângster Eduardo Cunha.

Pois bem, diante das chantagens a que Lula vem sendo submetido, existem essencialmente dois caminhos (ainda que não inteiramente excludentes).

Um primeiro é ceder e entregar mais e mais nacos do Poder Executivo e de dinheiro, por meio de emendas ao Orçamento, a gente que usa os cargos no parlamento para fazer “negócios” nada republicanos. As ameaças são explícitas: se as exigências não forem atendidas, o Congresso vai paralisar o governo. Às reivindicações fisiológicas se soma a defesa de uma política econômica neoliberal, que atenda aos interesses do sistema financeiro e não se atreva a enfrentar as obscenas desigualdades sociais.

O outro caminho é – sem prejuízo de eventuais acordos aqui e ali – levar o debate para a sociedade, não deixando que o enfrentamento político se dê principalmente dentro de quatro paredes. Foi o caminho adotado recentemente, até agora com sucesso, por Gustavo Petro, presidente da Colômbia, vítima de chantagens semelhantes. Mas, que ninguém se iluda: esse caminho exige um esforço de mobilização dos trabalhadores e significa conflitos, porque não faltarão acusações de “populismo” por parte da mídia conservadora e do poder econômico.

O presidente brasileiro tem procurado se equilibrar. Faz concessões – seja na entrega de espaços e recursos do aparelho de Estado, seja na política econômica -, mas sem uma rendição absoluta, como a que parece ter feito o presidente do Chile, Gabriel Boric. Recentemente, aliás, Lula acertou ao não entregar o Ministério da Saúde a Lira. Foi uma decisão importante, porque esta é uma área fundamental para um governo que se proponha a recuperar os serviços públicos fundamentais e que foi dilapidada a partir do governo Michel Temer e, principalmente, nos quatro anos de Bolsonaro.

Há, claro, mediações, mas estes são os dois caminhos básicos.

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Presidente Gustavo Petro cercado por apoiadores na Colômbia || Reprodução/Instagram
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O exemplo colombiano é uma clara demonstração de que concessões nem sempre são a melhor forma de construir a governabilidade. E que é preciso informar o povo e convocá-lo para a luta política. As duas coisas estão em falta no Brasil.

Cid Benjamin

No dia 29 de maio de 1983, Flamengo e Santos se enfrentaram no Maracanã no segundo jogo pelas finais do Campeonato Brasileiro. Depois de uma derrota por 2 a 1 na primeira partida, no Morumbi, no Rio o Flamengo venceu por 3 a 0 e se sagrou campeão. A partida – realizada antes de que, por motivos inconfessáveis, Sérgio Cabral Filho tivesse desfigurado o Maracanã, transformando-o numa “arena” moderninha – teve o maior público da história em campeonatos brasileiros. Estiveram presentes 155.253 torcedores. Eu estava entre eles.

O Flamengo tinha um timaço e sua vitória foi incontestável. Mas houve uma voz dissonante: a do técnico Formiga, do Santos. Ele preferiu não ver o estádio pelo lado do lindo espetáculo proporcionado pela torcida. Em entrevistas depois do jogo, choramingou: “um jogo com tanta gente no estádio é antiesportivo. Deveria ser proibido, porque a pressão é muito grande e a disputa fica desequilibrada.” As palavras podem não ter sido estas, mas o sentido foi.

Claro que torcida nem sempre ganha jogo, como provou o valente time uruguaio na final da Copa de 50, no mesmo Maracanã. Na ocasião, diante de 199.854 espectadores, o Uruguai venceu o Brasil. Mas, é claro, se sozinha não ganha jogo, torcida ajuda. Isso não se discute. Ainda mais quando está ao lado de um belo time, como era aquele de Zico, Júnior, Leandro e outros mais.

Isso vale para o futebol e, ainda mais, vale para a política. Determinadas iniciativas de interesse popular, se apoiadas massivamente, ganham enorme força. Mas é preciso que os líderes convoquem o povo e se disponham a encabeçar o movimento.

Exemplo disso ocorreu semana passada na Colômbia, com a intensa mobilização em sustentação a medidas promovidas pelo presidente Gustavo Petro, um líder que está se tornando a principal figura contemporânea da esquerda latino-americana.

Lá, como ocorre no Brasil, o governo estava sendo pressionado a fazer concessões e mais concessões a uma maioria de políticos conservadores, corruptos e fisiológicos, sob pena de o Congresso travar suas ações e paralisá-lo.

Petro não aceitou a chantagem nem que a disputa se limitasse ao interior das quatro paredes. Logo ao tomar posse, em agosto de 2022, já tinha dado mostras de disposição de luta e de coragem, ao remover parte expressiva do alto comando das Forças Armadas, passando para a reserva oficiais envolvidos em atropelos aos direitos humanos e ligados à extrema-direita.

Agora, na semana passada, deu uma aula sobre como deve reagir um governo popular a tentativas de golpes brancos. Diante do corpo mole de alguns partidos da base para apoiar reformas promovidas pelo governo, o presidente colombiano – que já tinha trocado três ministros no fim de fevereiro – promoveu uma ampla reforma, exonerando mais oito dos 19 integrantes de seu Ministério. No lugar deles foram nomeadas pessoas comprometidas com o programa defendido na campanha.

Claro que a busca de governabilidade é objetivo de qualquer governo. Para tal, às vezes deve negociar e, eventualmente, precisa fazer concessões. Porém, essa busca da governabilidade pode ser feita de diferentes formas, que inclusive não são excludentes. A negociação é apenas uma delas.

Quando se está diante de um processo claro de chantagens, porém, como no caso do Brasil – as concessões não podem ser o caminho único, ou sequer o principal. Afinal, sabe-se como começa uma chantagem, mas não se sabe como, nem quando, nem onde, ela termina.

Petro reagiu ao que chamou de “golpe brando”, tirando a disputa dos gabinetes refrigerados. Mais de 400 intelectuais, líderes políticos, dirigentes sindicais e representantes de movimentos populares, de um número superior a 20 países, firmaram um manifesto em apoio a seu governo, denunciando a campanha da direita para boicotar reformas que aumentariam salários, melhorariam a saúde, a educação e os demais serviços públicos e protegeriam o meio ambiente. E esse discurso não ficou entre quatro paredes. Foi levado para as ruas pelo governo.

Petro fez mais: convocou em rede nacional de rádio e TV manifestações na capital e em outras 200 cidades do país, em apoio à aplicação do programa aprovado nas urnas. Multidões tomaram as ruas. Isso mudou a conjuntura e pôs os conservadores na defensiva.

O exemplo colombiano é uma clara demonstração de que concessões nem sempre são a melhor forma de construir a governabilidade. E que é preciso informar o povo e convocá-lo para a luta política. As duas coisas estão em falta no Brasil.

Recentemente o governo Lula relançou, em formato ampliado, pelo menos três programas que melhoram a vida das pessoas – o Farmácia Popular, o Mais Médicos e o Minha Casa, Minha Vida. Além disso, anunciou o Desenrola, que equaciona as dívidas de famílias pobres e a maior parte da população nem ficou sabendo. Sequer os ministros falaram dessas iniciativas. Aliás, nem eles, nem a inútil área de comunicação do governo.

Ora, não é de hoje que se sabe: a correlação de forças muda substancialmente quando o povo entra em campo. O Flamengo já tinha mostrado que é sempre melhor enfrentar o adversário em jogo com casa cheia e torcida a favor. Multiplicar as concessões ao mercado financeiro, à Faria Lima e aos chantagistas do Centrão, capitaneados por Artur Lira, não é a única forma de se conquistar a governabilidade. Frequentemente tampouco é a melhor.

O exemplo Petro deve ser visto com atenção. É preciso levar a política para a sociedade. Que aportem no Brasil os bons exemplos e os bons ventos da Colômbia.

Cid Benjamin é jornalista e autor de Gracias a la vida – memórias de um militante (Ed. José Olympio, 2013).

Ho Chi Minh e a relação da esquerda com a verdade, segundo Cid Benjamin
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Não nos esqueçamos que, embora as manifestações de junho de 2013 tenham começado de forma difusa, nelas a revolta contra a corrupção estava muito presente e, depois, esse sentimento adubou o terreno para a farsa do impeachment de Dilma e a vitória de Bolsonaro.

Cid Benjamin

Nos anos 1970, quando eu era um jovem militante, com vinte e poucos anos, li num texto de Ho Chi Minh algo que tenho presente até hoje. Ele afirmava que, dada a desproporção de forças entre os revolucionários e os representantes das classes dominantes, era da maior importância política que ficasse clara a superioridade moral dos primeiros.

Para ilustrar o que dizia, Ho contava uma história relacionada com a Guerra do Vietnam (1955-1975). O país estava sendo atacado por bombardeios diários da aviação norte-americana. Algumas vezes, as aeronaves eram atingidas pela defesa antiaérea e saíam soltando fumaça, mas não chegavam a cair, conseguindo retornar às bases. E havia uma tendência a que se computassem aviões em situação assim como abatidos. Ho, então, ordenou: só poderiam ser contados como derrubados os aviões que estivessem no solo.

E explicava: justamente por não terem os poderosos meios de divulgação de que os Estados Unidos dispunham, era fundamental que os revolucionários vietnamitas cultivassem rigorosamente a verdade. Assim, quando eles afirmassem algo, todos – aí incluída a imprensa internacional – saberiam que o afirmado era realidade.

O rigor em relação à verdade, dizia ele, ainda que não usasse exatamente essas palavras, não era só uma questão de natureza moral, era também uma espécie de investimento político.

Foi, então, construída pelos vietnamitas uma reputação que se tornou decisiva para o desfecho da guerra. Tanto assim que, embora a resistência nos campos de batalha tivesse sido importantíssima, em grande medida, o conflito se resolveu fora deles, na área da política, e até mesmo em território norte-americano. Chegou-se a um ponto que os EUA não tinham mais como sustentar – tanto internamente, como aos olhos do mundo – aquela intervenção injustificável. A superioridade moral dos vietnamitas era incontestável. Isso foi decisivo.

O livro “Guerra irregular” (Editora Contexto, 2009), um bom estudo do militar brasileiro Alessandro Visacro, especialista em contra-insurgência, conta (pag. 116) diálogo travado em encontro realizado depois de terminado o conflito, reunindo combatentes dos dois lados. Nele, em dado momento, o coronel americano Harry Summers Jr vangloriou-se: “vocês nunca nos derrotaram no campo de batalha”. “Pode ser, mas isso é irrelevante”, respondeu tranquilamente um representante vietnamita. Visacro dá razão a este último.

Se isso vale para guerras, vale ainda mais para a luta política.

Qualquer observador da situação brasileira nos últimos anos percebe a criminosa manipulação ocorrida na Lava Jato. Conhece o papel das bandas podres do Judiciário e do Ministério Público, das quais Sérgio Moro e Deltan Dallagnol são exemplos gritantes. Não é segredo, também, que parte importante da mídia deveria fazer uma profunda autocrítica pela cumplicidade com os procedimentos criminosos dessas bandas podres e por sua participação no processo espúrio que desaguou no impeachment de Dilma Rousseff.

É inegável que a corrupção não começou no Brasil com o PT ou com as esquerdas no governo. É inegável, também, que nem o PT nem as esquerdas são os maiores exemplos de corrupção no País. Mas, mesmo que os métodos de Moro e seus asseclas na Lava Jato se assemelhassem a uma pressão ilegal e criminosa a presos – “ou assina a confissão ou continua na cadeia” -, os recursos devolvidos por alguns acusados atestam que, de fato, houve corrupção.

Isto posto – e até porque não se pode contar com a isenção de boa parcela da mídia, que tem a mão mais pesada quando trata de apontar erros da esquerda – é preciso um cuidado especial para construir uma imagem de rigor no trato com a coisa pública, de maneira que essa imagem se torne um instrumento a favor das forças que lutam por mudanças, e não o inverso.

Qualquer escorregão nesse terreno custa caro, como ficou claro nos últimos anos. Não à toa, a direita – a força mais envolvida na corrupção ao longo dos tempos – tem a luta contra ela como uma de suas principais bandeiras.

Esta questão nada tem a ver com o udenismo ou o denuncismo barato próprio do conservadorismo. Ao contrário, o rigor de parte da esquerda é importante justamente para não abrir a guarda para esse mesmo udenismo. Alguns argumentam que, com ou sem motivo justificado, a mídia direitista buscará cabelo em casca de ovo e levantará a bandeira da denúncia da corrupção, o que tornaria irrelevantes as preocupações levantadas aqui. Tal argumento não se sustenta. Evidentemente, essa bandeira será mais forte nas mãos dos conservadores se os fatos denunciados forem reais.

Não nos esqueçamos que, embora as manifestações de junho de 2013 tenham começado de forma difusa, nelas a revolta contra a corrupção estava muito presente e, depois, esse sentimento adubou o terreno para a farsa do impeachment de Dilma e a vitória de Bolsonaro.

Agora, vencida a dura batalha para impedir a reeleição do nazifascista, há com Lula na Presidência um governo que tem uma composição que vai da direita até a centro-esquerda. E há um Congresso majoritariamente reacionário, com a Câmara de Deputados controlada por um chantagista que representa o que há de pior na política brasileira e que busca se apropriar de recursos do Executivo para fins inconfessáveis.

Na eleição foi preciso uma composição com a direita para derrotar o fascismo. Depois, foi necessário abrir espaço para o Centrão para que o Governo não fosse inviabilizado, apesar das concessões programáticas.

Nesse quadro, é possível que haja ministros cometendo malfeitos, para usar uma expressão cara a Dilma, o que não quer dizer que se deva fechar os olhos para isso. Mas assim funciona essa gente. No entanto, é diferente quando pessoas de esquerda fazem coisa semelhante, cavando boquinhas para parentes em tribunais de contas, bajulando o mercado financeiro ou aceitando a devastação da Amazônia e da Mata Atlântica em nome de sabe-se-lá-o-quê.

Os prejuízos, aí, não devem ser contabilizados em reais, mas numa moeda muito mais importante na política: a credibilidade. Por isso é preciso atenção.

Lembremo-nos das lições de Ho Chi Minh.

Cid Benjamin é jornalista e autor de Gracias a la vida – memórias de um militante (Ed. José Olympio, 2013).