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Vá em paz, amigo. Leve consigo a minha gratidão. E a imagem inesquecível do abraço que trocamos, às 5 e meia da tarde, em Ferradas, no dia 24 de dezembro de 1989.
Recebo com imensa tristeza a morte de Ramon Vane. Todas as vezes que nos encontrávamos, relembrávamos um episódio especial que compartilhamos secretamente, por muitos anos, em nossas vidas.
Era Natal. Enquanto minha primeira filha, ainda muito pequena, aguardava pelo Papai Noel em nossa casa, eu tocava meu plantão na TV Santa Cruz.
A primeira pauta do dia me designava para cobrir uma triste realidade da nossa gente.
Ir até a periferia da cidade e ouvir as crianças que (sobre)viveriam naquele entorno, sobre o que representava aquela data e o que esperava daquela noite.
Conheci Jorge, sugestivamente morador de Ferradas.
Ao entrevistá-lo, eu cheio de dedos para não aumentar ainda mais a ferida que a vida lhe proporcionara, ouvi de uma criança de não mais de seis anos, uma frase que jamais consegui esquecer.
“Nunca vi Papai Noel, acho que ele não sabe o endereço daqui de casa. Queria muito uma bicicleta. Até tenho a sensação de que esse ano ele vem”.
Voltei para a redação com a sensação de culpa por ter reavivado um sentimento tão profundo numa criança, sabendo que, à noite, a realidade certamente não chegaria. Ouvia a todo instante a frase repetida na minha alma. E tomei uma decisão.
Na retomada das pautas, no turno da tarde, decidi me dirigir à residência do empresário Helenilson Chaves, então dono da emissora, e tentar uma conversa para ele.
(Aqui um parêntese: tenho uma admiração profunda por esta pessoa e ele sempre me tratou com um carinho especial enquanto estive na empresa dele.)
Mesmo estando recebendo, naquele momento, uma importante autoridade federal, ele não me negou a audiência.
Expliquei o que tinha se passado pela manhã.
Ele olhou nos meus olhos e me perguntou: você tem ideia de quantas crianças tem lá?
Respondi: umas cem. Rs
Ele pegou um pedaço de papel, fez uma anotação e me entregou. Era uma autorização para ir até uma loja de brinquedos e pegar bonecas e bolas e, claro, a bicicleta de Jorge, e fazer a entrega àquelas crianças sedentas por um gesto de carinho e de respeito. Todas seriam presenteadas.
Me pediu apenas uma coisa: que não revelasse quem assumiu financeiramente a iniciativa.
(Neste momento, peço a ele para quebrar um silêncio de mais de 25 anos, para justificar esta homenagem que faço a Ramon Vane.)
De posse dos brinquedos, um dilema. Quem seria Papai Noel que tivesse o endereço daquela comunidade tão esquecida?
Não pensei duas vezes. Um telefonema foi suficiente para convencer Ramon. Em menos de 15 minutos ele já estava na emissora, com uma roupa de bom velhinho “tamanho duplo” onde caberiam dois dele, com a determinação que o que mais importava naquele momento não era o estético, era ver um sorriso nos rostos sofridos dos esquecidos pelo sistema.
E assim terminamos o nosso dia. Entregando bonecas, bolas e bicicleta.
Oferecendo o bem-querer, alimentando almas de novos sonhos.
Obrigado, Ramon Vane, por me proporcionar um dos momentos mais inesquecíveis da minha vida.
Obrigado pelo abraço que trocamos silenciosamente naquele dia de natal.
Obrigado por me permitir chegar feliz em casa e, mesmo encontrando minha pequena dormindo ainda sem a chegada de Papai Noel, sorrir e acreditar que, ao encontro com pessoas como você, a gente pode acreditar num mundo melhor.
Vá em paz, amigo. Leve consigo a minha gratidão. E a imagem inesquecível do abraço que trocamos, às 5 e meia da tarde, em Ferradas, no dia 24 de dezembro de 1989.
Maurício Maron é jornalista e editor do Jornal Bahia Online.