MC Jef Rodriguez comenta músicas de Spiritual, seu 1º disco solo || Foto Alice Magalhães
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O MC Jef Rodriguez, da banda OQuadro, lançou Spiritual, seu primeiro disco solo, que está disponível em todas as plataformas da internet. Nesta entrevista ao PIMENTA, o músico nascido em Banco Central, distrito de Ilhéus, no sul da Bahia, fala sobre processo criativo, infância na zona rural, origem familiar, racismo, política e parcerias na produção do álbum. Leia.

PIMENTAComo surgiu a ideia de fazer o trabalho solo?

JEF RODRIGUEZ – As pessoas já me falavam há um tempo: “Quando é que você vai lançar uma parada sua?”; “Fico curioso de ver”; “Gosto das coisas que você escreve”; “Você escreve de uma maneira diferente”. Não me via nesse lugar. Não escrevia em quantidade. Sempre escrevia com OQuadro, chamando um parceiro pra fazer a parte dele e vice e versa. Meus parceiros Rans, Freeza e Rico me traziam coisas nesse jogo de construção coletiva. Pintou essa oportunidade com a Lei Aldir Blanc na Bahia.  Minha amiga Márcia falou: “A hora de gravar e produzir uma coisa é agora!”. Marcia Espíndola, da Mochi Filmes, que é uma amiga há muito tempo. Eu falei: “Como assim, Marcia?”; e ela disse: “Rapaz, me dê só seus documentos e eu vou achar alguém para escrever [o projeto] pra você, não quero que você perca essa oportunidade, sei que você já tem um monte de coisa aí sobrando. Inscreve na categoria EP. Você tem que ter um produto seu. Eu falei: “Então tá bom!” Mandei os documentos, e ela articulou pra alguém escrever e fluiu. Eu me vi maluquíssimo, porque eu fui pro estúdio com OQuadro pra escrever e saía para produzir o meu. Foi assim num intervalo de dias. Não foi uma coisa que eu planejei a minha vida inteira. As pessoas chegaram até mim e construíram essa ideia na minha cabeça. São sinais da caminhada.

Você falou ao PIMENTA de como o cuidado com a escrita é uma característica d’OQuadro que, inevitavelmente, influenciou o disco solo – e isso é algo que podemos atestar. Como percebe a evolução do seu processo criativo ao longo desses 20 anos?

Tenho praticado cada vez mais e estou me permitindo escrever de outras formas. De repente, chegar com papel e caneta aqui e deixar fluir o que a própria caneta e o papel querem dizer, como um processo terapêutico, um exercício, até para perder o controle e vê o resultado. Depois, naturalmente, você olha, faz um processo seletivo e organiza de outra forma no papel. Mas, veja, eu tenho uma oficina de escrita toda quarta-feira à tarde. Tem um grupo de WhatsApp, organizado por mim e por um amigo, Telto. A gente tem uma oficina de rima e poesia. É uma oficina de escrita livre, com intenção poética, mas a própria concepção de poesia é tão aberta que não pode ser engessada num lugar. Toda prática vai te levar a aprimorar um pouco mais. O que eu mais quero é ter grande quantidade de coisas escritas. Essa é uma busca, porque é uma coisa que eu não tinha muito. Eu sempre demorei muito pra escrever, no primeiro e no segundo discos d’Oquadro.  Sobre a qualidade, eu prefiro que a avaliação seja das pessoas. Não sei o quanto é bom, o quanto não é. Eu sei o que fala comigo, o quanto é honesto na entrega. De repente, se você mostrar isso para Kendrick Lamar, ele vai dizer assim: “Ah, mais ou menos”. É sobre isso. Quero fazer cada vez melhor e poder explorar novas estéticas. A palavra, o som e o posicionamento político não divergem tanto. A estética e a política não são coisas tão separadas. Essa é uma perspectiva muito aristotélica, de colocar as coisas em gavetas, mas as coisas estão conectadas. Quando você escolhe as cores para um bloco-afro, por exemplo, isso já um posicionamento político. Se eu não percebo o significado daquela marca na minha roupa, isso mostra o quanto estou alheio ao processo, enfim, é complexo.

Aproveitando que você entrou na discussão política, vamos falar de Aboio. Quem fez a música com você e quais foram os dados da realidade atual que inspiraram o tema?

O Brasil funciona a partir da perspectiva de uma elite que quer se manter no poder olhando para o país como o seu quintal

Todos os dados do momento. Quem participa primeiro é CT. Ele é MC e faz parte de um grupo chamado Caixa Baixa, de Niterói, e do 1kilo, que é um grupo muito famoso. Estourou no Brasil inteiro com a música “Deixe-me ir”, milhões e milhões de visualizações. Ele é um dos compositores dessa faixa – deve viver de royalty até hoje, é meu amigo, hein. Também participou Rone DumDum Afolabi, que é membro do Opanijé, um dos grupos mais importantes da história do rap nacional. Opanijé não é o grupo mais conhecido, mas é um dos mais importantes, estética e politicamente. Eles são Os Tincoãs do rap brasileiro.

Essa música [Aboio] nasce assim: CT tinha uma letra e sempre frequentou minha casa, sabe como eu escrevo. Ele queria uma participação minha no Caixa Baixa. A gente chegou a escrever pro Caixa Baixa, mas não deu muito certo. O grupo estava indo em outra direção. A gente acabou fazendo outras músicas. Essa aí ficou meio paradona, sobrando e eu falei: “Quero pra mim”. A gente ouviu uns beats de Bidu, um amigo de Niterói, que é um beatmaker muito talentoso. Eu trouxe o beat pra Rafa [Dias]. Ele reorganizou da maneira dele. A gente deu umas ideias, inclusive a de colocar o sample de aboio.

Esse pensamento colonial persiste no Brasil. Bolsonaro é só a cereja no bolo desse processo inteiro. A gente está vivendo o ápice e a faceta mais descarada desse processo.

“Aboio” fala de um processo alienante do Brasil, que não é de agora, é histórico. O Brasil funciona a partir da perspectiva de uma elite que quer se manter no poder olhando para o país como o seu quintal. E todas as pessoas que estão ali têm que ser servis a esse modelo. Tudo tem que caminhar na direção dessas pessoas, que são herdeiras dos colonizadores. Esse pensamento colonial persiste no Brasil. Bolsonaro é só a cereja no bolo desse processo inteiro. A gente está vivendo o ápice e a faceta mais descarada desse processo. Quando você diminui o poder do Estado para fortalecer a iniciativa privada, uma parte importante do controle social fica na mão dessas pessoas. Ainda tem a militarização e o papel das religiões nisso. É um processo alienante em dimensões que a gente não consegue nem contar. São camadas e camadas históricas que a gente não consegue desconstruir. A própria escola contribui para que isso aconteça, por mais que os professores tentem fazer alguma coisa. A estrutura escolar pública não é nada diante das questões sociais brasileiras e de uma questão racial que não se resolve nunca – e não há a intenção de resolver isso. Inclusive, teve uma fala de Lula na última entrevista dele. Por mais que exista boa intenção por parte de algumas camadas da esquerda, a própria esquerda não sabe lidar com isso. Então, a gente é meio gado mesmo.

Você fala da entrevista com Mano Brown?

Sim. Ele falou: “Eu sou preto, sou branco, tudo ao mesmo tempo”. Ok! Tá bom, então. Isso mostra que não há um olhar sério e urgente sobre a questão racial. A gente vive o aboio e, quando trago CT e DumDum pra essa faixa, é porque isso é do interesse de todo mundo. Não é só um interesse do preto falar sobre isso. As pessoas, às vezes, confundem isso. Por exemplo, quando se discute a questão racial brasileira, parece que a obrigação de falar sobre isso é do preto e, na verdade, não foi o preto que inventou o racismo. Quem tem que resolver o problema racial brasileiro é o branco, porque foi ele que inventou isso. É uma questão do branco, não foi o preto que inventou, a gente sofre isso. Aboio fala sobre o quanto a gente ainda é muito gado.

A participação de Tiganá Santana em Revide é uma frase em quimbundo?

Sim. Eu não sei falar na língua original, mas a música abre com essa frase, que a tradução é essa: “Se fores espancado por um branco, não te queixes a outro branco”.

O que você pensa da ideia de racismo reverso?

Racismo reverso existiria se os pretos saíssem da África, invadissem a Europa, botassem os europeus para trabalhar gratuitamente, de forma escrava, por séculos e séculos, gerações e gerações, para que isso tirasse a autoestima dele, do povo branco, tirasse a religiosidade e a cultura dele, separasse as famílias e, depois, fossem dispensados. Dispensados assim: “Beleza! Agora a gente já tá rico e vocês estão livres, mas não vão comer comigo, não. Se vocês quiserem comer, terão que trabalhar aqui. Aí coloca você na favela e manda se foder na casa da porra. Coloca polícia no seu pé se você tiver vagando na rua. Se isso acontecesse com o branco a partir de agora, daqui a 500 ou 600 anos, talvez a gente pudesse falar sobre racismo reverso.

Você comentou que as músicas dos discos refletem diferentes estados de espírito. Irradiê é celebração?

Também. De alegria e da busca. Na primeira oportunidade que a gente tem de sorrir, a gente vai sorrir. De maneira geral, se a gente faz uma leitura da realidade, a gente não tem muito motivo pra sorrir. Quando eu digo “a gente”, é a gente periférica, que mora em favela e faz parte da base da pirâmide social brasileira, o baixa-renda. Só que esse cara é quem mais quer se divertir. Quer botar o som alto, fazer o churrasco. Ele vai fazer a festinha dele. É o domingo, a terça de folga dele, ele vai explorar da melhor maneira possível. Quem mora em periferia e favela sabe. Se você puder ir no salão, vai no salão, mano. A mulher ou cara pode ir no salão. Vai meter o loiro-pivete dele, a bermuda que ele gosta, o bonezinho dele, o batidão. Entendeu? Vai comprar a caixa de som e vai ouvir o som. Se é o que ele pode ter, será da melhor forma. Ele vai se expressar esteticamente dessa forma e toda a sociedade vai sofrer a influência disso.

Hoje o samba é o nome da cultura brasileira no mundo, mas não nasceu das melhores condições

Muitos modelos estéticos e elementos da moda nascem na periferia, nascem na pobreza. A música jamaicana não nasceu dos melhores equipamentos. O samba nasceu com a estrutura possível da época. Hoje o samba é o nome da cultura brasileira no mundo, mas não nasceu das melhores condições. De certa forma, a música Irradie é uma homenagem a esse espírito criativo que nós temos. Nosso povo é criativo, nosso povo inventa do nada. O hip hop não nasceu dos melhores equipamentos. Hoje eu posso produzir com Rafa Dias: maravilha! Graças a Deus, mas não nascemos com os melhores equipamentos. OQuadro não nasce dos melhores equipamentos. Consegui meu primeiro equipamento de DJ já na vida adulta, mas meu apelido na comunidade sempre foi “DJ”, porque é uma coisa que sempre quis desde criança e nuca pude. Quando rolava o radiozinho, eu testava as coisas na fita. Eu ficava riscando os vinis da minha casa no som da sala, porque era o que eu tinha. Via na televisão e ficava com vontade de fazer aquilo – minha tia pirava comigo. É sobre você trabalhar com o que tem: você inventa. A cozinha da periferia também é inventiva e não é por que você escolheu. É a condição dada. Se você não inventa, sucumbe: “Camarão que dorme a onda leva”. E Irradiê é uma música com Áurea Semiséria, uma super MC. Vocês ainda vão ouvir falar muito dela.

Quem compôs Plano de Amor com você?

A composição é minha e eu chamei Nêgamanda, que é minha amigona aqui de Itabuna, Amanda Chaves, mas hoje em dia é Nêgamanda. Ela é uma super cantora e eu tive a oportunidade de conhecê-la em Niterói. Esse ainda não é o feat que quero com ela. Quero fazer outro feat para que ela possa explorar mais o canto. Ela participou do The Voice, Super Star e montou a banda Devir. Ela fez uma participação pequena, mas deu toda a profundidade que a música precisava.

Qual foi o papel de Rafa Dias nas escolhas musicais do EP?

O músico e produtor Rafa Dias

Rafa é um personagem fundamental para esse disco. Esse EP é nosso, é meu e dele, praticamente, porque eu faço a letra e ele foi responsável pela parte musical. Naturalmente, também contribuí com a parte musical, porque era meu trampo. De certa forma, tem que parecer comigo. Ele topou embarcar nisso e se permitiu experimentar outros caminhos, porque sempre procuram Rafa pra fazer pagodão ou uma música mais pop. Rafa é um cara de muitos conhecimentos. Fizemos duas turnês juntos na Europa. Ele sabe as referências que a gente tem dentro dessa multiplicidade. A gente consegue dialogar. A gente gosta de afrobeat, de rap, trap e pagodão. Estamos sempre trocando informações. Foi um privilégio, porque hoje ele trabalha com os maiores da música pop brasileira. O cara já produziu pra Anitta, Ludmila, Céu, Rael. Acabou de gravar com Léo Santana.

Gravou Zimininu com Rico.

Justamente, que é um trabalho muito foda, é o projeto deles dois. É isso, é uma pessoa que a gente confia e quer tá perto, porque da mesma forma que a gente gosta de música, ele também gosta, é aberto. Foi o cara que tinha que ser para o disco.

O que o álbum traz de Banco Central?

Jef Rodriguez no bar Flow, nova casa da música alternativa em Ilhéus || Foto PIMENTA

Eu sou um cara do interior, filho de dona Antônia com seu Florisvaldo, pessoas do campo, mas de lugares sociais diferentes. Meu pai era filho do dono da roça, minha mãe é filha do trabalhador rural. Eu sou esse ponto de encontro social, pai branco, mãe preta. Eu não tive a oportunidade de ser criado por minha mãe. Isso marcou muito a minha vida.

Ela foi pra onde?

Ela foi trabalhar como doméstica no Rio de Janeiro. A família do meu pai criou todo um contexto para criar a criança; meio que convenceu minha mãe e a família dela, porque tinha as melhores condições. Eu fui criado por meus avós por parte de pai. Minha mãe foi pro Rio e me via uma vez por ano. Às vezes, demorava 2 anos pra gente se ver, mas a gente sempre se falava por telefone, pelo menos uma vez no mês. Ligações caras, né?! Do Rio de Janeiro para Banco Central. Tanto é que eu trouxe minha mãe pra minha capa do disco. Ali, naquele lugar, a gente pode conviver pra sempre. A gente vai estar junto pra sempre naquela foto.

Onde ela está agora?

Ela está em São Paulo. A gente não teve a oportunidade de viver junto aqui, mas o fato de eu ter convivido com a natureza, com os pés no chão, de presenciar a festa junina do interior, de ter ouvido rap pela primeira vez ao mesmo tempo que comia jaca… Isso me aproximou de coisas essenciais pra vida, coisas que, de certa forma, em algum momento, a gente perde de vista, porque a vida na cidade tem muito o dinamismo do capital. Tudo gira em torno do modelo do capital. Claro que no interior e na roça também, mas as pessoas vivem outras pobrezas no interior. Na hora da fome, você pode ir no mato e pegar uma jaca – as pessoas só não querem que você toque no cacau. Na minha época era assim. E spiritual é o nome dado ao ritmo que antecede o blues, é a música que os pretos americanos cantavam para dar ritmo ao trabalho, enquanto trabalhavam no campo. Eu sou filho de dona Antônia e neto de Pedro José, pessoas que trabalhavam no campo pela condição de salário disponível. Meu avô sustentou a família inteira como trabalhador rural. Não consigo nem contar quantos tios e tias tenho. Então, tento retomar esses valores fundamentais. Quando a gente vê onde a cultura hip hop está hoje, ao mesmo tempo em que é mais abraçada pela indústria e é muito mais consumida, parece que alguns valores fundamentais se perdem nesse processo. Não sou a pessoa que vai gerar impedimento nenhum para a criação. Eu abraço o novo, mas o que considero ancestral é aquilo que permanece. O ancestral não é uma coisa só ligada ao passado, ancestral é o que permanece. Meu álbum tem coisas novas, moderníssimas, inspiradas na música pop nigeriana ou no trap, mas existem coisas ancestrais que permanecem. Esse é o link com o canto spiritual e o fundamento que tentei trazer para o trabalho.

Quem fez a capa? 

Mulambo. É um artista plástico muito foda. Foi meu colega no curso de Artes da Universidade Federal Fluminense. Ele topou fazer a capa. Pegou a foto e fez aquele trabalho. Eu achei aquela foto no álbum de fotografias da minha mãe.

O que sua mãe achou de aparecer na foto da capa?

Minha mãe gostou. Ela disse assim: “Esse seu disco agora vai estourar!”.

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