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Philipe Murillo

A comemoração do aniversário de emancipação de Itabuna faz saltar na imprensa e nos discursos das autoridades uma história vaidosa e orgulhosa do município. Por meio dela, ficamos informados que Itabuna é o resultado de uma “saga”, cujos personagens centrais são os coronéis que fincaram poder nesta terra e construíram a “Civilização Grapiúna”.

A partir daí, uma série de signos é montada com vista a ratificar essa visão sobre o passado. Talvez o mais presente deles seja o mito dos pioneiros (ou dos desbravadores, como ficaram conhecidos por aqui), onde se sobressaem figuras como Firmino Alves, Henrique Alves e Félix Severino do Amor Divino. Esse imaginário “progressista, civilizacionista e desbravador” serve de referência para muitos empreendedores que buscam se afirmar na sociedade de Itabuna.

Dessa forma, projetamos no nosso presente o que consideramos que esses indivíduos foram no passado, mas muitas vezes esquecemos de questionar: o que escolhemos para compor nossa memória?

Ao contrário do que muitos pensam, o passado é um elemento fundamental para amparar as questões do presente. A memória é construída e ratificada a partir dos grupos sociais que se projetam na sociedade atual. Um bom exemplo disso foi a comemoração pelos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil.

Naquela oportunidade, a memória de um país composto por “um povo novo, formado pela mistura de três raças valorosas, alegre, pacífico e inconfundível” foi solidificado com um passado onde só se enxergava harmonia, progresso e ordem, além de reforçar símbolos que ajudavam a forjar uma identidade homogênea de uma população tão múltipla: bandeira nacional, heróis (Tiradentes, D. Pedro I, Caxias e Vargas) e cultura popular (samba, futebol, etc).

Os efeitos da comemoração dos “500 anos” foram a construção de um país cujas desigualdades social e racial gritantes foram ofuscadas por uma visão estereotipada e mitificada do passado brasileiro.

As comemorações pelo centenário do município parecem caminhar num rumo muito semelhante ao que foi visto em 2000. Esquecemos da pluralidade dos indivíduos que ajudaram a construir Itabuna, além de ofuscar as diferenças culturais e sociais que permearam sua comunidade.

A memória de Itabuna, na ânsia de ratificar seus valores de progresso, apaga do seu passado a luta de diversos trabalhadores que disputaram o direito de viver nesta cidade. Foi assim quando os feirantes, em 1937, exigiram da prefeitura de Claudionor Alpoim a liberdade para comercializaram seus produtos na feira pública que se localizava na Praça Adami.

Lembrar que, em nome do progresso local, as lavadeiras foram obrigadas a se retirar das margens e do leito do rio Cachoeira em 1946, e por este motivo, foram até a Justiça Pública contra a ordem do prefeito Armando Freire. Cabe citar também que, na década de 1950, os candomblés e os bicheiros de Itabuna sofreram uma dura perseguição da imprensa e das autoridades policiais que reprimiam qualquer comportamento cultural que ultrapassassem as fronteiras da idéia de civilização impostas pelas elites locais.

Estes breves episódios do passado de Itabuna nos remetem quase que instantaneamente para os fatos recentes de nossa cidade. Quem não lembra da retirada das floricultoras da Praça José Bastos no ano de 2007? Ou ainda, da perseguição cotidiana aos camelôs nas principais vias urbanas da cidade? E o que dizer da situação dos feirantes nos espaços destinados a Feira Pública? Preocupar-se com uma memória que nos faça refletir sobre os desafios existentes na sociedade contemporânea é um passo decisivo para se repensar Itabuna e não se envaidecer dela como um amor cego.

Optar por uma memória em torno do Centenário de Itabuna que cristaliza um passado heróico e mitificado do passado local é ajudar a camuflar uma sociedade conservadora e autoritária do presente, e excluir mais uma vez outros tantos personagens que contribuíam para consolidar esta cidade. Dizem que os homens são capazes de aprender com suas experiências. Que tal não repetirmos os mesmo erros das comemorações dos “500 anos” no Centenário de Itabuna?

Philipe Murillo S. de Carvalho é mestre em História Regional e Local pela Universidade do estado da Bahia. Autor da dissertação “Uma cidade em Disputa: Tensões e conflitos urbanos em Itabuna (1930-1947)

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  1. Ora…direís…
    Muito bem colocado o “praxismo” do mestre Philipe Carvalho,a sua observação da prática das várias facetas do coronelismo na terra do cacau,deixa claro que mudaram apenas as armas, mas, a cultura dos mandões continua a mesma. Da “saga dos coronéis desbravadores”, a retirada dos floristas da praça José Bastos,da proibição das lavadeiras, da perseguição ao culto do candomblé até a guerra contra os camelôs o modus-operandi é exatamente igual.
    Mas, o artigo do mestre Carvalho, deixa claro também que a resistência por parte dos menos favorecidos continua, apesar da cultura dea prática dos “seguradores de velas em aniversário de coronel”

  2. Gostaria q ese blog comentasse a propaganda da prefeitura na tv sobre o aniversario da cidade. Quanto será q gastou pra contar mentira?

  3. as duas praças ficaram indiscutivelmente melhores sem os floristas e sem os camelôs! Poupem-nos dos saudosismos baratos e mal intencionados!

  4. Fico feliz ao ver um texto bem embasado, que sei que para chegar esse resultado são necessários meses de pesquisa. E concordo totalmente com a opnião, um povo é feito a partir da sua pluralidade, e não do que as “oligarquias” quer que o povo seja.

  5. A memória-coletiva (oficial) da região cacaueira fora montada a partir dos interesses dos grupos hegemônicos que assumiram os postos de poder político e econômico. No entanto, é preciso ressaltar o outro lado da História… existe também uma “memória de baixo” propositalmente excluída das páginas dos textos e discursos de intelectuais, políticos e literatos, que durante muito tempo ficaram encarregados de recortar o passado ao seu modo e forjar uma história branca, elitista e masculina. Muitos sujeitos ficaram à margem dessa ‘História’; os trabalhadores do cacau, os burareiros, as lavadeiras, os aguadeiros, as mulheres, enfim, talvez seja esse o momento de revisitarmos o passado com um outro olhar, como o fez, o professor Philipe Murillo de Carvalho.

  6. Zelão, diz: – Já não se faz oligarquias como antigamente

    De quais oligarquias estamos a falar, se a vassoura de bruxa, sepultou os últimos resquícios oligárquicos que ainda existia entre nós, fomentado pela riqueza do cacau.

    Se queremos dar o título de oligarquia ao feudo político estabelecido por Fernando Gomes ou Geraldo Simões, o mesmo se torna incompatível, diante do fato que ambos nasceram e são mantidos pelo voto através da vontade popular democrática. Se é que de oligarquias assim pode ser denominadas, seria então “oligarquias populares”, nunca das elites.

  7. É isso aí Philipe, enquanto Itabuna não romper as amarras que a prende a um “passado mítico” vai continuar provinciana. O centenário deve ser “comemorado” numa perpesctiva de presente e de futuro. O que somos e o que pretendemos ser. Itabuna precisa deixar de ser Tabocas.

    Digníssimo Zelão, a instituição do voto não extinguiu as oligarquia. Ao contrário do que pensas, as eleições sempre foram manipuladas por ela.

  8. Leiam o livro “BRasil: mito Fundador e Sociedade autoritária da Professora Marilena Chaui

    Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
    Criança! Não verás nenhum país como este!
    Olha que céu! Que mar! Que rios! Que floresta!
    A Natureza, aqui perpetuamente em festa,
    É um seio de mãe a transbordar carinhos.
    (…)

    Imita na grandeza a terra em que nasceste!

  9. POR UM OUTRO CENTENÁRIO PARA ITABUNA
    “A história de todas as sociedades que existiram é a história da luta de classes.
    Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, chefe de corporação e assalariado; resumindo opressor e oprimido estiveram em constante oposição um ao outro, mantiveram sem interrupção uma luta por vezes aberta – uma luta que todas as vezes terminou com uma transformação revolucionária ou com a ruína das classes em disputa.” K. MARX

    O Artigo do Philipe mostra que a classe dominante de nossa cidade para manter a sua dominação não abre mão de manipular nossa história e escrevê-la como bem lhes convém, silenciando as lutas dos oprimidos e tentando incutir que somos uma cidade harmônica e sem conflitos, pois Controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar tanto as dominações como as rebeldias. Sabemos que o fundamento desta história de Itabuna que é escrita em colunas de jornais, ou especiais de televisão glorificando a “civilizção do cacau” é um instrumento ideológico para apagar a luta da classe trabalhadora da memória coletiva e incutir a idéia de que o capitalismo, a miséria, o desemprego, a dengue, o salário de R$18.000 do prefeito, a leptospirose, o desabamento das barracas da feira do São Caetano, a violência urbana tudo isso é natural, obra do acaso. É preciso reescrever a história para desmascarar a decadente burguesia cacaueira e mostrar que a classe trabalhadora é a única classe capaz de mudar os rumos da nossa cidade. Os rodoviários que neste ano protagonizaram uma luta histórica que paralizou nossa cidade, os camelôs que resistem cotidianamente a repressão policial,os comerciários superexplorados pelos logistas,os trabalahdores da construção civil que erguem os pequenos arranha-céus que tanto orgulha a elite grapiuna, os desempregados, o funcionalismo publico que resiste a cada dia os efeitos do sucateamento e destruição pelos governos de plantão, todos estes trabalhadores constróem nossa história no dia a dia.
    Nas comemorações dos 500 anos do “Descobrimento” no ano 2000 em Porto seguro, enquanto o entreguista FHC, junto com ACM e politicos e autoridades burguesas de toda espécie faziam a apologia mentirosa de uma história a partir da ótica dos grupos dominantes , sem-terras, índios, estudantes, trabalhadores sofriam forte represssão policial para ser garantida as comemorações da história oficial do Brasil. É preciso não ter medo, é preciso ter coragem de dizer a verdade sobre a história de nossa cidade e não deixar que eles escrevam a história oficial, uma história que tenta silenciar e fazer os trabalhadores esquecer sua força revolucionária e transformadoa da sociedade capitalista.

  10. Congratulações ao colega Philipe e todos os que o saudaram.

    Não é saudosismo algum criticar a o autoritarismo e a abitrariedade de um governo que acha que pode tirar as flores e as barracas de uma praça, mas que pode deixar uma igreja que persegue terreiros (difamando adeptos das práticas afro-brasileiras) fazer sua publicidade ocupando toda esta prática. Também não creio ser anacrônico ou estranho falar em elites só porque existe uma democracia liberal. Quando um cidadão vota em um prefeito ele não está dando plenos poderes para este fazer o que bem entender. Ele está escolhendo apenas um político dentre outros. O que precisamos retomar é uma noção de soberania popular e governo do povo, onde o governante governe obedecendo – não o pleito da eleição, mas – as ansiedades e os desejos dos governados.

    Ainda temos muitas histórias a revisitar e talvez elas nos ensine que Itabuna sempre foi uma cidade construída pelos trabalhadores, pelos humildes e simples, sempre repleta de lutas. Mas ainda é necessário continuar estas para que as lutas de ontem não acabem na vitória elitista de hoje.

    Saudações!

  11. os tropeiros na epoca tinham suas tropas de burros como o meio de transporte para os fazendeiros transportar o cacau para a cidade andavam de pé tocando sua tropa dentro de fazendas meu paI era um dele dezio nanbú ainda vivo para contar suas historias de vida de tropeiros aos 92 anos interessados ligue 73 32121475

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