Genilton Inácio olha o barranco atrás da casa da família, onde sua esposa foi soterrada || Fotos Jaque Cerqueira
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Dois meses após tragédia no sul da Bahia, várias famílias ainda vivem em áreas condenadas e sem apoio do poder público

Jaque Cerqueira

É com profunda tristeza que o senhor Genilton Inácio de Souza lembra o dia em que um barranco desmoronou e invadiu a casa onde ele mora com a esposa, a filha e uma neta. O barro invadiu a cozinha, o banheiro e um quarto.

Sua mulher, Solange, que no momento da chuva estava nos fundos do terreno, fazendo uma valeta para que a água escoasse, ficou soterrada pelo barro. Milagrosamente, foi resgatada por vizinhos e hospitalizada com vários ferimentos graves. Hoje, está recuperada dos traumas físicos, mas permanecem as sequelas emocionais.

A história do senhor Genilton, que mora no Basílio, em Ilhéus, é apenas uma dentre várias de sofrimento e abandono. As chuvas de dezembro só colocaram em evidência o antigo problema das encostas na cidade, que é um dos principais destinos turísticos da Bahia e do Brasil, consagrada pelas obras do escritor Jorge Amado.

A Defesa Civil chegou a mapear 48 áreas de risco, onde vivem cerca de 5 mil famílias. Em dezembro, a Prefeitura de Ilhéus decretou estado de calamidade pública por causa dos temporais.

Alto do Basílio em Ilhéus: moradores vivem com medo constante

Na Avenida Palmares, localizada no Alto do Basílio, aproximadamente sessenta famílias foram atingidas direta ou indiretamente pelo deslizamento de encostas. Bairros como Teotônio Vilela, Banco da Vitória, Alto da Soledade, Alto da Tapera e outros tantos ainda sofrem com as consequências da chuva e também com o descaso do poder público.

Dona Maria Lúcia diante da casa que foi obrigada a deixar após queda de barranco

Na Avenida Palmares, também entrevistamos dona Maria Lúcia, que teve a casa invadida pelo barranco e perdeu quase todos os móveis. Com voz embargada e olhos marejados, lamenta a situação em que vive.

Ela saiu da casa onde morava com a família e hoje precisa pagar aluguel para viver em um local seguro. Contudo, diz não receber nenhum tipo de auxílio do poder municipal. “Além de pagar aluguel, água e luz da casa onde estou morando, tenho que pagar água e luz da minha casa, que está fechada, para não cortarem o funcionamento e acumular as dívidas”, conta Maria Lúcia.

Com o marido desempregado, ela se desdobra para arcar com as despesas e ainda enfrenta a dificuldade de ter perdido vários móveis e eletrodomésticos.

Funcionários da Defesa Civil fizeram cadastros e preencheram formulários, mas, até o momento, nenhuma política pública foi efetivada no local, como o auxílio-aluguel. Também não foi feita qualquer avaliação técnica do terreno para obras de contenção da perigosíssima encosta ao fundo de 60 residências.

Cozinha de Maria Lúcia destruída por queda de barranco

O prefeito de Ilhéus, Mário Alexandre (PSD), anunciou, em fevereiro, o pagamento de aluguel social para famílias que vivem em áreas condenadas. Entretanto, moradores do Basílio questionam a informação e relatam não ter recebido tal auxílio.

“Não tivemos apoio em nada. Não recebemos nem cesta básica. Agora, fomos informados que se tirarmos o barro de dentro de casa e colocarmos na rua, seremos multados pela Prefeitura”, lamenta Genilton Souza, em tom desolado, diante do dilema.

Se deixar o barro dentro da casa, não poderá viver ali, pois a situação é insalubre e caótica; se retirar o barro, será multado. A pobreza é duplamente penalizada.

Mais de 60 dias após a enchente, vemos nas ruas de Ilhéus amontoados de lama, como na Avenida Princesa Isabel, importante ligação do centro com a rodoviária. Moradores retiraram o barro das residências com as próprias mãos. Passados dois meses, a Prefeitura não fez nenhuma limpeza. Além da sujeira, o barro causa transtornos ao trânsito de pedestres e veículos.

A FORÇA DO VOLUNTARIADO

Assim como no Alto do Basílio, moradores do Teotônio Vilela tiveram suas casas afetadas pelas chuvas desde 10 de dezembro. Foi uma recorrência de sofrimentos e alagamentos até 1º de janeiro.

Sem atuação do poder público municipal, contam com a mobilização de instituições que fazem trabalho voluntário. Constatamos que as ruas pavimentadas não receberam qualquer obra de melhoria. Quanto às de barro, não existe previsão orçamentária de pavimentação.

Vanessa Cardoso mora com duas filhas na rua Amanda das Neves, no bairro Teotônio Vilela. Um córrego passa na frente da casa e, com as chuvas, a água invadiu a residência, chegando a atingir um metro de altura.

A família passou semanas numa escola pública que acolheu desabrigados. Além de perder o pouco que tinha, Vanessa precisa de um local seguro para viver com as filhas. Toda a assistência que recebeu, até o momento, veio de doações da comunidade, a exemplo de alimentação, roupas, medicamentos e móveis.

Rua Amanda Neves, no Teotônio Vilela, bairro que acabar de completar 40 anos

AÇÕES DO GRUPO AMIGOS DA PRAIA

O Grupo Amigos da Praia (GAP) se uniu para apoiar as famílias afetadas. O trabalho da ONG, ainda em andamento, é feito em três etapas. A primeira foi a arrecadação de alimentos e outros donativos na ajuda humanitária emergencial; a segunda foi a realização de resgates e transporte de pessoas em áreas alagadas.

Percebeu-se a necessidade de levar atendimento médico às famílias atingidas pelas chuvas, principalmente em áreas de difícil acesso, como Banco do Pedro, Sambaituba, Castelo Novo, Lagoa Encantada e outras áreas rurais.

A terceira fase é a distribuição digna de roupas, calçados e utensílios doados por milhares de pessoas. No Bazar Solidário, cada ente da família tem liberdade e autonomia para escolher os itens necessários ao recomeço de seus lares.

Em outra frente, o GAP mobilizou-se com pescadores locais para limpar trechos do Rio Almada, onde plantas aquáticas formaram ilhas que impediam a navegação e o transporte dos donativos. A limpeza facilitou o acesso de barcos a várias comunidades que precisavam de atenção, como Lagoa Encantada, Urucutuca, Campinhos, Vila Juerana, Aritaguá e Sambaituba.

“Não podíamos transportar todos os alimentos doados por terra. A situação piorava, porque as pequenas canoas, aquelas que passavam nos caminhos estreitos, têm limite de carga pequeno. Imagina transportar uma ou duas cestas básicas por viagem, sendo que a quantidade de ribeirinhos é gigantesca na zona norte de Ilhéus”, relembra Gabriel Macedo, presidente do GAP e técnico da Confederação Brasileira de Surf (CBSurf).

Na última fase da operação humanitária, o GAP avalia, de forma pontual, casas que precisam de pequenos reparos ou mesmo ser reconstruídas, principalmente nos bairros Teotônio Vilela e Salobrinho.

São várias famílias que necessitam de intervenção urgente em suas residências e, hoje, só podem contar com o voluntariado e o engajamento comunitário. O número de desalojados é grande. Diversas pessoas ainda estão em casas de parentes e vizinhos. Dessa forma, sequer entram na estatística oficial.

Segundo contato com a Secretaria de Promoção Social e Combate à Pobreza (SPS), apenas 26 pessoas receberam aluguel social, o que não corresponde à necessidade real da população afetada.

Limpeza do Rio Almada contou apenas com trabalho voluntário

Diante do cenário devastador na região, apenas uma junção de iniciativas poderá amenizar os transtornos causados, sendo a efetivação da política pública de moradia a mais relevante.

Além de medidas emergenciais, como auxílio-aluguel, para retirar as pessoas que ainda se encontram em áreas de extremo risco, é necessária a implantação de políticas voltadas ao planejamento do uso e gerenciamento do solo, como zoneamento geoambiental, planos preventivos de defesa civil e educação ambiental.

Em Ilhéus, negligenciar a necessidade de contenção de encostas, implantação de sistemas de drenagem e reurbanização de áreas degradadas é ocultar uma tragédia anunciada.

Ao todo, 25 pessoas morreram em decorrência dos temporais que atingiram toda a Bahia e 661.508 foram afetadas. Vidas perdidas, famílias inteiras sem moradia e outras tantas ainda vivendo em áreas de risco.

Mesmo esse cenário trágico e catastrófico parece não comover quem, por lei, tem a responsabilidade de intervir na resolução de problemas e, no mínimo, amenizar o sofrimento humano.

FRUSTRAÇÃO ILHEENSE

No final de janeiro, o Governo do Estado, por meio da Companhia de Desenvolvimento Urbano (Conder), autorizou obras de requalificação urbanística em 37 municípios afetados pelas chuvas na Bahia. Para isso, foram disponibilizados cerca de R$ 57 milhões de recursos estaduais.

Serão feitas 43 intervenções, por meio de convênios com o órgão ligado à Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Bahia. O que espanta e frustra os moradores que sofrem as consequências das chuvas em Ilhéus é que a cidade não foi incluída em nenhum dos projetos de pavimentação e implantação ou requalificação de equipamentos urbanos.

Ainda em janeiro, o governador da Bahia, Rui Costa (PT), anunciou o início do Programa Bahia Minha Casa, que deverá construir residências para as famílias que viviam em áreas afetadas pelas enchentes. O trabalho será uma parceria entre as secretarias estaduais de Desenvolvimento Urbano (Sedur), via Conder, e de Relações Institucionais (Serin).

Segundo o secretário de Relações Institucionais Luiz Caetano, os prefeitos e as prefeitas precisam fazer o cadastramento das famílias que tiveram 100% de perda das casas.

Ainda segundo o secretário, muitos municípios têm atrasado esse cadastramento, o que impossibilita o acesso dessas famílias ao benefício. Atrasar este tipo de cadastro é condenar estas famílias ao relento.

TRAGÉDIAS E MORTES VIRAM ROTINA

Nos últimos meses, o Brasil inteiro vê perplexo a quantidade de famílias desabrigadas e inúmeras vidas perdidas após uma sequência de desastres ambientais, principalmente nos estados da Bahia, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

As tragédias são reflexos, principalmente, da falta de planejamento urbano e de suas áreas de risco. À essa situação, juntam-se as mudanças climáticas intensificadas pela ação humana, conforme pesquisas científicas amplamente divulgadas.

Área de deslizamento de terra em Petrópolis || Foto Florian Plaucher/AFP

Em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, 232 pessoas morreram após as fortes chuvas que atingiram a região. A Defesa Civil registrou 2.199 ocorrências desde o dia 15 de fevereiro, sendo 1.764 por deslizamentos.

Ainda segundo a Defesa Civil, com base nos dados disponíveis até 24 de fevereiro, dos 208 mortos identificados até aquela data, 124 são mulheres e 84 homens.

O que mais espanta é que, após as tragédias, não existe nenhuma ação que resulte na identificação de responsabilidades pelo ocorrido, seja por omissão ou pela falta de medidas administrativas e ações capazes de prevenir ou amenizar novas ocorrências.

Já é de conhecimento público que a ocupação desordenada do solo, como construções em montanhas, fundos de vale e margens de cursos d’água, é prenúncio de tragédia. Porém, essa realidade se repete em praticamente todo o país.

Assim como Petrópolis, o relevo de Ilhéus, o tipo de solo e as condições pluviométricas associadas à ocupação irregular resultam em uma série de ocorrências nos períodos de chuva forte e levam, rotineira e exaustivamente, à perda de vidas, além dos danos materiais.

O que se espera do poder constituído são políticas públicas que orientem o crescimento urbano para áreas que não ofereçam risco à população; que realize planos de contingência e tenha programa de mitigação dos impactos da crise climática global.

No entanto, após tantas tragédias, o que de fato foi feito? Em Ilhéus, as ocupações ao longo das margens dos rios, mangues e encostas não param de se expandir. A única certeza é a de que, mesmo com tanta tecnologia e recursos, não há planejamento urbano e infraestrutura eficazes para o crescimento sustentável das cidades.

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