O RECORRENTE MACHISMO DA LINGUAGEM
Num grande supermercado de Itabuna, encontro a mocinha em cuja blusa se estampa, em letras garrafais, a pergunta: “Posso ajudá-lo?” Não creio que possa, enquanto eu não souber qual é, de verdade, meu problema – mas tal questão de ordem metafísica pode ficar para mais tarde. Por enquanto, o que me desperta o interesse é a recorrente tendência machista da linguagem brasileira, lamentavelmente incentivada até por quem deveria combatê-la a ferro e fogo. “Ajudá-lo” supõe que a clientela seja masculina, quando esta, nos locais de compras em geral, constitui (segundo observo), minoria. “Posso ajudar?” é a fórmula correta que um banco utiliza há muitos anos, sem discriminar ou prestigiar gêneros.
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Discriminação apoiada pelas mulheres
O modelo de que se valeu o supermercado foi bolado por alguém sem sensibilidade ou conhecimento da língua portuguesa. Ou os dois. Não deve ser cômodo a nenhuma mulher dirigir-se a pessoa que pretende “ajudá-lo”, como se macho ela fosse. Mas parece que é moda a que as mulheres não reagem (mesmo que a presidenta Dilma tenha trabalhado em sentido contrário, feminizando os cargos femininos). Até no meio universitário, mais conservador do que se imagina, é comum dizer-se que a professora Fulana é “mestre” em tal disciplina. Um horror: mulher é mestra, reitora, vereadora, presidenta, generala, bacharela, coronela – o diabo (aliás, a diaba!). O resto é discriminação, ainda que apoiada pela ala feminina.
O BANCO RASO NUNCA FOI SÃO CAETANO
Dizem, mesmo sem pesquisa científica, tese ou dissertação acadêmica a tal respeito, que o Banco Raso possui o maior número de botequins por metro quadrado do território itabunense. Adiante-se que às vezes ele é confundido com o São Caetano, mas São Caetano não é, pois o Banco Raso nunca foi santo. E voltemos, rapidamente, ao que interessa, os botequins, na intimidade ditos “botecos”. Minha surpresa é ver num almanaque (o que seria desta coluna, se não fossem os almanaques?) que o termo vem do italiano botteghino, uma espécie de mercearia e que entre nós ganhou outro significado, bem distante daquele original.
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Filosofia, futebol e sexo dos anjos
Aqui, botequim vende, especialmente, álcool, nos seus diversos perfis. É lugar de encontrar pessoas, trocar ideias, jogar conversa fora, consertar o Brasil. Com mesas às vezes mal-ajambradas, costuma ser o ambiente ideal para curtir dores de cotovelo, começar novas amizades, avaliar a cultura nacional, discutir filosofia, futebol e o sexo dos anjos. “Refúgio barato dos fracassados do amor” (conforme a canção de gosto, este sim, barato), o boteco tem atraído as atenções da literatura: Jaguar fez Confesso que bebi , 2001, e Moacyr Luz, em 2005, publicou Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos.
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Vinícius: tempos ruins, uísque barato
No Villarino, Rio, 1956, copo de cerveja à mão, Tom Jobim foi apresentado a Vinícius de Morais, pelo jornalista Lúcio Rangel; o Anjo azul, em Salvador, abrigou a primeira exposição do argentino Carybé no Brasil (gostou tanto que ficou baiano!); em São Paulo, o Nick Bar, espécie de extensão do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) virou samba-canção, cantado por Dick Farney; Rubem Braga (foto), Heitor dos Prazeres, João Cabral de Melo Neto e Vinícius, em tempos difíceis, consumiam uísque barato no Vermelhinho, Rio; Paulo Leminski chegava ao Stuart, em Curitiba, às 10 horas, e começava a beber vodca e escrever, tendo ali criado famosa frase: “O Rio é o mar; Curitiba, o bar”. Histórias de botecos.
ORESTES E SEU QUASE MARTELO AGALOPADO
Letras de MPB: do simples ao barroco
Muitos outros autores da MPB atingem o mesmo grau de excelência de Orestes Barbosa: Noel, Tom, Vinícius, Belchior, Caetano, Antônio Maria, Gil, Paulo César Pinheiro, Dolores Duran, Cândido das Neves, Aldir Blanc, Chico Buarque – não há como esgotar a relação, pois riquíssima é a letra de nossa canção. Da simplicidade de Caymmi (“Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu”) ao barroco do misterioso Otávio de Sousa (com aquele coração “pregado e crucificado sobre a rosa e a cruz do arfante peito teu”), cada um pode fazer sua escolha, em meio a diferentes estilos e idades. Para mim, isso é poesia, pois tem o impacto estético da poesia.
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Versos que assustaram Sílvio Caldas
A letra de Chão de estrelas, apresentada a Sílvio Caldas em 1941, assustou o músico. Ele achou que era impossível o público aprovar versos tão sofisticados, decassilábicos, acadêmicos, coisa mais pra ser lida em livro do que ser cantada em serenata de balcão, janela e sacada. Mas foi convencido por Orestes a musicar tais versos e gravá-los. Fê-lo com tal competência que Chão de estrelas entrou para a história da MPB como o “Hino nacional dos seresteiros”, com mais de 40 regravações de artistas de variada estirpe, de Elizeth Cardoso a Roberto Carlos, de Nelson Gonçalves a Baden Powell, Carlos Alberto, Maurici Moura (acabou o espaço, voltaremos ao tema)… No vídeo, Maysa, pondo a alma em cada sílaba, como sempre.
O.C.