Segundo articulista, livro do ex-comandante das Forças Armadas, Eduardo Villas Bôas, é obra de "delírio absoluto"
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O general quer o silêncio, uma sociedade sem debate, sem consciência dos seus problemas. Uma sociedade de ordem unida e sem democracia.

Carlos Pereira Neto Siuffo

Segunda-feira, 19 de abril, terminei de ler o livro “Conversa com o comandante”, do General Villas Bôas. Cada página lida me estarrecia com o despreparo do comandante. Lembrava do general-ditador Figueiredo dizendo ser um intelectual em razão de ter sido o primeiro em matemática na Academia. O general é um boçal.

Sempre leio muitos livros ao mesmo tempo, sendo constante, raramente não ocorre, leituras diárias da Bíblia (sou agnóstico), de Machado de Assis e dois ou três poemas. No dia em que findei a leitura do “Conversa com o comandante”, tinha terminado a releitura de “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, e o conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis.

No clássico de Raduan Nassar, André, o protagonista, narra o avesso de si próprio e da família; no conto de Machado, um pai ensina a um filho como deve proceder para se dar bem na vida. Os dois livros calharam bem com o do General (mesmo achando que o militar nunca leu Nassar nem o Bruxo do Cosme Velho).

O livro do oficial é uma fantasia de propaganda política e ideológica, evidentemente escrito para o público interno: é inventada uma família militar e apresentado um roteiro de como deve se fazer para que tudo dê certo. É um avesso do real. “Toma cuidado para não te deixares seduzir e não seres humilhado por sua insensatez”(Eclo 13).

Terminada a leitura, liguei para um grande amigo, filho de general, que passou grande parte sua vida em colégios e vilas militares. Não foi para a Aman porque desistiu da carreira. Ainda hoje frequenta os clubes militares para praticar exercícios e fazer sauna. Conhece como poucos a vida e o que pensa a tal família. Inclusive, tem um irmão Coronel.

Esse amigo também leu o livro de Villas Bôas e, quando fiz alguns comentários debochados, ouvi uma boa risada, acompanhada da seguinte frase: “Toda mulher de oficial é santa e não existe oficial corno nem homossexual”. Pois é.

Vou passar ao largo do tuíte golpista para pressionar o STF a retirar Lula das eleições de 2018, segundo o autor, articulado com o Alto Comando do Exército. Um recado para que todos estejam comprometidos com o desgoverno Bolsonaro.

Todo mundo no Exército é perfeito. Sobre a desastrada intervenção militar no Rio, quando foi assassinada a vereadora Marielle Franco, cuja opinião dos especialistas foi um retumbante fracasso, o comandante diz “que se mostrou impecável” e, em razão disso e da “maneira de ser do Braga Netto, levou o presidente Bolsonaro a nomeá-lo para a chefia da Casa Civil onde, tenho certeza, vai se haver muito bem.” Hoje, Braga Netto é Ministro da Defesa e fez, há poucos dias, discurso golpista publicado nas páginas secundárias da grande mídia.

Sobre Pazzuello, o especialista em logística, que entregou o Ministério da Saúde com 300 mil brasileiros mortos (pegou com 14 mil), ele ressalta o seu papel numa suposta acolhida humanitária de refugiados venezuelanos – conforme Celso Amorim, uma submissão aos Estados Unidos – graças à criatividade do general Pazuello.

Segundo Villas Bôas, quando Pazuello foi designado para comandar a Operação Acolhida, “garantiu o êxito da recepção, triagem, abrigo, saúde, alimentação e interiorização de milhares de venezuelanos. Sem falsa modéstia, fez com que nos tornássemos referência mundial”. Delírio absoluto!

Pazuello, infelizmente, não teve tal competência para salvar vidas de brasileiros. Certamente, um dia, será responsabilizado pelo que fez e não fez no combate à Covid.

Bolsonaro, na Cúpula do Clima, pronunciou, mais uma vez, um discurso mentiroso, distorcendo toda a realidade. O mundo desaprova o governo brasileiro. O ministro Ricardo Salles é persona non grata para o Brasil e o mundo todo. A política ambiental do desgoverno Bolsonaro é um desastre. O Brasil está na berlinda do malfeito.

Sobre Ricardo Salles, Villas Bôas escreve duas vezes. Aqui vai a primeira: “Cito como exemplo expressivo o que vem sendo feito com nosso destacado e eficiente ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que corajosamente, desde que assumiu sua pasta, vem lutando para desmontar estruturas aparelhadas, ineficientes e corrompidas, que criaram um ambiente favorável à dissipação de recursos financeiros, sem que se produzam os efeitos pretendidos”.

Na visão do general, o ministro resiste a verdadeiro massacre. “Um personagem que, por vezes, é alvo de um massacre de acusações, até mesmo com origem no exterior, é o já citado ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que “ousa” denunciar o que está por trás do indigianismo e do ambientalismo internacionais. A virulência das críticas é um indicativo da fragilidade dos argumentos. Usam então o expediente de, diante da incapacidade de refutar os argumentos, desqualificar a fonte”.

O general acha, mas não entende nada de Amazônia nem de questão ambiental. Apenas expõe platitudes e preconceitos, além de tentar desqualificar a imagem e honra de Chico Mendes, pessoa assassinada a mando de um fazendeiro. Uma Marielle de tempos idos.

Claro que os militares devem participar das questões relativas à Amazônia, mas o comandante desqualifica os conhecimentos criados pela ciência e academias. Sua visão sobre a Amazônia é neolítica. Não passa de suposto nacionalismo retórico, que, na prática, é entreguista.

Como dito, o livro é um manual político-ideológico. Um projeto de poder para os militares e, por isso, acredito, tem voo de galinha. Não dá pra resenhar aqui todo monte de inverdades ditas no livro, visa mesmo uma narrativa falsificada dos fatos.

Só pode ser levado como farsa, apesar dos riscos das tragédias, o conteúdo das ideias de quem pensa que “cada ser humano é único e centro do seu universo” (Deus meu, que profundo!) e adiante, na sua paranoia contra o politicamente correto: “Quanto mais ênfase, por exemplo, nas teorias de gênero, maior a homofobia; quanto mais igualdade de gêneros, mais cresce o feminicídio; quanto mais se combate a discriminação racial, mais ela se intensifica; quanto maior o ambientalismo, mais se agride o meio ambiente; e quanto mais forte o indigenismo, pior se tornam as condições dos nossos índios.”

O general quer o silêncio, uma sociedade sem debate, sem consciência dos seus problemas. Uma sociedade de ordem unida e sem democracia.

Ao final fica-se sabendo que o General estava internado na selva e que se ouviu “um ronco de helicóptero” . Depois de se certificar de que não havia apoio aéreo previsto, aproximou-se do local de aterragem. “Quando o Pantera pousou, o mecânico de bordo correu em minha direção e entregou-me um envelope pardo. Aguardei a decolagem para, então, abrir o que imaginava ser um documento. Era uma revista Playboy”. Quanto não se gastou de recursos públicos para isso!

Villas Bôas conhece o general Etchegoyen desde os sete anos. A sua esposa foi miss Cruz Alta e, nessa cidade, quem não for militar vira zumbi.

Às tantas, no meio do livro, tem a frase “Quis fazer um beija-flor, mas fez um urubu.” Como acho que a citação do “Coragyps atatus” pode ter uma origem racista, digo que o general tentou fazer um beija-flor e fez uma galinha. Hoje a imprensa alardeia que ele pretende fazer uma fundação bancada com financiamento público. Mas, rapaz!

Fato é que com esse tipo de comandante o Brasil não tem defesa.

Carlos Pereira Neto Siuffo é professor de Direito da Uesc.

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