De empregada doméstica a juíza na Bahia || Foto PIMENTA
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Aos 14 anos, ela trabalhava em um canavial no interior de Minas Gerais. Aos 17, era empregada doméstica em Belo Horizonte e, por não ter onde dormir, durante oito meses passou as noites em um ponto de ônibus em frente à antiga Telemig, que era a companhia telefônica de Minas.

Para conseguir aprovação em seu primeiro concurso, para oficial de justiça do Tribunal de Justiça daquele estado, ela catou folhas borradas de um mimeógrafo onde faziam apostilas de um cursinho preparatório. As folhas eram jogadas no lixo, de onde ela as recolheu, estudou e ficou em terceiro lugar no concurso.

A hoje Doutora Antônia Marina Faleiros é sem dúvida alguma uma vencedora, uma mulher que superou todos os obstáculos e dificuldades e veio a ocupar cargos importantes, como procuradora do município de Belo Horizonte e procuradora do Banco Central. Atualmente, ela é juíza da 1ª Vara Crime de Itabuna, que julga crimes relacionados a tóxicos.

Mas a magistrada não é somente uma pessoa que venceu na vida. Ela é também uma mulher singular, que não se limita às paredes de um gabinete e gosta de ir aos bairros, conhecer gente. Nessa entrevista concedida ao PIMENTA, a juíza surpreende, comove e demonstra que ainda é possível acreditar no ser humano.

PIMENTA – Eu gostaria que a senhora contasse o início de sua história: onde nasceu, sua infância…

Dra. Antônia – Eu nasci em Serra Azul de Minas, um lugar belíssimo, extremamente pobre, mas muito bonito. Era uma família grande, como todas as famílias do interior: pai, mãe e um monte de irmãos. E minha mãe sempre foi uma pessoa muito entusiasmada. Ela não teve oportunidade de estudar, só fez até o que se chamava na época de quarta série primária. E era professora rural, dava aula no Mobral e sempre teve uma exigência muito grande com os filhos, sempre quis botar os filhos pra frente.

PIMENTA – Quais são as histórias das quais a senhora se recorda dessa época?
Dra. Antônia – Há algumas histórias interessantes que envolveram minha mãe. Quando fiz meu primeiro concurso público, eu passei em terceiro lugar para oficial de justiça do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, então eu fiquei entusiasmadíssima e fui contar para ela. Quando falei que havia passado em terceira colocação, ela disse: “mas a prova estava tão difícil assim?”. Eu mencionei a concorrência e salientei que muitas pessoas haviam ficado para trás, mas ela respondeu: “você já viu algum bom corredor olhar para quem está ficando pra trás? Ele olha para os concorrentes que estão na frente”. Esse é um exemplo do nível de exigência da minha mãe. Ela morreu dois meses depois da minha formatura em Direito e eu fiquei bastante magoada porque era meu sonho conseguir ter um emprego e poder dar a ela algumas coisas com as quais ela sonhava.

PIMENTA – Por exemplo…
Dra. Antônia – Eu me emociono sempre quando me lembro disso. Um dos sonhos da minha mãe era ir à Aparecida do Norte, que é um santuário católico no interior de São Paulo e nós não tivemos a oportunidade de atender esse desejo. Ela morreu antes que eu tivesse um emprego que me permitisse lhe dar o prazer de conhecer Aparecida do Norte.

PIMENTA – Vocês viviam na cidade ou na zona rural?
Dra. Antônia – Até os meus sete anos, nós morávamos na roça. Depois meu pai se mudou para a cidade, que era tão pequena que se pode dizer que é como se fosse uma roça. Eu fui conhecer luz elétrica aos 17 anos. Meu pai era trabalhador do DER, o Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais, trabalhador braçal.

 

Eu acabava ficando sem o café da manhã como punição por ter causado o “incêndio” e acordado todo mundo.

 

PIMENTA – Quantos irmãos?
Dra. Antônia – Éramos seis, mas um morreu há 11 anos. Eu sou a filha mais velha e depois de mim tem outra irmã e mais três irmãos. Muitos anos depois, quando eu já tinha deixado a casa de meus pais, minha mãe teve outra filha, que foi a irmã que eu criei, porque minha mãe a deixou pequena e ela acabou virando “minha filha” e veio comigo para a Bahia.

PIMENTA – Como foi a história do seu trabalho em um canavial?
Dra. Antônia – Quando eu terminei naquela época a quarta série, com 14 anos, não tinha continuação lá. E apareceram pessoas que contratavam trabalhadores, inclusive menores, para o corte de cana. Quem fazia a intermediação e ia pelas cidades procurando era chamado de “gato” e os capatazes que controlavam o trabalho no canavial preferiam menores, porque eles achavam que podiam até bater na gente. Como não tínhamos outro meio de sobrevivência, nós seguimos para esse trabalho, eu e mais dois irmãos, de 13 e 12 anos.

PIMENTA – Então a senhora começou a trabalhar com essa idade…
Dra. Antônia – Na verdade, desde bem pequena eu trabalhava na minha cidade. Desde pequenininha eu plantava, vendia hortaliças, lavava roupa para as pessoas e também dava aula para meus colegas. Desde que me conheço por gente, eu sempre trabalhei mesmo, além do serviço de casa, de cuidar dos irmãos mais novos. Minha mãe era muito doente, ela teve muitos partos malsucedidos. Naquele tempo não se fazia controle de natalidade, então ela teve muitas gestações sucessivas, com alguns abortos e crianças que nasceram, mas vieram a falecer logo em seguida.

PIMENTA – No canavial, a senhora chegou a ser submetida a algum maltrato?
Dra. Antônia – Eu praticamente não. A única coisa que os fazia ficar muito bravos comigo é que eu ficava estudando à noite em uma cabana. E, às vezes, a lamparina caía e se iniciava um pequeno incêndio. Quando isso acontecia, acabava acordando todo mundo, era aquele tumulto enorme e no dia seguinte as pessoas estavam com sono. Então eu acabava ficando sem o café da manhã como punição por ter causado o “incêndio” e acordado todo mundo.

PIMENTA – E isso aconteceu muitas vezes?
Dra. Antônia – Algumas vezes (risos). Eu costumava ler muito. Lia dicionário, pegava livros emprestados, fazia qualquer negócio para aprender.

PIMENTA – Mas como foi para vocês, tão novos, sair assim de casa para trabalhar?
Dra. Antônia – Na época, os pais que tinham condições mandavam os filhos para escolas nas cidades de Serro ou Diamantina. Eu me lembro bem de meu pai dizendo: “olha, eu não tenho dinheiro, não posso pagar nada disso, mas, enquanto eu tiver vida, toda noite eu vou rezar um terço pra vocês”. Meu pai viveu mais uns vinte e poucos anos depois disso e toda noite, podia estar cansado como fosse, ele só dormia depois de ajoelhar no oratório e rezar o terço. Ele morreu no dia 15 de abril de 1997, quando eu já era procuradora da Fazenda em Uberlândia. A minha mãe morreu antes, em 1992, logo após minha formatura em direito. Eu me formei no final de 91.

PIMENTA – Até quando a senhora ficou trabalhando nesse canavial?
Dra. Antônia – O trabalho de colheita é sazonal. Nós ficávamos cerca de três meses e depois voltávamos para casa e nesse meio tempo eu voltei a estudar em Serra Azul. A cada ano era aquela agonia para saber se iriam oferecer a série seguinte. Dessa maneira eu terminei o antigo ginásio, fiz magistério e sempre retornava ao canavial. Bem, depois disso surgiu um emprego de doméstica em Belo Horizonte, quando eu tinha por volta de 16, 17 anos.

 

Eu ficava lá fingindo que estava esperando o ônibus e passava a noite. Fiquei assim durante uns oito meses, mais ou menos.

 

PIMENTA – Como foi essa experiência?
Dra. Antônia – A minha patroa não gostava que empregada dormisse em casa e, para não dizer à minha mãe que eu não tinha onde morar e para não dizer à patroa que eu iria morar na rua, eu falei para esta que eu tinha uma tia em um bairro distante e que moraria com ela. Já para minha mãe eu dizia que morava na casa da patroa. Só que eu não morava em nenhum desses lugares.

PIMENTA – Onde a senhora morava?
Dra. Antônia – Eu passava as noites na porta da Telemig (antiga companhia telefônica de Minas Gerais), um prédio grande e em frente havia um ponto de ônibus bastante movimentado até de madrugada. Eu ficava lá fingindo que estava esperando o ônibus e passava a noite. Fiquei assim durante uns oito meses, mais ou menos, até que um dia chegou uma senhora e me ofereceu um lugar para ficar. Isso me marcou tanto, que eu tenho por princípio não trancar portas na minha casa, porque um dia alguém abriu uma porta pra mim.

PIMENTA – E o primeiro concurso?
Dra. Antônia – No ano em que eu faria 18 anos, foi publicado o edital para o concurso do Tribunal de justiça de Minas Gerais e eu me inscrevi para oficial de justiça. Eu não tinha nem noção do que era o tribunal e por isso precisava estudar muito. Havia em Belo Horizonte um curso preparatório chamado Vila Rica, mas tinha que comprar a apostila. Quando eu soube o preço, quase caí pra trás e vi que não teria condições. Então eu notei, no local onde as apostilas eram impressas, naquela época no mimeógrafo, que de vez em quando algumas folhas borravam e eram jogadas no lixo. Eu estudei com essas folhas do curso Vila Rica, fiz o concurso em junho de 1981, completei 18 anos em julho e no final de agosto eu assumi como oficial de justiça.

PIMENTA – Vida nova…
Dra. Antônia – Foi aí que as coisas começaram a mudar. Eu conheci também pessoas muito iluminadas, como o desembargador Walter Veado. Ele foi uma das pessoas que me estimulou a fazer o curso de Direito, que a princípio não me atraía, embora eu já tivesse algum contato com a área no trabalho como oficial de justiça. Acabei fazendo o vestibular da Universidade Federal e cursei Direito.

PIMENTA – Me desculpe, mas como era mesmo o nome do desembargador?…
Dra. Antônia – Desembargador Walter Veado. É um nome muito engraçado e há inclusive uma história de um fato curioso ocorrido com ele. Quando foi promovido a juiz em Belo Horizonte, ele vinha de uma cidade chamada Oliveira. A escrivã estava se preparando para apresentá-lo aos funcionários e preocupadíssima com o nome dele. Então ela ia decorando: “Dr. Walter Veado, que foi juiz em Oliveira”. Mas na hora de apresentar, ela acabou dizendo: “esse é o Dr. Walter juiz, que foi veado em Oliveira” (risos). É uma família tradicional em Minas.

PIMENTA – Bem, então a senhora foi fazer Direito…
Dra. Antônia – Isso, e aí surgiu uma mania em minha vida, que foi fazer concurso. Durante uns sete a oito anos, eu fiz um concurso por ano. Eu dava aula de português em um cursinho chamado Sistema, mas não tinha nenhuma credencial nem era formada em Letras. Então eu fazia os concursos e tinha que fechar a prova de português. Era aquela prova que mostravam aos alunos para dizer quem era o professor.

PIMENTA – A senhora chegou a advogar?
Dra. Antônia – Durante um tempo eu dei aula e, depois que me formei, tive escritório em Belo Horizonte. Fui advogada do Sindicato dos Professores, da Pastoral da Terra. Eu, na verdade, atuava na pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte, atendendo populações socialmente vulneráveis. Era um trabalho bem interessante. Depois, eu fiz concurso para a Procuradoria do INSS e fui aprovada, mas não cheguei a assumir. Depois fiz concurso para delegada e, após a nomeação, fiquei somente 24 horas no cargo, em uma cidade chamada Barra do Garças, no estado do Mato Grosso.

PIMENTA – Por que só 24 horas?
Dra. Antônia – Havia um senhor lá chamado Valdo Varjão, que chegou para se apresentar a mim. Ele se sentou em frente à minha mesa, perguntou se eu era a nova delegada e disse que estava à minha disposição. Falou assim: “O que precisar, pode me chamar. Se alguém mexer com você, se alguém te incomodar, você pode me chamar…”. Aí eu falei: “Epa, essa fala é minha, não?”. Tinha alguma coisa errada naquela história e eu comecei a achar aquilo meio esquisito. Era um lugar muito distante, na época um fim de mundo. Não sei como é hoje, mas na época havia somente uma cabine de telefone na praça para toda a cidade. Eu comecei a ficar agoniada e posso até dizer que fiquei com medo mesmo.

PIMENTA –  A senhora teve uma experiência no Banco Central…
Dra. Antônia – Eu trabalhei no Banco Central na época da operação do Banestado. Fui também procuradora do município de Belo Horizonte, além de coordenadora de Ação Regional no governo de Patrus Ananias.

PIMENTA – A senhora foi filiada ao Partido dos Trabalhadores?
Dra. Antônia – Não, eu nunca fui filiada a nenhum partido. Sempre fui muito independente e dizia que não queria rezar por nenhuma cartilha porque preferia pensar por mim mesma. Tive proximidade, tenho uma grande amizade com Patrus Ananias, tive um contato com Lula em 1979. Era uma relação que já vinha da minha mãe, que trabalhava nas Comunidades Eclesiais de Base.

 

Eu conheço todos os bairros de Itabuna, pelos nomes e pelos apelidos.

 

PIMENTA – Na Bahia, seu primeiro trabalho foi como juíza de Mucuri?
Dra. Antônia – Eu também fiz alguns plantões em Camaçari e assumi em Mucuri em 2003. Tenho uma paixão muito grande por um trabalho que fizemos lá, em parceria com a comunidade, que mereceu um prêmio do Conselho Nacional de Justiça. Foi um trabalho de conscientização dos carvoeiros e um dos pilares da minha atuação era não interferir na organização social. A ideia era levar autonomia e não manter um regime de dependência.

PIMENTA – Por que a senhora decidiu fazer esse trabalho?
Dra. Antônia – Quando eu chego em qualquer comarca, eu sempre visito as comunidades e fiz isso lá em Mucuri. Em uma das primeiras visitas, a um lugar chamado Oliveira Costa, uma carvoaria, eu enxerguei uma lona de onde vinha um barulho. Então eu perguntei à senhora que estava ali se era algum animal que ela criava ali dentro e ela me respondeu que eram “os minino”. Eram crianças que estavam ainda engatinhando e que as mães, para que elas não entrassem embaixo dos veículos que transportam a madeira ou caíssem dentro dos fornos, as deixavam em um buraco, cercado por uma lona. Aquilo me impressionou muito. Então o que propusemos foi a criação de uma associação e a instalação de um centro de convivência.

PIMENTA – E as crianças maiores já trabalham nos fornos…
Dra. Antônia – Uma coisa que me chamou muita atenção foram os dedinhos das crianças já sem unha. Era só um toquinho perto da cutícula. Eu conversei com uma professora de um distrito chamado Nova Brasília e ela me explicou que as crianças ajudam a descarregar os fornos e muitas vezes queimam as pontas dos dedos. Com um tempo, as unhas param de nascer.

PIMENTA – É interessante quando o juiz sai do gabinete e mostra verdadeira preocupação com os problemas sociais…
Dra. Antônia – Em qualquer lugar onde estou trabalhando eu gosto muito de me aproximar e conhecer a realidade das pessoas. Saber se elas moram bem ou mal, se a região tem ou não infraestrutura adequada. Eu gosto de gente, sou uma apaixonada pelo ser humano. Não interessa o tropeço que tenha dado.

PIMENTA – A senhora já vislumbrou algum projeto social em Itabuna?
Dra. Antônia – Eu já tenho montadinho aqui. Já conversei com o Ministério Público, com os defensores, que uma coisa que me chamou atenção – e isso não é nenhuma crítica, mas uma constatação – é que falta área de lazer coletivo nos bairros da cidade. Não existe um parque público, assim como faltam áreas para a prática de esportes. Nós pensamos em levar um projeto até a Secretaria Nacional Antidrogas, que repassa recursos para iniciativas de cunho social.

PIMENTA – Em pouco mais de um ano em Itabuna, já deu para conhecer os bairros?
Dra. Antônia – Eu conheço todos os bairros de Itabuna, pelos nomes e pelos apelidos.

PIMENTA – Como a senhora se define?
Dra. Antônia – Eu sou uma pessoa abençoada, muito feliz com o que faço e com as pessoas com as quais eu convivo. Sou uma pessoa bastante transparente, não tenho nenhuma máscara. Eu costumo dizer que fui abençoada pela família que tive.

PIMENTA – A simplicidade é uma postura que nem todas as pessoas que ocupam cargos considerados importantes adotam…
Dra. Antônia – Meu avô contava uma história que guardo comigo. É a fábula do burro e da relíquia. Certa vez um burro foi escolhido para transportar uma imagem sacra. Então arrumaram o burro, colocaram a imagem e, a cada lugar que o burro passava, as pessoas se curvavam, abriam passagem, e o burro foi “se achando”. Quando alguém não prestava atenção, ele se sacudia, fazia um barullho e as pessoas faziam toda aquela reverência. No fim da viagem, o burro entregou a imagem e, no retorno, ninguém mais ligava para o animal. Quando ele fazia barulho, levava um chicotada, ninguém dava passagem, até que o burro foi ficando deprimido e procurou um burro velho. Ele disse assim : “Puxa, eu não estou entendendo. Ontem eu passei, as pessoas se curvavam, me trataram maravilhosamente bem, e agora quando eu volto ninguém mais quer saber de mim. Aí aquele burro velho e sábio olhou para ele e disse: “O problema de alguns burros é não saber que toda relíquia se entrega um dia. E se o burro não se comportar muito bem enquanto estiver com a relíquia, no final ele fica sozinho”.

PIMENTA – Uma lição para os vaidosos…
Dra. Antônia – É preciso não se deixar influenciar, seja pelo que for: cargo, beleza… Não tem beleza que não acabe, o melhor jogador do mundo um dia deixa de ser, a top-model um dia deixa de ser. A própria relíquia da vida nós entregamos um dia e eu acredito na prestação de contas depois a um juiz que não se atém a processos, que é o Criador.

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