Tempo de leitura: 8 minutos

QUEM TEM FÉ EM DEUS VAI “À CALIFÓRNIA”

Ousarme Citoaian
“Carro despenca de barranco na Califórnia” – diz uma manchete do Pimenta, em edição recente. E eu festejo a construção da frase, pois ela vai de encontro a uma tendência de chamar aquele bairro de o Califórnia, assim como certas pessoas têm coragem de escrever o Fátima. Eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira, que não pode ser, mas já li o texto de um redator (aliás, redatora, o que vai deixar mais alegre os guerreiros da igualdade gramatical) em que o Instituto Nossa Senhora da Piedade era tratado como o Piedade! É uma escrita novidadeira, elitista, que nada tem a ver com a evolução da língua, pois não nasce no povo, mas nas redações, com gente mal informada.

AGRESSÃO À ESPONTANEIDADE DAS RUAS

Quem já teve contato com o falar espontâneo das ruas, praticado pelas camadas mais simples da população, aquelas que se valem do nosso precaríssimo transporte urbano (para se ter um metro comparativo), sabe que nenhum indivíduo temente a Deus chamaria a Califórnia de o Califórnia.  “A Califórnia está com as ruas esburacadas”, denuncia o crítico; “O ônibus da Califórnia já passou?”, pergunta o distraído. Quanto a o Piedade, é sandice estratosférica. Há anos e anos fala-se em ir à Piedade, estudar na Piedade, as irmãs (ursulinas) da Piedade e outras coisas. A propósito, o jornalista Maurício Maron foi o primeiro homem que teve a matrícula aceita pela Piedade (até então, o instituto era exclusivamente feminino).

TRÊS VERSOS E UM ABALO ÍNTIMO

Na edição passada, parece que no frenesi de criticar a prosódia de haicai, esqueci-me do principal: a referência a esse tipo de poesia – ainda que a voo de pássaro, como costumamos tratar os assuntos. Vá lá: o haicai é um poema de origem japonesa, sóbrio e minimalista, formado por três versos, respectivamente de cinco, sete e cinco sílabas poéticas. Comparando com o soneto, como este tem 14 versos (em geral de dez ou doze sílabas), nele caberiam, sem superpopulação, quatro haicais e meio. O exercício consiste exatamente em aprisionar em tão poucas palavras uma mensagem, em geral profunda, que nos faz pensar. Creio que, ao ler um (bom) haicai, sofremos um abalo íntimo.

MODELO QUE VEM DO SÉCULO XVII

Há quem o adote sem rimas (primeiro e terceiro versos), como um dos desbravadores do gênero no Brasil, Afrânio Peixoto (nasceu em Lençois e morou em Canavieiras). Eu os prefiro rimados, à moda de Guilherme de Almeida, mas minha opinião vale muito pouco.  Na origem do haicai está o poeta Bashô, no século XVII, para quem o poema era uma prática espiritual, ligada ao zen-budismo. Na região, há haicaístas bissextos e pelo menos um que cultuou o gênero como principal manifestação artística. Entre os primeiros estão Gil Nunesmaia e Cyro de Mattos (de Itabuna) e Paulo Lopes (de Ilhéus). Mas o grande “profissional” entre nós é o ilheense Abel Pereira (1908-2006).

“GEMAS RARAS DA POESIA ORIENTAL”

Abel, com Colheita, de 1957, foi (simplesmente) o terceiro autor brasileiro a publicar livro de haicais, seguindo-se ao também baiano Oldegar Vieira e ao carioca Osório Dutra. A acolhida foi entusiástica, por parte de Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Abigar Renault, Octávio de Faria, Ledo Ivo e o português Fernando Namora, dentre outros. Malba Tahan destacou que “nas páginas de Colheita cintilam as gemas raras da poesia oriental”, e Francisco de Assis Barbosa, da Academia Brasileira de Letras, sentenciou: “Ninguém pode disputar a primazia da arte de composição de haicais ao baiano Abel Pereira”. O poeta publicou ainda Poesia até ontem, Mármore partido e Haicais vagaluminosos .

BAR DE ITABUNA NA NOITE DE SÁBADO

Baco adora quando desço a praça
Adami, caminho do Elite Bar
Lá (no Bar de Emetério), busco o morno
canto, próximo às mesas de sinuca;
observo os jogadores do apostado,
os azes das tacadas. O maior,
Zito Maleiro, já tuberculoso,
captura a solidão da bola-sete:
o infinito resvala sobre o verde
espaço de luz acabando o jogo (…)

Sorvo o vinho do Porto, calmamente.
Atento o ouvido para o andar de cima,
ouço o ruído abafado da roleta,
na sensação das coisas clandestinas.
Chegaram os amigos. Planejamos
o que faremos no frescor da noite.
Saímos.  Vamos pela rua da Lama,
em direção à zona, ao bar de Juca (…).

DOMÍNIO DE METÁFORAS E IMAGENS

Florisvaldo Mattos  (foto)evoca no poema “Itabuna, 1950” (ilustrado por quadro de Walter Moreira) um tempo ido e vivido na cidade hoje centenária. O texto é de A caligrafia do soluço & poesia anterior, de 1996. Nesse livro, o poeta é saudado por João Carlos Teixeira Gomes como num autor de completo domínio das estruturas formais e da construção rigorosa, “que refletem a eficácia da sua linguagem poética, plena de poderosas metáforas e imagens dinâmicas”. Além da literatura, Forisvaldo, nascido em Uruçuca (Água Preta do Mocambo, 1932), milita no jornalismo, tendo começado as duas atividades na região cacaueira, com trabalhos publicados em A voz de Itabuna e no Diário da Tarde, de Ilhéus.

EUCLIDES DA CUNHA E A PONTE QUE CAIU

Um site encontrado ao acaso me lembra de umas curiosidades sobre escritores e me informa de outras, que eu não conhecia. Ei-las, para quem gosta de detalhes da vida alheia: Goethe escrevia de pé, para isso mantendo em sua casa uma escrivaninha alta; Pedro Nava (foto), o memorialista mineiro, parafusava sua mesa, para que ninguém a tirasse do lugar; Gilberto Freyre não se dava bem com aparelhos eletrônicos – dizem que não sabia sequer ligar a televisão; Euclides da Cunha levou três anos construindo uma ponte em São José do Rio Pardo (SP), e a ponte ruiu, alguns meses depois de inaugurada. Ele a refez e, por via das dúvidas, abandonou a carreira de engenheiro.

GRACILIANO RAMOS E O LIVRO DE CABECEIRA

Machado de Assis (pobre, mulato, gago, míope, epiléptico e gênio), quando escrevia Memórias póstumas de Brás Cubas teve uma crise intestinal, complicando sua visão (que já não era boa). Sem poder ler nem escrever, ele ditou grande parte do romance para sua mulher, Carolina. Graciliano Ramos, comunista e ateu, tinha na Bíblia uma de suas leituras favoritas, para observar os ensinamentos e os elementos de retórica ali contidos. Carlos Drummond (foto) tinha, entre outras manias, a de picotar papel e tecidos. Certa vez, estraçalhou uma camisa nova em folha do neto, tendo de comprar outra. “Se não fizer isso, saio matando gente pela rua”, disse, com um sorriso.

UM LONGO SILÊNCIO DE PAI E FILHO

Érico Veríssimo era quase tão introspectivo quanto o filho Luís Fernando, também escritor. Numa viagem de trem a Cruz Alta, Érico fez uma pergunta que Luis Fernando respondeu quatro horas depois, quando chegavam à estação. Monteiro Lobato adorava café com farinha de milho e tanajura torrada (argh!). Manuel Bandeira (foto) contava que teve um encontro com Machado de Assis, aos dez anos, numa viagem de trem. Puxou conversa e ouviu que Machado gostava de Camões. Bandeira recitou uma oitava de Os Lusíadas que o mestre não lembrava. Na velhice, confessou: era mentira. Tinha inventado aquela história para impressionar os amigos.
|PostCommentsIcon Comente »

A CANÇÃO COM 38 INTERPRETAÇÕES

“Summertime” é um clássico do jazz que nasceu na ópera Porgy and Bess (os dois personagens principais do libreto de Ira Gershwin, sobre texto original de DuBose Heyward). Não falo da peça de trajetória polêmica, mas da curiosidade do confronto entre o canto erudito e jazzístico na mesma canção. O tema é pouco encontrado como peça “erudita”, ao contrário de sua versão jazz ou pop. Conheço gravações de Janis Joplin, Ella Fitzgerald, Armstrong, Sarah Vaughan, Frank Sinatra e outras. Soube que há também um registro de Cazuza (foto), mas nunca o ouvi. Críticos falam que o mercado dispõe de 38 gravações diferentes de “Summertime”.

ENCONTRO DO JAZZ COM O “ERUDITO”

Pouco afeito ao “erudito”, só agora descobri a versão de Charlotte Church para “Summertime”. Eu não sabia que a jovem soprano inglesa esteve na trilha sonora de Terra Nostra (possuo até uma gravação de “Tormento d´amore”, dela com o brasileiro Agnaldo Rayol, que, parece-me, é cantada na novela). Desculpem minha ignorância, mas eu não vejo telenovelas, nem sob tortura – daí não saber se “Summertime” fez parte da trilha. Vamos aproveitar para comparar duas das muitas leituras dessa famosa canção, nas vozes de Charlotte Church e Sarah Vaughan (uma de cada vez!), sem que eu me dê ao trabalho de declinar minha preferência.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

A SOPRANO QUE GOSTA DE ROCK

Aos noveleiros, o que talvez seja uma curiosidade: Charlotte Church (foto), com todo seu vozeirão, é uma (linda) moça de 24 anos, que canta desde os 11. É “normal” para sua idade: gosta de Alanis Morissette, Madonna, Marcv Anthony, Lauryn Hill e outros desconhecidos para mim, sem a veneração ao repertório “sério”, que se poderia supor. “Raramente ouço música clássica, gosto mesmo é de rock”, diz ela, para minha surpresa – e explica que canta clássico devido a seu timbre de voz. Charlotte se descobriu por acaso, quando foi convidada, a participar de um programa de auditório, no País de Gales, onde nasceu e vive. Bombou, é claro. Já se apresentou até numa festa de Natal do Vaticano, sob João Paulo II, em 1998. Se lhe apraz, veja/ouça as duas versões de “Summertime”.


(O.C.)

9 respostas

  1. Há muitos anos, trabalhei no Colégio Eraldo Tinoco, época em que era dirigido por Dr. Gil Nunesmaia. Foi quando conheci o haicai, forma poética que o dr Gil fazia e amava. Gostaria de sugerir ao também poeta Cyro de Mattos que seria interessante a publicação da obra de Dr. Gil patrocinada pela FICC. Itabuna centenária, e tão pobre no quesito cultura, com certeza ficaria muito agradecida.

  2. Há algumas informações sobre haikai nesta coluna que são incoerentes. Gil Nunesmaia não foi um haikaísta bissexto, isso é muito pouco para quem foi um dos primeiros a publicar haikai no Brasil, ainda na década de 30, no A Tarde, juntamente com Oldegar Vieira, e depois na revista da Academia Brasileira de Letras. Seu livro “Intervalo” tem um capítulo com dezenas deles. Afrânio Peixoto foi o precursor do haikai no Brasil, tanto como crítico como poeta. Coube a Afrânio Peixoto não apenas o mérito pioneiro de introduzir e divulgar o haikai no Brasil, em 1919, apresentando o haikai como “epigrama lírico”, em Trovas Brasileiras. Peixoto também teria sido o nosso primeiro poeta a publicar um livro de haikai. Um compêndio completo se encontra em Missangas (1931). E Abel Pereira não foi o terceiro poeta a publicar um livro de haikai no Brasil. Antes de Abel Pereira, temos conhecimento de que pelo menos seis outros poetas haviam publicado livros apenas de Haikais no Brasil após Afrânio Peixoto, não dois, como afirma Olga Savary no posfácio de Mármore Partido. Waldomiro Siqueira Jr. foi o segundo, em 1933 publicou o livro “Hai Kais”; Jorge Fonseca Júnior, o terceiro, em 1939 publicou “Roteiro Lírico”; Oldegar Franco Vieira, o quarto, com “Folhas de Chá”, em 1940; após, Osório Dutra, com “Emoção”, em 1945. “Pétalas ao Vento”, (1949), de Fanny Dupré, talvez tenha sido o sexto livro publicado exclusivamente com haicais no Brasil e, segundo Jorge Fonseca Júnior, que o prefaciou, o primeiro escrito por uma mulher. Consideramos Abel Pereira como o sétimo, com “Colheita”. Ainda outras incoerências podem ser apontadas, embora prefiramos ficar por aqui.

  3. Sobre Colheita ser o terceiro livro de haicais que se publicou no Brasil, ouvi do próprio Abel Pereira, que teria ouvido a informação de Olga Savary (autora da introdução de Mármore Partido). Quanto a chamar Gil Nunesmaia de “bissexto”, foi uma impropriedade – quis me referir a um autor que não teve divulgação significativa de sua obra, de sorte que seus poemas não atingiram maior público ou fortuna crítica. Então, quanto ao estimado professor, onde está “bissexto” leia-se “desconhecido”.
    Agradeço ao leitor “Gustavo Felicíssimo” pelas observações, mas não pretendo delas fazer cavalo de batalha, pela falta de relevância do assunto. O que meu texto, modestamente, tentou fazer foi levantar a discussão sobre esse gênero poético. A citação histórica que fiz é somente acessória – e por mim fica dispensada, retirada e esquecida, desde já.
    A leitora “Maria”, a partir dessa leitura, sugere à FICC o que patrocine a publicação da obra de Dr.Gil, argumentando que “Itabuna centenária, e tão pobre no quesito cultura, com certeza ficaria muito agradecida”. Isto, sim, é relevante – e mostra que meu pobre texto atingiu o objetivo a que se propôs.

  4. oxi, lá ele viu.
    o quê que a Maria quis dizer com: “Itabuna centenária, e tão pobre no quesito cultura…”
    Afinal de contas quanto mais eu estudo sobre cultura menos eu acredito que sei; e esse mínimo saber faz com que eu diga que Itabuna centenária tem muita cultura sim.
    Ousarme não ver telenovelas, nem eu; algo em comum.
    PS.: eu não conhecia o haicai.
    ainda bem que eu aprendi sobre tal estilo antes de Itabuna completar 100 anos 😉

  5. Não tem cavalo de batalha não, meu caro jornalista. Aliás,devo dizer, jornalista da minha admiração, que me abriu as portas para um certo epigramista (acho que estiu certo). Mas como estudo o haikai no Brasil e na Bahia, sobretudo, sobre o qual tenho o ensaio “Dendê no Haikai” premiado pelo Governo do Estado para publicação através da nossa querida Via Litterarum, devo alertar sobre as incongruências. Faço parte de um grupo de estudos nascido na Unicamp que estuda o haikai japonês e sua adaptação no ocidente, também as diversas traduções publicadas. Se o amigo quiser conhecer mais sobre o tema pode ler um artigo que escrevemos, intitulado “Flores de Cerejeira”, publicado em jornais de São Paulo, Rio e Pernambuco, também em conceituados sites sobre literatura. Eis um link: http://www.revistazunai.com/materias_especiais/haicais/gustavo_felicissimo_floresdecerejeira.htm
    Continuemos na batalha! Parabéns pela coluna!

  6. O Pimenta certa vez defendeu o uso da expressão ‘risco de vida'(que muitos acham paradoxal), enfatizando que era equivalente ao ‘risco de morte’ e que a repercussão deste ‘erro’ era desnecessária. E concordo, pois há um entendimento implícito nessa expressão – “risco de (perder a) vida”.
    O mesmo argumento deveria se aplicar aqui.
    “o Califórnia” pode não ter concordância na norma culta, mas é justificável visto que a frase é uma referência a um objeto implícito(bairro). Além do que, serve também para enfatizar O bairro da cidade de itabuna, e não o estado norte-americano Califórnia (inglês tem essa vantagem: lugar não tem gênero).
    Exemplos: “Tem uma nova lanchonete no (bairro) Califórnia”, “O (bairro de) Fátima está bem limpo hoje.”
    Outros exemplos como “O (Colégio) Divina mudou de prédio”. “Tenho saudades da (Escola) Pio XII” transmitem uma idéia de como todos fazemos o mesmo. Ou alguém aqui diz que estudou “na Divina”? Creio que não, né.
    Uma controvérsia é a/o Piedade. Enquanto alguns usam como referência “A (Igreja da) Piedade”, outros usam “O (Instituto Nossa Senhora da) Piedade”.
    Acho que não preciso de mais exemplos…
    Grande abraço!

  7. Olá, Marcelo !
    A discussão não é sobre “norma culta” ou “popular”, mas sobre o uso consagrado: lê-se “risco de vida” há mais de 500 anos em vários autores portugueses/brasileiros e mesmo em língua estrangeira (em francês, creio, usa-se “risque de vie”, com o mesmo significado). Logo, você está, segundo este critério que adotamos na coluna, absolutamente certo.
    E tal coerência precisa prevalecer quanto às outras expressões: estão consagradas pelo uso a Piedade (nunca “o Piedade”) e a Califórnia (“o Califórnia” é invenção de gente que quer falar “bonito”).
    Quanto à/ao Divina, o nome do estabelecimento é, salvo engano, “Colégio da Divina Providência” (que perdeu a preposição devido à famigerada lei do menor esforço). Portanto, a forma “a Divina” é imprópria.
    Lembrar que falamos de formas consagradas, preferíveis – não estamos afirmando que as outras estejam “erradas”.
    No mais, quero lhe agradecer por ter enriquecido a coluna com a presença da Serra do Jequitibá.

Deixe aqui seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *