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De leituras muito antigas, lembro do pensador espanhol Ortega y Gasset (foto), nascido em 1883 e falecido em 1955, que cunhou a expressão “mal dos dicionários”: é quando as pessoas, por maldade das piores, dão àquilo que os outros dizem um sentido diverso, autoritário e interesseiro. Por exemplo: reclamar da violência policial é ser defensor de bandidos; querer punição para os torturadores da ditadura militar é revanchismo, quem não se mostra solidário com exibições públicas de homossexualidade é execrado como portador de homofobia, e por aí vai. O falante precisa adotar cuidados com a língua (nos dois sentidos), para que não seja pendurado no mais próximo poste da Coelba. VIVEMOS A PLENA ERA DO EUFEMISMO
Por essas e outras, o eufemismo se mantém em moda, gerando formulações até curiosas. Pobre já deixou de sê-lo há muito tempo, sendo promovido a carente; deficiente físico agora é PNE (Pessoa com necessidades especiais); aquele pobre (ops!) que morria esquecido no hospital, então classificado como indigente, ainda morre do mesmo jeito, mas agora é PNP (Paciente não pagante); negro, que em tempos imemoriais era preto (ai, meu Deus!), hoje é afrodescendente, e miserável é excluído social. Atenção: chamar alguém de “bambi”, ou equivalente, é crime. E esqueça o arcaísmo “pederasta”, pois além de mostrar que você é do tempo do Onça, ele o envolve em crime hediondo e imprescritível.
Aproveito e dou a explicação mais corrente (sei de duas) para “tempo do Onça”. A expressão, que indica algo muito antigo, vem da época do capitão Luís Vahia Monteiro (governador do Rio de Janeiro de 1725 a 1732), apelidado Onça. Esse Onça era tido como ranzina, austero, exigente, uma mala, avant la lettre. Em carta a D. João V, rei de Portugal, afirmou: “Nesta terra todos roubam; só eu não roubo”. O governador Onça passou à história como pregador de uma seriedade que não se via mais em sua época (há mais de dois séculos e meio) e, provavelmente, não se viu jamais. Não é à toa que em certo período, a população do Rio de Janeiro o chamava, carinhosamente, de Virgem no bordel.
Conta-se que Onça era muito severo quanto a seus deveres, cumpria a lei e exigia que, ao seu redor, todos a cumprissem. Sua defenestração do cargo (o governador era nomeado, não eleito, e, portando, demitido) deixou muita gente saudosa, que, diante da bagunça então reinante, suspirava: “Ah, no tempo do Onça, isso não existia”. Com o passar dos anos, a expressão começou a designar não só o que era bom, mas o que fosse velho. Esse registro nos mostra que a falta de cidadania, a má educação, o desleixo e o roubo são, como diria o carioca Noel Rosa, coisas nossas, das antigas. Mas isso também merece hoje um eufemismo, pois não é de bom tom afirmar que os governos roubam: atualmente, esse mau hábito intitula-se “malversação do dinheiro público”. Ah, o Onça!…
Minha cidade estendeu-se
alargou suas redondezas
multiplicada em distâncias.
Insatisfeita
subiu
buscando mais horizontes
e perdeu-se
dentro dela.
Volto hoje a procurá-la.
Transfiguram-se os jardins
e os encantos do seu rio
tomaram novas feições.
Até o céu era outro
ou eram outros
os meus olhos?
Sob a ação de tanto tempo
anoiteceu em si mesma
e confundiu seus vestígios
entre as formas de mais gritos.
–
Agora
é só pensamento
– minha cidade de outrora.
“A Itabuna”, acima, é um poema publicado pelo itabunense Walker Luna no livro Um ângulo entre montanhas, de 1985. Foi colhido em Assis Brasil, na antologia A poesia baiana no século XX. Telmo Padilha disse sobre Walker Luna (nascido em 1925): “Seus poemas, de elevadíssima tessitura, são personalíssimos e possuem uma ductilidade rara entre seus contemporâneos”. Para Cyro de Mattos (que selecionou o poeta para Itabuna, chão de minhas raízes, de 1996), a produção de Walker Luna é ”vazada numa experiência humana vivida com intensidade, ora triste, ora amarga, de insônia e sofrimento cúmplices entre o transitório e o inevitável”.
Em 17 de março de 1970, João Saldanha (na foto, a estátua dele, no Maracanã), técnico da seleção brasileira, teve seu último encontro com a CBD. Havelange, o presidente, lhe comunicou que a comissão técnica estava “dissolvida”. Saldanha o enfrentou: “Não sou sorvete para ser dissolvido. O senhor quer dizer que estou demitido?”. Havelange, espumando: “O senhor está demitido”. Saldanha: “Boa noite. Vou pra casa dormir”. Dunga, 40 anos depois, é demitido de forma humilhante. Ao saber que ele fez uma carta à CBF, esfreguei as mãos: “Vai bater!”. Não bateu. Baixou a cabeça e agradeceu “pela confiança, respaldo e autonomia concedida”. Moral: quem nasce para ser Dunga nunca chega a João Saldanha.
É interessante notar como termos bem prosaicos, outrora empregados à mancheia, entraram em processo de decadência e extinção. É o caso da simpática palavra “repórter”: já não encontramos mais um só repórter, nem pra remédio. De algum tempo para cá, eles se transformaram em “jornalistas”. Antes, as autoridades falavam com os repórteres, contestavam os repórteres e, principalmente, xingavam os repórteres. Agora, elas convocam os jornalistas, discutem e agridem os jornalistas – e, dia desses, absurdo dos absurdos, um jornalista chamado Pimenta Neves assassinou a jornalista Sandra Gomide, segundo noticiaram os… jornalistas. Nem em assassinato aparece repórter.
Pimenta Neves está em liberdade, mesmo tendo confessado o crime, o que também não é novidade, pois a Justiça tem grande dificuldade em alcançar os ricos, mas disso todos já sabemos… De volta: jornalista é termo abrangente, que engloba as funções de editor, redator, editorialista, copidesque, diagramador, pessoal de artes, revisor (praticamente extinta) e… repórter. Dizer “Os jornalistas aguardam que o técnico Dunga (se não estiver nos azeites) venha falar com eles” é pouco claro. Melhor seria “Os repórteres aguardam…”, pois as outras funções de jornalista são exercidas na redação e, graças ao bom Deus, ficam livres de levar chutes nas canelas, confundidas com a própria jabulani.
Talvez seja útil, apenas para quem não tem intimidade com o meio, explicar que, esquematicamente, repórter é quem vai à rua, “farejar” notícias. Deve ser por isso que o repórter novo (no tempo em que havia repórteres, claro!) era chamado de “foca” – aquele bichinho simpático, que vive com o nariz pra cima. O bom “foca” tinha faro apurado ou, pelo menos, sadias ambições: sonhava com a grande notícia, o “furo” que um dia levaria à redação. Mas a mudança não para no sumiço da palavra “repórter”, pois jornalista também está ficando démodé. Tenho observado uma tendência de trocar o termo “jornalista” pela mais nova forma de presunção: “comunicólogo”… Aí, desculpem a gíria jurássica, peço meu boné.
Nem bem saiu de nossos tímpanos o som de irritantes vuvuzelas e aquele já é um tempo de lembranças. E entre elas está Mick Jagger (foto), que ganhou o título de pé-frio, em mais uma das injustiças que o futebol comete. Se as seleções da Inglaterra e Brasil perderam não foi devido ao imponderável, mas à lógica – pois ela, embora digam que “não tem” no futebol, às vezes fica perceptível. Como não falo inglês, não sei o que houve com o time da Rainha, mas querer que o nosso chegasse muito longe seria alimentar improváveis sonhos e ilusões. Portanto, deixemos a velha “titia” dos Rolling Stones fora do mundo jabulânico e vamos ao que motivou as considerações acima. Você sabe de onde saiu a expressão rolling stones?
Que rolling stones significa, literalmente, “pedras rolando”, todos sabem. Mas o bluesman Muddy Waters (literalmente, “Águas Lamacentas”) usou a expressão com outro sentido, algo próximo a vagabundo, alguém que não fica no mesmo lugar (“pedra que rola não cria limo”, diz o provérbio). O velho BW (1915-1983) é a fonte onde Jagger, Keith Richards e outros beberam o nome do grupo. Em “Rollin´ stone blues”, Muddy (foto) fala de sua mãe dizendo ao pai “Vou dar à luz um menino,/ ele será um rolling stone (I got a boy child’s comin,/ he’s gonna be a rollin´ stone). Salvo melhor tradução, é isto. E Bob Dylan também se valeu da mesma informação em “Like a rolling stone”.
Dylan fala de uma mulher que está sem direção alguma, uma completa estranha, como uma pedra rolando (like a rolling stone), mais ou menos isto. É curioso que na Bahia uma banda usou processo semelhante na escolha do nome: foi buscá-lo em “Chiclete com banana”, composição de Gordurinha e Almira, gravada em 1959 por Jackson do Pandeiro (Almira Castilho era mulher de Jackson). Esse JP, paraibano de Campina Grande, tinha uma noção de ritmo única no Brasil, considerado um verdadeiro mestre da divisão. A banda referida que disse ter tirado seu nome de sonhos, aviso de extra-terrestes e outras baboseiras, faria uma ação ética admitindo sua origem honrada: Jackson do Pandeiro (foto), Gordurinha e Almira.
Clique e ouça os “pais” das bandas referidas, Muddy Waters e Jackson do Pandeiro, respectivamente.
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EUFEMISMO E “MAL DOS DICIONÁRIOS”
Ousarme Citoaian

VIVEMOS A PLENA ERA DO EUFEMISMO

CAPITÃO ONÇA, A VIRGEM DO BORDEL

NÃO MAIS SE ROUBA: MALVERSA-SE O DINHEIRO

O POETA JÁ NÃO RECONHECE SUA ITABUNA

AMARGA, TRISTE, INSONE E SOFRIDA

A HISTÓRIA REPETIDA SEM GRANDEZA

O BRASIL NÃO TEM MAIS REPÓRTERES

O TERMO “JORNALISTA” É GENÉRICO

JORNALISTA AGORA É… “COMUNICÓLOGO”

SOBRE A LÓGICA E O IMPONDERÁVEL

MICK JAGGER E AS “PEDRAS QUE ROLAM”

</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as
REI DO RITMO NASCEU NA PARAÍBA

Clique e ouça os “pais” das bandas referidas, Muddy Waters e Jackson do Pandeiro, respectivamente.
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(O.C.)
10 respostas
Não sou admirador de Dunga – o respeito, todavia, a atitude do técnico da seleção brasileira mostra inequivocamente que a postura jornalistica a partir de agora será diferente, mais pro ativa e igualitária a todos os meios de comunicação.Às vezes o veneno promove a cura.
Se passar a lei de reserva de mercado, pelo qual somente bacharel na área pode atuar com repórter, jornalista ou passar alguma notícia, até o Universo Paralelo precisará de um “comunicólogo”.
quem é o poeta do poema “O POETA JÁ NÃO RECONHECE SUA ITABUNA” ?
a ele ou ela: Parabéns!
Só percebo o uso do “comunicólogo” por parte dos graduados em rádio e tv na Uesc. Talvez seja um termo próprio desta habilitação, já que eles não são jornalistas nem propriamente radialistas. Acho que isso explica o palavrão, Seu Ousarme.
Aliás, desconheço outras situações em que o termo seja usado. Se o nobre colunista tiver exemplos, agradeço.
Sou formada em Comunicação Social (UESC) e lá aprendemos durante os quatro anos de curso que quem se forma em Comunicação é um Comunicólogo, o que se comunica profissionalmente. O que tem de errado nisso ou em se orgulhar da profissão que se exerce?
Grata pela oportunidade.
“Ronaldo”:
Bem lembrado. A tal reserva é mais uma contradição do velho capitalismo. Como defender a livre iniciativa e, ao mesmo tempo, impedir a empresa de formar seus quadros com os mais competentes, forçando-a a optar pelos de maior formação teórica? E gente com o cabedal prático de Edvaldo Oliveira, Daniel Thame, Orlando Cardoso, José Adervan, Ederivaldo Benedito, Eduardo Anunciação – para citar uns poucos profissionais não “comunicólogos” – seriam alijados do mercado? Eu não sei as respostas.
“O Grapiúna”:
O poeta “que já não reconhece Itabuna” é Walker Luna (está no tópico seguinte ao poema). Ele é de uma família local de comerciantes (Casa Luna) e mora em Salvador. Além de Assis Brasil (citado no texto), ele foi selecionado por Cyro de Mattos para o livro Itabuna, chão de minhas raízes (1996). Curioso que na antologia de Cyro o poema (aqui citado como “A Itabuna”) tem outro (e muito melhor) título, que só agora me ocorre: “A cidade perdida”.
“astronauta”:
Comunicólogo é bacharel em Comunicação Social, particularmente com habilitação em cinema, rádio e tevê – seja na Uesc ou em qualquer curso reconhecido. É um especialista em comunicação. Não questiono (quem sou eu?) a existência do termo, mas sua pomposidade. Nesse meio as pessoas são repórteres, redatores, radialistas, cineastas etc. Comunicólogo é um pedantismo acadêmico, uma pretensão exagerada, do mesmo gênero daquele que faz alguém se intitular “filósofo” ao fazer um bacharelado em filosofia. Não conheço nenhum grande nome da comunicação nacional que se identifique como “comunicólogo”. Se me provarem que concluir o curso transforma o participante em “Especialista em comunicação”, eu retiro tudo que disse. É que esses cursos – muito úteis, por sinal – não produzem especialistas, mas bacharéis, que são categorias bem distantes: bacharel é o começo; especialista é o topo.
“Thais di Campos”:
Não me referi aos que exercem a comunicação, ou aos que se formaram no curso referido, mas à mentalidade burocrática e pedante que criou o termo. Portanto, não se sinta atingida. Você, seja quem for, é minha colega, tem meu respeito e motivos, sim, para orgulhar-se de sua atividade. Imaginando que você seja alguém ainda de pouca experiência, desejo-lhe grandes êxitos pessoais e profissionais.
A todos, obrigado pela participação – e desculpas pela prolixidade.
Muito injusta e sem lógica esta comparação de Saldanha com Dunga. Saldanha nem sequer teve a chance de disputar a copa de 70 por conta exatamente da ausência de autonomia em seu trabalho, por conta de vários atritos políticos, já Dunga teve de fato a sua faixa de autonomia, cujo usufruto da mesma, já sabemos o que foi feita.
Jornalismo é uma das hahilitações do curso de comunicação social, que também tem Rádio e Tv, Relações Públicas e Publicidade e Propaganda. Portanto, jornalista é sim comunicologo. Me desculpe se não foi isso que vc tem dito.
hoje teve colação de grau da turma de comunicação social e o reitor designou–os como bachareis em comunicação social. Na turma de psicologia designou os alunos como psicólogos. Creio que o correto seria chamar os primeiros de comunicólogos, pois é o termo correto.