A forma preposicionada do verbo amar, aqui referida há dias, possui uma exceção muito nobre, que não foi citada. É que o Livro Sagrado dos católicos (no qual se esperava o respeito à regra de amar a Deus) abriga, em Romanos 9:13, esta joia de tradução: “Amei a Jacó, e odiei a Esaú”, palavra de Deus. A expressão, incompatível com um ser de infinita bondade, incapaz de abrigar o ódio (segundo os que Nele creem e O explicam), suscitou variadas interpretações. Destaca-se entre elas a do respeitado teólogo John Murray, no livro Romanos, resumida a seguir.
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“Sem malícia, perversidade ou vingança”
Para o exegeta (nascido na Escócia, em 1898), não se pode dar a esse ódio divino as mesmas características do ódio exercido pelo homem mau. “No ódio de Deus não existe qualquer malícia, perversidade, vingança, rancor ou amargura profanos”, diz o estudioso. Ele acrescenta que “o tipo de ódio assim caracterizado é condenado nas Escrituras, e seria uma blasfêmia atribuí-lo ao próprio de Deus.” E assim vão os crentes tentando explicar as profundas contradições do seu livro-texto, nem sempre com êxito. Voltemos, então, ao verbo, sem intenção de trocadilho.
Noel: “Jurei nunca mais amar ninguém”
Se Cartola escreveu “Não quero mais amar a ninguém”, ferindo a regra, e Pixinguinha foi pelo mesmo caminho, com “Amar a uma só mulher/ deixando as outras todas”, há exemplos do emprego “certo” do verbo: Noel Rosa (na charge de Pedro Thiago) grafou “Jurei nunca mais amar ninguém” e Dora Lopes (na voz de Noite Ilustrada) quase repete o Poeta da Vila, com “Jurei não amar ninguém”. Na poesia, abramos ala para a lusitana Florbela Espanca, que cultua a forma “clássica”: “Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: aqui… além…/ Mais este e aquele, o outro e toda a gente…/Amar! Amar! E não amar ninguém!”
Eu que (quem acompanha esta coluninha sabe) não sou chegado a tevê, recebi de uma gentil leitora a sugestão de dar uma olhada no comentário de Arnaldo Jabor (Jornal da Globo, 12 de junho). Encontrei a preciosidade nos arquivos do Google. Trata-se, todos sabem, de um cineasta (ou ex-cineasta) que se fez popular na última campanha presidencial, pelo uso que a direita faz do seu discurso raivoso. Desta vez, falando sobre as manifestações de rua, ele se superou. Juro a vocês que lhe vi a espuma a escorrer pela a gravata. Felicitando-me por ainda considerar a tevê uma “máquina de fazer doido”, anotei umas frases da fala do homem.
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“Revoltosos não valem nem 20 centavos”
Ódio puro: “No fundo, tudo é uma imensa ignorância política, burrice misturada a um rancor sem rumo”. Falso desconhecimento: “Se vingam de quê?” Brincando de ser inteligente: “A causa deve ser a ausência de causa”. Em defesa do interesse da Globo: “Por que não lutam contra a PEC 37?” A face da direita: “Esses caras vivem no passado de uma ilusão. Eles são a caricatura violenta da caricatura de um socialismo dos anos 50, que a velha esquerda ainda defende aqui”. A explosão final: “Realmente, esses revoltosos classe média não valem nem 20 centavos”. Depois perguntam por que a Globo estava na lista dos protestos.
Aos que me acusam de muito falar mal da mídia – alguns afirmam que caço erros, uma injusta inversão, pois são os erros que me perseguem – vai aqui o que pode ser uma surpresa: o signatário desta coluna é leitor de cabresto de um certo Ricardo Ribeiro, que no Pimenta publica, volta e meia, análises sobre o nosso conturbado viver quotidiano. O defeito do estilo de Ricardo está em não publicar com a frequência que eu gostaria. Ou não. Talvez essa falta de vocação para arroz de festa contribua para fazê-lo avis rara, ou vinho de safra incomum, trigo que se sobressai ao joio. Importa é que a linguagem clara, a lucidez do texto e a visão crítica do autor o levantam ao nível dos “clássicos” do jornalismo regional.
O nome é Abelin Maria da Cunha, apelido Ângela Maria, ex-vocalista de coro de igreja que, escondida da família, se apresentava em shows de MPB. Cantou durante quase 70 anos, de 1945 até hoje. E cantou tudo o que lhe caiu às mãos: o verso clássico de Ari Barroso e Noel Rosa, rimas ricas e indigentes, dores de amores derramados ou contidos, a deliciosa cafonice da “luz difusa do abajur lilás que nunca mais irá iluminar outras noites iguais”. Cantou famosos e anônimos, transformou desconhecidos em clássicos, foi de Capiba a Chico Buarque, de Dolores Duran a Paulo Vanzolini. Cauby Peixoto disse que com ela aprendeu a cantar os “finais” das canções. Elis Regina diz que deve a Ângela Maria ser cantora.
Vítima de roubo, agressão e humilhação
Discreta, Ângela não alardeia seus nove casamentos e que seus maridos a submeteram a humilhações, agressões físicas e prejuízos financeiros, quase a levando ao suicídio. No fim dos anos 60, em desespero, mudou-se do Rio para São Paulo, mas continuou sendo roubada, caindo ao estado de grande pobreza. Deu a volta por cima, com uma nova união, a décima (conviveu por 33 anos e casou-se em maio último). Diz que seu melhor amigo sempre foi Cauby Peixoto (ele já confessou ser apaixonado por ela – e que só não se casaram porque ele chegou “atrasado”, Ângela já estava casada). No vídeo, o depoimento de Elis Regina e o canto inconfundível da Sapoti (show da TV Globo, em 1980).
Os tipos mais conservadores, que querem tratar os movimentos sociais na pancada, uniram-se aos progressistas, em apoio ao Movimento Passe Livre (MPL), escancarando uma contradição. Coerente mesmo foram as PMs da Bahia e de São Paulo, fazendo o que é da sua tradição fazer: baixar o pau (v. charge de Simanca). Cientistas sociais e palpiteiros em geral estão incertos quanto ao que pretende a massa: vagamente, menos corrupção, mais educação (quase criei uma “palavra de ordem”), mais saúde pública, menos futebol, mais seriedade com o dinheiro público, menos safadeza… No atacado, todos aprovamos esta pauta, mas falta a ela o varejo, o foco concreto e claro.
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Movimento (ainda) simpático à direita Tem sido uma festa protestar contra tais coisas (e ainda a sogra chata, o vizinho ranzinza e o preço do tomate), mas não me divirto tanto. Entendo ser este um movimento de esquerda (se me permitem usar a velha classificação francesa, para mim ainda válida). E a direita não tarda a tratar essa turma como trata índios, sem-terra e semelhantes, todos incluídos na vasta lista de “baderneiros”. Por menos disso ela já derrubou um presidente e pôs o Brasil em “ordem unida” durante 21 anos, enquanto arrancava as unhas dos descontentes. Freado o aumento das tarifas, o MPL, ao voltar às ruas (espero que volte), deverá focar-se em um dos muitos problemas nacionais. COMENTE! » |
“DOR DE AMOR DÓI MAIS DO QUE BURSITE”
O verbo amar transitivo indireto (com a preposição “a”) foi, em tempo que longe vai, exclusivo jargão religioso. “Amar a Deus sobre todas as coisas”, está grafado na tábua. A gramática quer, em relação a coisas e pessoas, o verbo não preposicionado. Amar era também de uso menos extenso: homens amavam mulheres, mulheres amavam homens, homens e mulheres amavam suas mães, estas os amavam sem medidas… Os para-choques repetiam uma frase produzida por alguém de coração dilacerado (ou vítima de crônica subliteratura): “Amor só de mãe!” – ai que me embriago de tanta poesia! Compreende-se. Quem leu Rubem Braga sabe que “dor de amor dói mais do que bursite”.
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Velha calça desbotada ou coisa assim
Voltando ao amar transitivo direto, diga-se que ele foi “democratizado”. Amavam-se pessoas, hoje se ama praia, macarrão com queijo, sorvete de coco, carro novo, a velha calça desbotada e, de moto, ama-se o vento na cara. São modismos que o tempo nos traz: conheço uma jovem senhora que ama seu iPhone de recentíssima geração (será isto o chamado sexo virtual que nunca entendi?). A boa linguagem, pela qual poucos na mídia ainda se interessam, recomenda que se goste das coisas citadas acima, sendo vedado amá-las. Se, por acaso, alguém não sabe a diferença entre gostar e amar, que tente beijar uma máquina. Adianto-lhes que não funciona, a não ser que seja uma… “máquina”.
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Adoração ao arroxa e à batata frita
Cartola, em licença poética escreveu: “Não quero mais amar a ninguém…”, e caiu em “erro”, por usar a forma “religiosa” (“Não quero mais amar ninguém”, diz a norma). E quase tudo que foi dito vale para o verbo adorar, que igualmente nos remete à igreja. Adorar só a Deus e signos sagrados, era assim que era. Depois, o povo, que não está nem aí para gramáticas e gramáticos, mudou a regra. Hoje, com todo respeito, adora-se batata frita, novela de tevê, show de arrocha e de dupla “caipira”. Pelo sentido “clássico” do termo, tem-se a ideia de que o maluco se ajoelha diante do pacote de fritas e também genuflectido assiste à novela das nove. Medonhos tempos, estes.
As ruas nos falam de dados momentos, lembranças que ficaram. “Se essa rua fosse minha/ eu mandava ladrilhar/ com pedrinhas de brilhante/ só pra ver meu bem passar”, diz o antigo frevo Vassourinhas. Antônio Maria (“o bom Maria”, como o chamava Vinícius, seu colega de quarto), morando no Rio e, ferido de saudades da terrinha, abre seu Frevo nº 3 dizendo: “Sou do Recife, com orgulho e com saudade”, para depois introduzir “Rua antiga da Harmonia,/ da Saudade, da Amizade e da União…/ São lembranças noite e dia”. Em poucos versos, quatro ruas de nomes sonoros, que mexem com os sentimentos da gente: harmonia, saudade, amizade, união. _______________
Machado de Assis fala das ruas do Rio
Meu endereço em Buerarema era Manuel Vitorino, 6 (esquina com Siqueira Campos) – mania que as pessoas têm por vultos estranhos à cidade. Isso mudou um pouco. Já temos na antiga Macuco as ruas Paulo Portela, Manuel Lins, Pastor Freitas – personagens locais e já mortos, comme il faut. Mas eu queria falar era do fascínio que os nomes de ruas exercem sobre mim e, pelo que vejo, em vários autores. Lembro aqui de três deles, tocando o tema: Machado de Assis, Antônio Maria e Alceu Valença. Nos contos de Machado é possível saber muito do velho Rio, pelas ruas que o mestre cita: Larga de S. Joaquim, da Alfândega, do Lavradio, da Quitanda e, naturalmente, do Ouvidor.
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Um amor que sumiu nas ruas do Recife
“Sob uma chuvinha miúda, triste e cortante, como no enterro de Brás Cubas, o menino passeia sua melancolia por estas ruas que, transeuntes apressados sequer suspeitam, lhe pertenceram um dia. E chora as mudanças: mudou a cidade, mudaram os tempos, mudou ele, que ficou depressivo e meio adulto, morreu de velha a caramboleira, silenciaram os sabiás e bem-te-vis da infância que se foi” (Antônio Lopes: Luz sobre a memória – Agora Editoria Gráfica/1999). Perdidão da Silva, Alceu Valença parece procurar seu amor sumido nas ruas do Sol, da Aurora, da Matriz, das Ninfas, da Boa Viagem, da Soledade – mas como sempre acontece em casos semelhantes, o esforço é vão.
Nomes próprios seguem a norma ortográfica, não podem ser criados como “marcas” de empresas em agência de propaganda: Anna, Manoel, Luiz, Moraes, Antonio, Helio e outros são invenções dos cartórios (e dos pais), que não devem ser seguidas. Ana, Manuel, Luís, Morais, Antônio e Hélio são as formas corretas, fixadas em 1943 e revistas em 1955. Com o Acordo Ortográfico (oficiosamente em vigor), que unifica as escritas de países lusófonos, criou-se uma dificuldade extra. As palavras Antônio, patrimônio, tônico, Amazônia, Sinfrônio, anatômico e semelhantes não foram, no Brasil, alcançadas pela mudança. Continuamos a grafar esses termos com acento circunflexo, não agudo, como em terras d´além-mar.
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Se houver dúvida, consulte Nascentes De todas as invenções com nomes próprios, talvez a mais notável delas seja Moraes (Vinícius usava esta curiosa variante). Segundo os (bons) linguistas, a forma citada é estranha à nossa língua, uma alteração desnecessária de Morais. Para o filólogo Antenor Nascentes (1886-1972), referência nestas questões, quer se veja a origem no substantivo amoreiral, quer no adjetivo moral (no plural: amoreirais e morais), nunca se chegaria a moraes. Por coerência, teríamos de grafar pardaes, geraes, normaes, banaes, canaes – e por aí segue o lamentável andor da ignorância. Prudente de Morais é município mineiro grafado com respeito à língua; no Rio, Trajano de Morais é outro exemplo. ______________ Prefeitura troca o certo pelo errado No Rio, a Rua Vinícius de Moraes (antes, Montenegro) cruza com a Prudente de Morais, criando-se a situação insólita de uma palavra com duas grafias. Resta dizer que a Prudente de Morais, por ter cerca de dez travessas, possui aproximadamente 40 placas, enquanto a Vinícius (que só a cruza uma vez), tem apenas quatro placas. Diligente, a prefeitura, ao perceber essa insensatez ortográfica, apressou-se em unificar as escritas. Alguém adivinha a solução encontrada? Trocou as 40 placas do presidente para Moraes, quando mais fácil e correto seria trocar as outras quatro para Morais. O curioso relato está em A imprensa e o caos na ortografia, do filólogo Marcos de Castro. COMENTE! » |
ESSA GENTE PATÉTICA QUE PROVOCA RISO
Ao ver certas pessoas impadas de vaidade, estourando de empáfia por possuírem fama e fortuna (ou, por mecanismos que não alcanço, se acharem “superiores”), me rio por dentro. Acho-as patéticas na sua megalomania, e procuro situá-las no meio em que vivemos. Soube que nosso universo (não este, paralelo, mas o convencional) possui cerca de 200 bilhões de galáxias, sendo a Via Láctea, onde estamos, uma delas. Teoricamente, se a nossa “estrada de leite” (do latim via lactea) não existisse, o universo nem ia perceber, pois lhe sobrariam ainda 199.999.999.999 “mundos” possíveis. Há outras razões para essa gente baixar a bola: o nosso simpático “caminho de leite” é uma galáxia pequena.
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Decadente, o sol tem os dias contados
Somos “apenas” uma centena de bilhões de estrelas, o que é pouco, em comparações macrocósmicas. Lembrar que entre esses bilhões de pontos luminosos encontra-se o Sol, que também não está com essa coca-cola toda, uma estrela decadente, com os dias contados. Há alguns anos, humilhado, ganhou a classificação de estrela… anã. É uma estrelinha de quinta categoria, em torno da qual giram a Terra e outras oito planetas, um conjunto condenado a desaparecer. Feliz ou infelizmente, a gentil leitora e o atento leitor certamente não assistirão a le grand finale, que ocorrerá daqui a muito tempo – os cálculos, imprecisos, variam de 3 bilhões a 50 bilhões de anos.
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O criador a serviço da criatura
Todos conhecem pelo menos uma pessoa tão enfatuada que imagina ter Deus, Oxalá, o Big Bang ou alguém mais criado o mundo para o deleite pessoal dela. O dinheiro e a cor da pele, o status social conquistado ou herdado e a escola que cursou justificam, perante tão tacanha mentalidade, o orgulho, a presunção, a vaidade e a soberba que exala. Ignora esse indivíduo ser nossa espécie (a homo sapiens) apenas uma entre mais de 30 milhões, das quais há apenas umas 10% classificadas. Antes, pensou-se que a Terra era o centro do universo; hoje, há gente que pensa ser o centro da Terra (texto baseado no delicioso livro Qual é a tua obra?, do professor Mário Sérgio Cortella).
Num recanto da vasta internet descubro, com alegre surpresa, a ubaitabense Ceres Marylise Rebouças, dona de texto poético que a equipara aos grandes da área. Leio e ouço a vice-presidenta da Academia de Letras de Itabuna (Alita), em bemóis e sustenidos montados e cantados em CD do músico Roque Luy – e no mais adequado andamento: em tempo de forró, que passo adiante, pois o São João já nos bate à porta. O lirismo da poetisa (“Se eu soubesse do seu sonho, passarinho… Pelas paisagens do meu rosto e no caminho… Verdes prados nos meus dedos… Pés descalços cuidadosos no teu ninho”) é antídoto contra os forrós “universitários” e semelhantes que nos azucrinam. _______________
Aprovação de Afonso Romano de Sant´Ana
Com a gaveta cheia de poemas, Ceres Marylise, professora universitária aposentada, não tem conseguido organizar o livro que nos está devendo: o tempo é tomado pela Alita, cujo site ela montou e administra. Em compensação, sua poesia vai integrar uma antologia feita por ninguém menos do que Afonso Romano de Sant´Ana, a sair no fim do ano. Além de saber tudo sobre poesia e design gráfico, ela esbanja inesperadas habilidades, como jogar tarrafa (reminiscência da infância banhada pelo Rio de Contas), pegar pitu em loca de pedra, cozinhar e tocar violão. Roque Luy musicou e gravou ainda os poemas Butterfly, Moonlight e Musa companheira, incluídos no mesmo CD.
Adianto ao respeitável público, sem que ninguém me haja interrogado, que me sinto um sujeito intrinsecamente pobre de imaginação, desses que se divertem trabalhando. Tivesse eu algum apreço pelo exagero e os anglicanismos, me identificaria como workaholic. Dizem que trabalho e diversão não se misturam, que isto é um desvio patológico, com o doente, isto é, o indivíduo usando o labor como refúgio do mundo, forma de estar confortável, protegido, com sentimentos afogados – sei lá, esse papo de psicólogo. Minha intenção não é discutir doenças da cuca, mas especular sobre os motivos de tanta aversão ao trabalho. Círculos religiosos o explicam como castigo para “pecado” de longínquos ancestrais.
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Sentença dúbia: “comer pão com suor” Com aquela não bem explicada trapalhada no Paraíso (homem chamado Adão, mulher chamada Eva e Cobra anônima), a divindade, que nesta parte do Livro não é muito chegada a perdoar, os condenou, sem direito a apelação: a mulher às dores do parto, a serpente à mudez (para nunca mais dar ideia de jerico à mulher) e o homem ao trabalho. “Vais trabalhar, vagabundo!” – teria pensado o Senhor, mas decidiu dar elegância ao texto, ornou-o com os devidos eufemismos e chegou a “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto”. Sentença bonita, mas merecedora de embargo, por ser dúbia: o crente pode ser levado a comer pão embebido em suor. Enfim, esta seria uma das origens da má fama do trabalho. ______________ Por aqui, trabalho era “coisa de pobre” Há explicações mais eruditas: trabalho viria do latim antiquíssimo tripalium, um instrumento de tortura (três paus, formando uma estranha canga no pescoço do infeliz). De tripalium nasceu o verbo tripaliare (pôr no tripalium) e desse meio macabro veio… trabalhar! Portanto, trabalho e tortura têm a mesma origem suspeita. Mais tarde, com a escravidão (não ainda a nossa, mas a greco-romana), solidificou-se a ideia de que pegar no pesado não é negócio pra gente socialmente “bem”. Ao contrário, é atividade imoral, indecente, coisa de pobre, no mínimo. No Brasil, a escravidão manteve esse olhar – e o coronelato do cacau também, para cujos filhos, em geral, trabalhar era desonra. COMENTE! » |
OS SAPATOS DE SOFIA DESCERAM A ESCADA
Dentre os contos de Machado de Assis (todos sabem que ele foi um mágico criador de estórias) destaco aqui “Capítulo dos chapéus”, pela habilidade com que o autor emprega certa figura de estilo (seria prosopopeia, metonímia, quem souber que o afirme). Primeiro, ele nos avisa que “os tacões de Sofia desceram a escala, compassadamente” – um toque de mestre: um aprendiz diria que Sofia desceu a escada; para Machado, “os saltos” desceram a escada, e com isso ele deixa claro que surgiu uma Sofia arrumada, produzida. Fala do chapéu, “que lhe dava um ar senhoril”, e arremata: “um diabo de vestido de seda preta, arredondando-lhe as formas do busto, fazia-a ainda mais vistosa”.
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Da rua, chapéus estão de olho na moça
Eis Sofia encantadora, “vistosa”, descrita com economia de palavras. Mas o melhor vem quando ele explica que “os chapéus, de senhora ou de homem, abundavam àquela hora na Rua do Ouvidor”. Depois de substituir Sofia por tacões, ele troca homens e mulheres por chapéus. Mariana, a outra personagem do conto, está confusa “naqueles mares” da Ouvidor, com tanta gente, onde “os demônios dos chapéus, femininos ou masculinos, sucediam-se como um caleidoscópio”. Mais tarde, no dentista, a pobre Mariana, tenta umas três vezes ir à janela, “mas os chapéus eram tantos e tão curiosos, que ela voltava a sentar-se”. Nenhuma frase grosseira, apenas “chapéus” que espreitavam a moça. Isto é Machado de Assis!
Valioso recurso de linguagem (“figura”, diz a gramática) é a comparação, de que muito gosto. Raimundo Correa usou-a, ao confrontar as pombas – que levantam voo quando “apenas raia sanguínea e fresca a madrugada”, mas, à tarde, retornam ao pombal – e os sonhos da juventude – que “no azul da adolescência as asas soltam”, mas, ao contrário das pombas, “não voltam mais”. E que a gentil leitora não me surpreenda, dizendo que não conhece As pombas (sem trocadilho infame). Manuel Bandeira se vale do mesmo recurso em poema famoso, que mereceu de Jorge Medauar, poeta uruçuquense (ele preferia água-pretense), curiosa e bela “resposta”. _______________
Medauar: verso é instrumento de luta
Em Desencanto, com postura que sabe a depressão (o que, aliás, lhe é comum), Bandeira escreve na primeira quadra: “Eu faço versos como quem chora/ De desalento… de desencanto…/ Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto”. Poeta socialista, engajado no processo de transformação, Medauar (foto) “responde” com Esperança: “Eu faço versos como quem luta/ De armas em punho… de armas nas mãos…/ Forma ao meu lado, pois na labuta/ Os companheiros são como irmãos”. Ao último verso de Bandeira (“Eu faço versos como quem morre”), Medauar contrapõe “Eu faço versos como quem vive”. Touché!
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Rio de passagem de menina para mulher
Em O xote da meninas, o pernambucano Zé Dantas (1921-1962), segundo grande letrista de Luiz Gonzaga (o primeiro foi o cearense Humberto Teixeira), compara, liricamente, o mandacaru e o rito de passagem para a adolescência. Quando o cacto floresce, vem a chuva; quando a menina “enjoa da boneca”, desabrocha em moça. Gosto de pensar que Zé Dantas, médico, bebeu no consultório esse conhecimento da psicologia da menina que parece “adoentada”, mas que, de verdade, tem dentro de si o grito da natureza forçando a saída. Se almas sem poesia não percebem quão bonita é a mudança da menina em mulher adulta, não será culpa deste outonal colunista.
O jornal A Tarde, que abriga de Hélio Pólvora uma saborosa crônica todos os sábados (aos domingos, um artigo), revelou à distinta torcida baiana outro cronista de indiscutível qualidade, também aos sábados, que não perdoo, leio. Chama-se Jânio Ferreira Soares (foto) este artista da palavra, capaz de dar leveza e lirismo aos assuntos mais áridos. O gênero tipicamente brasileiro – que tem em Machado de Assis um mestre consumado – viveu dias gloriosos na segunda metade do século passado, com Fernando Sabino (1923-2004), Rubem Braga (1913-1990) e Paulo Mendes Campos (1922-1991), dentre outros. Em Hélio e Jânio a crônica literária se renova.
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Bom humor e longevidade “Não sei até que ponto o bom humor das pessoas tem a ver com a sua longevidade, mas tenho pra mim que aqueles que não se levam muito a sério e conseguem rir de si mesmos têm mais chances de receber alguns anos de acréscimo, mesmo depois de esgotado o tempo regulamentar. Agora, aqueles que levam a vida como se ela fosse uma espécie de pós-graduação para algum NBA celestial e agem como se os problemas do mundo dependessem de suas performances de vendedores de Delta Larousse, aí já não sei. Se o juiz for dos meus, é cartão vermelho antes mesmo que a primeira frase de Paulo Coelho saia de suas bocas” (Jânio). ______________ Amigos mudos, fiéis e silenciosos “Livros esperavam, mudos, na escrivaninha de tampos de prata. Estavam sempre lá, sabiam que cedo ou tarde seriam tomados, abertos, lidos. Os amigos permanentes. Os amigos mudos e fiéis. Sobretudo, os amigos silenciosos. Sempre a mesma mensagem: não mudavam de ideias, com eles não havia jogo duplo. Uns traziam estampas. Outros, sem ilustrações, convocavam mais o imaginário. As palavras do texto formavam desenhos perfeitos na imaginação, a donzela aparecia em retrato luminoso, as descrições da natureza é que mudavam um pouco para receber bosques de cacaueiros, ingazeiras e jindibas” (Hélio, no traço de Ramon Muniz). COMENTE! » |
AS LOURAS E A LEI DA OFERTA E PROCURA
“Os homens preferem as louras”, alardeava o filme de Howard Hawkins/1953, com as incendiárias Marilyn Monroe e Jane Russell. Dizem os estudiosos de temas difusos que se trata de fenômeno típico da economia, a lei da oferta e procura: como há poucas louras (cerca de 2% das mulheres do mundo), elas ficaram “valorizadas”. Se acham. E estão aí as morenas comprovando a tese: o número destas que se enlourecem é muito superior ao das louras que escurecem os cabelos (e aqui o maldoso leitor vai querer que eu explique como atestar a “autenticidade” de uma loura – mas eu me recuso, pois esta coluna é mais familiar do que pensão do interior). A julgar pela MPB, que reflete bem a nossa cultura, o brasileiro prefere as morenas.
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Fahel canta a morena do Rio Vermelho
De cara, lembro-me da morena boca de ouro (de Ary Barroso), da morena “desse amigo meu” me dando bola (Luiz Ayrão) e do apelo de Alceu Valença: “Morena tropicana eu quero teu sabor” (e quem não quer!). Paulinho da Viola fala de uma morena faceira (que) mexeu as cadeiras (e) “foi um desacato”, Tom Jobim diz que “a morena vai sambar, seu corpo todo balançar…”, o ilheense Oswaldo Fahel canta a morena bela do Rio vermelho, Caymmi fala de uma Rosa, morena, com andar de moça prosa, Ary encontrou a morena “mais frajola da Bahia” – e Jota Sandoval apela: “Ai, morena, deixa eu gostar de você!…” Falta Noel Rosa, mas, antes, abramos espaço para as louras, que elas merecem.
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Loura é perfume, sonho, poema e flor
Para Hervê Cordovil (cantado pelo inesquecível Dick Farney), uma loura não é pouca coisa: “frasco de perfume, aroma de flor, espuma fervilhante de champanhe, sonho e poema”. Braguinha, animando a festa: “Lourinha, lourinha/ dos olhos claros de cristal/ desta vez em vez da moreninha/ serás a rainha do meu carnaval”. Noel, grande morenófilo, fez Morena sereia (que se senta na areia e “deixa a praia cheia”) e pediu ao sol que não saísse, “pois as morenas vão logo embora”. Depois, comparou: “Esta morena/ cheia de beleza e graça/ é o símbolo da raça/ cor de leite com café./ E esta loura/ nunca foi nem é meu tipo/ perto dela eu me arrepio/ de tão fria que ela é”. Exagerou.
É provável que a gentil leitora e o amável leitor já tenham cantado, por divertimento ou castigo, “O meu chapéu tem três pontas/ tem três pontas o meu chapéu/ se não tivesse três pontas/ não seria o meu chapéu…”, canção com que eu costumava “ameaçar” minhas filhas: ou se comportar direito ou cantar “o meu chapéu tem n pontas…” A musiquinha recomeça a cada fim da quadra: depois de 475 pontas, meu chapéu passa a 476 pontas e por aí vai, num conjunto infinito. O “castigo” funciona até o dia em que a criança descobre que nossa paciência vai se esgotar antes da dela – e então somos nós a lhe implorar que pare com essa tortura em tom maior. É o feitiço contra o feiticeiro. _______________
Música é mistério, magia inexplicável
Mas é possível que nem todos saibam que a detestável canção popular origina-se em “Carnaval de Veneza”, mui celebrada peça do genovês Niccolo Paganini (1782-1840). Carnevale di Venezia, Opus 10 (no original, em italiano) é amada principalmente pelos violinistas, que costumam tê-la em seus catálogos de apresentação. Até aí, nada de novo. Novidade para mim foi ver a vetusta Boston Pops Orquestra, com seus solistas a rigor, tendo à frente um dos maiores trompetistas do mundo, a executar, todos cheios de responsabilidade, “O meu chapéu tem três pontas”. Por essas e outras, vejo na música, eu que não sou músico, um quê de milagre, de mistério, de inexplicável magia…
O poder da comunicação torna o Brasil pequeno e quase o faz perder o sotaque. Como a tevê, principal influenciador nessa mudança, nos remete diariamente os falares do leste, estes já se fazem sentir no nordeste, de forma avassaladora. Por aqui poucos dizem, como se dizia há meio século (para ficarmos em exemplos “culinários”) badéjo e grélha, mas badêjo e grêlha. Dia desses, ouvi a moça de um telejornal de Itabuna pronunciar futêból, um falar de paulista mal informado – todos sabem que a pronúncia nacional é algo próximo a futibol. Tais escolhas poderiam, no máximo, ser consideradas regionalismos, mas nunca ser aceitas como norma geral.
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Dicionários só registram, não avalizam Para o bem ou para o mal a língua se forma nas ruas e nos becos, não nos gabinetes e salas de aula. Daí, quando essa pressão “popular” se torna forte, o termo se consolida, os dicionários o abrigam – e, consequentemente, lhe conferem identidade “legal”. Mas é importante lembrar que dicionários são repositórios de palavras existentes, sem avalizá-las ou recomendar seu uso. No caso dos verbetes badejo e grelha os dicionários se renderam à realidade das ruas: antes, os grafavam tendo o “e” com som aberto, hoje usam as duas formas. Logo, se você quer perder o DNA de nordestino, esteja à vontade para pedir badêjo na grêlha (argh!). COMENTE » |
BREVE ANEDOTA DE CANDIDATO A PREFEITO
A quem pretenda escrever sobre o folclore político de Itabuna (creio que existe mais de um projeto em gestação) adianto esta, sem custos: em 1966, José Soares Pinheiro, o Pinheirinho, disputava com José de Almeida Alcântara a eleição de prefeito do município. Líder conservador muito conceituado, rico, não era páreo para o populismo de Alcântara (que o derrotaria por pouco mais de mil votos). Sua fama “elitista” foi aumentada pelo boato de que alguém lhe falara da necessidade de ir à Califórnia e ele respondera que seu passaporte estava vencido. Queriam dizer que o candidato sequer conhecia os bairros de Itabuna. Pura maldade, já se vê.
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“O Califórnia” é bobagem das grandes
Se fosse nestes anos 2000, a anedota não prosperaria, pois o assessor, moderninho, teria proposto ao candidato visitar “o Califórnia”, como muita gente diz por aí. É bobagem da grossa. O uso consagrou a forma feminina, de sorte que dificilmente se encontrará neste abandonado burgo de Tabocas alguém do povo a dizer “eu moro no Califórnia” (e sim na Califórnia). Da mesma forma se diz “o ônibus da Califórnia está atrasado”, “o lixo se acumula na Califórnia”. Creio que foi em 2004 que se criou o Grupo Amigos Comunitários da Califórnia, dedicado a ações sociais no bairro. E começou bem, pois não tentou reinventar a linguagem.
Venho da longa noite dos tempos, quando quem escrevia em jornal era jornalista. Convivi com os grandes nomes da imprensa regional da época, dos quais destaco, com saudade e gratidão, Telmo Padilha, Milton Rosário e Myrtes Petitinga. Com eles dividi o cinzeiro da redação (então, fumar não nos fazia criminosos). Telmo teve vitoriosa carreira de escritor e Milton (poeta inédito) se dedicou também ao rádio (foi responsável, com Gonzalez Pereira, Lucílio Bastos, Alex Kfoury e outros pelo melhor período da Rádio Difusora); Myrtes Petitinga era, avant la lettre, multimídia: dominava as linguagens de jornal, rádio e publicidade, além de saber muito de música. Para má sorte dela, a tevê não existia. Se existisse ele faria – e bem. _______________
“Profissional” é quem vive da profissão
Hoje, bacharel em comunicação chama-se comunicólogo, enquanto a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) se digna de reconhecer como “jornalista profissional” apenas quem tiver o diploma universitário específico. Foram-se os tempos, foram-se os termos. Jornalista profissional, conforme aprendi e professo, é quem atende a três condições: 1) escreve em veículo de comunicação (seja jornal ou outro); 2) faz isto como rotina (não vale matérias eventuais) e 3) é remunerado por essa atividade. O conceito de “profissional” nasce da noção de pagamento pelo trabalho. Quem escreve de graça (salvo a exceção de ser dono do veículo) pode até ser considerado jornalista profissional pela Fenaj, mas não pela ética.
Ouvi Nuvem negra, de Djavan, pela primeira vez, no programa de Jô Soares (com Gal Costa) e, emocionado, vi ali a minha cara. Uma espécie de hino à solidão, um canto à misantropia, o retrato dos que gostam de ficar sós. “Não vou sair,/ se ligarem não estou”, diz o poeta – acrescentando um verso fundamental, que dá a seu isolamento um quê de eternidade: “À manhã que vem, nem bom-dia eu vou dar”. Mas, como todo bom texto, Nuvem negra se abre para mais de uma leitura, revelando-se, ao final, uma canção romântica: “Esse amor que é raro/ e é preciso/ pra nos levantar/ me derrubou/ não sabe parar de crescer e doer”. Não é um grito de solidão, mas de paixão.
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Linhagem: joão, miúcha, chico e sérgio
Se fosse para definir Bebel Gilberto numa palavra, eu diria: pedigree. Nada melhor me ocorre para resumir alguém que tem João Gilberto como pai, a mãe é Miúcha e o avô é Sérgio Buarque de Holanda. E é sobrinha de Ana de Holanda, Cristina e um certo Chico Buarque. Mais pedigree, impossível. Bebel é precoce, também devido a suas origens: antes de completar nove anos já se apresentara no Carnegie Hall, com Miúcha e Stan Getz, e já participara de musicais infantis, levada pela mão do tio Chico. A estreia como profissional se deu aos 20 anos (1986), com o disco Bebel Gilberto, em que a filha de João interpreta canções dela, Cazuza e Roberto Frejat. Aqui, sua leitura de Nuvem negra.
Por e-mail, questionam-me sobre a diferença entre plágio e citação, dúvida que para mim tem quase a idade do ovo e da galinha. Fazendo árbitro o dicionário, fica fácil: plágio é cópia ilegal, apropriação indébita da produção de outra pessoa, coisa sorrateira, sub-reptícia; já a citação exige remessa à fonte, creditando-se a autoria, tudo dito e feito às claras. Mas essa abordagem lexicográfica não satisfaz à consulente (ops!), e a mim muito menos: no escrever, é frequente a referência a outros autores, sem citação de fonte, e que não é plágio, mas homenagem. Certas expressões se tornam de domínio público, a exemplo de “ajuda luxuosa”, “se a montanha não vai a Maomé…”, “última flor do Lácio”…
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“Sou apenas um pobre homem de Itabuna” No belo poema “Cacau, canto, clamor”, do livro Poesia reunida e inéditos, Florisvaldo Mattos escreve sobre a ascensão e queda da agricultura regional: “…livres de turbantes, burkas e sandálias,/ outros mais, mais outros, enfim dezenas,/ vieram, por desejo de erguer e construir/ o que a alma na carne gravara como dívida”. É evidente a citação de “As pombas”, de Raimundo Correia (em itálico) – e eu, de propósito, citei Ascensão e queda do terceiro reich, de William Shirer. Hélio Pólvora, um dos poucos para quem vale o lugar-comum “dispensa apresentação”, costuma autointitular-se “apenas um pobre homem de Itabuna” – Eça de Queirós (1845-1900) se disse “apenas um pobre homem de Póvoa de Varzim”. _______________ Voltaire é citado em diário de Itabuna Em artigo recente em importante jornal diário, o autor diz que o povo de Itabuna não vive “no melhor dos mundos” – empregando, bem, uma expressão tirada de Voltaire (1694-1778), em CândidoouO otimismo. Machado de Assis, com sua vasta cultura, usou muito a citação, às vezes em língua estrangeira: Et nunc et semper (do latim, “nunca e sempre”), no conto O anel de Polícrates, é de São Mateus, 5:9; “… como a esposa que desce do Líbano”, no conto Último capítulo, vem do Cântico dos Cânticos. E é impossível não lembrar que Hemingway tirou do livro de Salomão um dos títulos mais importantes da literatura mundial: O sol também se levanta. A citação, sobre ser prova de conhecimento e bom gosto, é homenagem ao citado e ao leitor perspicaz. COMENTE! » |
(ENTRE PARÊNTESES)
É impenetrável o raciocínio da chamada nova direita brasileira: enquanto cerca de 96% dos crimes são cometidos por bandidos adultos, ela se preocupa com o potencial de 3-4% representado pelos menores. Daí, prega que, ao reduzir a maioridade penal (e fechar os olhos aos criminosos engravatados, fardados, togados, nomeados ou concursados), reduz a criminalidade. Combater o crime tornando adultos os marginais infanto-juvenis me lembra a anedota sobre o cara que encontrou a mulher (lá dele!) no sofá, em intimidades com Ricardão. A gentil leitora e o atento leitor sabem como ele resolveu o problema: vendeu o sofá.
No ano passado, um deputado inglês, em palestra na Universidade de Oxford, chamou a atenção sobre “como ter pouco conhecimento é perigoso”. Isto não quer dizer que nos devemos transformar todos em sábios, como num passe de mágica, o que seria impossível; mas que precisamos aprofundar um pouco mais nossas informações, se queremos sair por aí dando opinião. Sobre Hugo Chávez, por exemplo (o tema da palestra do parlamentar), se um indivíduo disser “não sei quem foi”, será um alienado; se disser “foi um ditador da Venezuela”, entrará para a lista dos que alardeiam conceitos tomados de empréstimo, talvez ouvidos em algum telejornal. _______________
Como o “inocente útil” se faz perigoso
O alienado não influi nem contribui, é um inocente inútil; o outro, também inocente (mas útil), é perigoso, pois anda a espalhar “verdades” sob encomenda. É por esse caminho do “pouco conhecimento” que elegemos candidatos inadequados (para empregar um eufemismo) ou transformamos em herói qualquer pessoa que, a exemplo do jurista Joaquim Barbosa, desempenhe razoavelmente bem suas funções. Tentei evitar Brecht, mas não pude: “Triste do povo que precisa de heróis”. A ideia de fazer de JB presidente da República seria hilariante, se não fosse infeliz. Mas eu confesso que gostei quando ele disse que os três maiores jornais brasileiros são “mais ou menos” de direita. É óbvio, mas me fez bem ouvir.
Nenhuma lista (relação, antologia ou coisa que o valha) é inquestionável, pois sempre reflete a opinião de quem a fez. Mas isto nunca foi obstáculo para quem gosta de listar os “melhores” (ou “maiores”) de qualquer coisa. Veículos de imprensa do mundo inteiro andam, às vezes, por esse caminho, e eu, confesso, gosto de ler tais seleções – que me dão o pensamento médio dos outros. Em 2009, a Folha de S. Paulo reuniu dezesseis críticos, pesquisadores e compositores, para escolher as melhores músicas caipiras de todos os tempos. No topo da lista, como melhor de todas, ficou Tristeza do Jeca, de Angelino de Oliveira (1888-1964) – compositor paulista nascido em Itaporanga. _______________
Com 95 anos, parece novinha em folha
Tristeza no Jeca nasceu a 24 de maio de 1918, cantada em público pela primeira vez, pelo autor. Conta, portanto, 95 anos, e parece novinha em folha. Teve gravações de diversos artistas, antigos e novos, caipiras e “caipiras”, mas o registro fundamental é da dupla Tonico e Tinoco. A canção se baseia no livro de Monteiro Lobato, Urupês, que deu vida longa a Jeca Tatu, o tipo rural infeliz e doente, típico brasileiro excluído, morador dos grotões da Pátria. Aqui, a interpretação de Paula Fernandes, ao lado de Sérgio Reis e Renato Teixeira. A gentil leitora, exigente, questionará se a bela Paula já cursou ao menos um semestre de violão; o leitor, de olho rútilo, não questionará nada.
Recebi o belo trabalho da Solisluna Editora/2012, Um século de jornalismo na Bahia, indispensável para quem quiser conhecer a história baiana, tendo como pano de fundo o matutino A Tarde. Curioso, colhi várias expressões referentes ao velho jornal, e que aqui exponho: … feição principal d´A Tarde, … editando A Tarde, … o fundador de A Tarde, … na sua sala em A Tarde, … estreia de A Tarde, … primeiro decênio de A Tarde, … anunciou A Tarde, noticia A Tarde, … registra A Tarde, … dedicou A Tarde, … matéria de A Tarde – e, para encerrar a lista, a manchete principal de 25 de novembro de 1957, sobre a morte de Simões Filho, tratado como … fundador de A Tarde.
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Comer o salsinha e estudar no Piedade “E por que essa procura aparentemente insana?” – indagariam, em uníssono, a gentil leitora e o atônito leitor. Pois eu lhes explico, em feitio daquele psicanalista tido como vienense, mas que nasceu na Checoslováquia: eu procurava, em tão alentado volume, alguma coisa que justificasse chamar a veneranda publicação de “o A Tarde”, conforme vejo (e me arrepio!) com frequência na mídia regional. Não sei de onde vem a invenção, mas de A Tarde, com certeza, não é. Chamar o A Tarde (ou o A Gazeta, o A Região, o Folha de S. Paulo) remete à anedota do alemão que diz “o salsicha”. Já contei aqui: vi jornalista tratar o Instituto Nossa Senhora da Piedade como… o Piedade. Pode? _______________ Não mais se pode resistir aos bárbaros Ao encerrar esta coluna, surpreendeu-me uma estranha chamada de primeira página (que eles agora chamam de capa!) no referido diário: “Em entrevista ao A Tarde, o deputado federal e ex-boxeador Popó…”. Em suma, gastei tempo e latim para demonstrar meu respeito pelo velho jornal, enquanto seus jovens redatores e editores faziam, para citar um lugar-comum, as ossadas de Simões Filho, Ranulpho Oliveira e Jorge Calmon dar cambalhotas na tumba. O jornalista e escritor Carlos Ribeiro (foto), autor do cuidadoso texto de Um século de jornalismo…, foi acometido de um ataque de urticária e uma certeza: diante da invasão dos bárbaros, não há mais resistência possível. COMENTE» |
GILBERTO FREIRE E O AMOR AO PICILONE
O sociólogo Gilberto Freire (1900-1987), aquele do clássico Casa grande & senzala, parecia se ter em grande conta. Vaidoso de sua origem e formação, não admitia, por exemplo, ter o nome grafado como acabo de fazê-lo (de acordo com as regras da ortografia): queria que fosse Freyre – e chegou a publicar laudatório artigo no Diário de Pernambuco, para explicar esse exacerbado apego ao picilone. É curiosa a tendência brasileira de escrever nomes próprios de variadas formas, sem atentar para o que diz a norma. Eu me sinto confuso quanto ao ípsilon de Freyre e de Ruy (nome frequente na Bahia), mas acho que agora pode, pois tal letra está de volta com o Acordo Ortográfico.
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Bahia de Gregório a Ariovaldo “Mattos”
Por aqui nós gostamos muito também das consoantes dobradas, uma excrescência do ponto de vista da ortografia: conheço Vianna, Joanna, Mello, Castello, Zagallo, Netto – e por aí vai. Na Bahia parece haver um acordo tácito, pois todo Matos de que tenho notícia grafa seu nome como Mattos, mesmo que não se veja nenhum motivo para isso. De famosos a nem tanto, passando pelos meramente anônimos, cito de memória Gregório (aquele mesmo, o Boca do Inferno), Cyro, Florisvaldo, Rogério, Julivânia e Humberto, todos Mattos. A exceção, nem sempre observada, é Ariovaldo Matos – que, devido ao hábito, muita gente boa chama de Ariovaldo Mattos.
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“Eras real, um homem verdadeiro”
Querido e respeitado, Ariovaldo (1926-1988) ganhou do seu quase homônimo colega Florisvaldo Mattos soneto clássico, decassilábico, de bela tessitura, que releio em Caligrafia do soluço: “Nem (abra-se o caderno do passado)/ se fôssemos parentes saberias/ o que guardava-me a mente a teu lado/ pelo correr das noites e dos dias, # quando, sôfrego, à máquina escrevias/ páginas de um jornal – ou quase um brado/ que ia e voltava a teu convívio, alado/ tropel sobre impassíveis geografias. # Como decifrador de calendários,/ a batalha dos signos açulava-te/ a matilha de ventos operários. # Eras real, um homem verdadeiro./ Mais não pude guardar, se o que eu sonhava/ era ser aprendiz de feiticeiro”.
Se existe jazz puro, deve chamar-se Betty Carter (1930-1998). Menina, em Detroit, ela foi convidada a se apresentar ao lado de famoso jazzman que passava por ali, e não se fez de rogada – antes, alterou os documentos, pois era muito novinha. Mais tarde, vendo-a melhor, o mesmo astro (nada menos do que Charlie Parker) foi direto: “Você vai demorar a alcançar o topo, por ser inflexível”. Bird foi profético: Betty Carter se manteve intransigente com relação à sua música, e só quarenta anos depois foi reconhecida pela crítica como o mais puro estilo vocal do jazz de todos os tempos – com o aval de Carmen McRae, numa frase dura: “É a única de nós que não se prostituiu”. _______________
Grande melodia, mas versos medíocres
How high the moon teve gravações de Ella Fitzgerald, Benny Goodman, Dave Brubeck, Harry James, Sarah Vaughan, Armstrong, Ellington, Chet Baker, Gloria Gaynor, Nat King Cole, Stan Kenton, Errol Garner – e mais. É a fórmula americana, de boa melodia em letra medíocre: depois de dizer que em “algum lugar existe música” (somewhere there’s music) e “em algum lugar é o céu” (somewhere there’s heaven) conclui-se que “a lua é muito alta” – enfim, uma coisa ininteligível para quem não é especialista nessa língua de barbares. Na companhia de Hank Jones (piano), Christian McBride (baixo), Hoy Hargrove (trompete) e Al Foster (bateria), Betty Carter mostra sua leitura da canção famosa.
É de espantar como certas pessoas, arquitetas de um Brasil que já se foi (e que, felizmente, não volta mais), se apegam a conceitos antigos. Querem o mundo estagnado, na permanente defesa do socialmente velho, sem perceber que o novo, para o bem ou para o mal, é inevitável. É saudável entender que o mundo é revolucionário, é processo contínuo de movimento e mudança, ambiente sempre em transformação, pouco importa nossa vontade. E, pior para essa gente, não é só o ambiente que sofre o impacto do novo, mas as pessoas também abrigam uma incrível luta de morte e vida: ao nascer, começamos a morrer – e sabemos o resultado desse embate, sem lhe saber a data.
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A leitura ajuda a compreender o Brasil Os versados em filosofia já perceberam a pista: tateio a dialética marxista, talvez por influência de Para entender O capital (David Harvey, Boitempo Editorial/2013). Imagino que essas leituras nos ajudem a, além de entender o pensamento de Marx (muito citado e pouco lido), entender o Brasil. Vivemos, para desespero dos mais reacionários, tempos em que se unem indivíduos do mesmo sexo, empregadas domésticas têm direitos trabalhistas, índios, sem-terra e sem-teto protestam, pobres recebem Bolsa-Família, negros encontram abertas as portas da universidade. De pouco adianta reclamar, pois esses valores novos são irreversíveis. _______________ Conquistas sociais que não têm volta Quem tiver tempo a perder e latim a gastar, que reclame do Bolsa-Família, por exemplo, mas o programa não tem volta, pouco importa quais forças políticas venham a dirigir o País. O grupo partidário que (em defesa da estagnação contra o movimento) atacou o BF já renunciou ao combate desde a última campanha, prometendo aumentar os valores distribuídos e ainda acrescê-los de um surpreendente 13º salário (ou seria 13ª bolsa?). Diga-se o mesmo das cotas para afrodescendentes: pesquisa em quatro universidades federais mostra que as cotas deram certo. Os argumentos contrários a elas não se confirmaram, eram só as velhas manifestações de preconceito. COMENTE! »
ENTRE PARÊNTESES
A questão com o livro emprestado, aqui referido há poucos dias, não é apenas devolver, mas devolver bem cuidado. Já me aconteceu receber de volta livro que parecia ter vindo da guerra ou sobrevivido a incêndio: sujo, amassado, com páginas dobradas, riscado, capa escangalhada, num escandaloso desrespeito. Siga-se o exemplo de mestre Jorge Araújo – que se acaso toma emprestado livro de alguém o devolve no estado em que foi recebido. Livro deve ser tratado com delicadeza e carinho, de mãos limpas como queremos que tenham os políticos, e carinhosas como devem ser as de quem mapeia o corpo de pessoa muito amada.
Em princípio, tudo que existe no corpo humano tem utilidade – eu não sei qual a serventia do meu dedo mindinho do pé, mas deixa pra lá. Os olhos possuem uma coisa chamada celha (ê), conhecida como cílio, que os protege da poeira e outras agressões – e a tal celha é guarnecida pela sobrancelha, que lhe fica acima. Em crônica de agradável sabor sobre os festejos juninos em Ilhéus, o autor me faz lembrar que havia, então, ao pé da fogueira, dentre outros atrativos, “damas, com vestido rodado, quadriculado, exibindo a feição maquiada, com pintinhas na bochecha, batons nos lábios, realce nas sombracelhas e cabelo dividido ao meio…” – ah, meu tempo! _______________
Som nasal que se aboleta nas palavras
O texto merece elogios, mas necessita de um reparo nesse apêndice capilar que tão deliciosas lembranças nos evocam: para começar, não creio que o cronista quisesse dizer sombracelhas, que nunca ouvi, mas sombrancelhas, muito comum, mas igualmente equivocado. Seria um erro de digitação? Usa-se, com alguma insistência, sombrancelha em lugar de sobrancelha (suponho que viria de sobre a celha, com o som transformado). Mas sombracelha é novidade. Curioso é como esse “n” anasalador de sons invade as palavras e ali se aboleta, criando sérios entraves para quem fala ou escreve: indiossincrasia (por idiossincrasia), buginganga (bugiganga), mortandela (mortadela), reinvidicar (reivindicar), intinerário (itinerário) – e por aí vai.
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Cílios postiços custam os olhos da cara
As mulheres, que já nascem criativas, logo se aperceberam de que os cílios eram um item de beleza, tanto que os projetam grandes, bem tratados, escovados, às vezes adquiridos em butiques, a preços que custam os olhos da cara (com perdão pelo mau trocadilho). E não desprezam as sobrancelhas, que são aparadas, depiladas, pintadas, redesenhadas, perfumadas e submetidas a demais truques capazes de melhorar o que a natureza já fez bem feito. A bela e doce Malu Mäder, matéria de sonhos masculinos, escolheu caminhar, se entendem, na contramão: em vez de investir na mudança, preferiu manter au naturel suas sobrancelhas. De minha parte, nada oponho, até aplaudo.
Canção francesa das mais festejadas, todo mundo conhece Ne me quitte pas, aqui referida, pelo menos, duas vezes. Como já explicamos que o som desta coluna é montado sobre standards, vá lá a terceira: descubro, com atraso, um surpreendente registro de Alcione – respeitável voz de sambista e, pelo que sei, não chegada a gorjeios em outra língua que não a camoniana. É mais uma cantora para este dramático tema masculino que, curiosamente, tem raras gravações de homens. Não precisa dizer que Ne me quitte pas foi feita (com todos os versos em cinco sílabas) por Jacques Brel para sua mulher, quando se separaram, em 1959. Creio que aquela Suzanne Gabrielle, ao resistir a uma cantada desta categoria, provou ter dentro do peito uma pedra de gelo.
É curioso o comportamento das pessoas a respeito de livros. Não falo de lê-los, mas de tê-los. Conheço um professor, culto e gentil, íntimo de preciosismos como grego e latim, de quem tomar um livro emprestado torna-se quase uma violência. Apegado à sua biblioteca, em lhe sendo possível negar, não deixa jamais que lhe saia de sob as vistas uma unidade sequer, com receio de que ela não volte mais ao aconchego do lar. A justificá-lo ficam na outra ponta os leitores que não devolvem livros emprestados. Eduardo Anunciação (que Deus o acolha!) era do tipo: livro que a suas mãos chegasse mudava de dono, pois o bom Eduardo sofria de amnésia quanto a este assunto. Mas essa categoria é variada.
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Em nova casa, protegido contra traças Dois exemplos: jornalista e escritor (dois títulos publicados), Daniel Thame gosta muito de livros, comprados ou não. Mas a quem lhe quiser emprestar algum eu sugiro ser generoso e o fazer com dedicatória, isto é, não emprestar, doar. Tenha a certeza de que o livro que outrora lhe pertenceu será lido e cuidado, mas não retornará, pois é pra frente que se anda. Por fim, o mais, digamos assim, sofisticado desse grupo, o professor de Direito e ex-roqueiro Adylson Machado: não devolve livro e ainda disserta sobre os motivos de não fazê-lo. Dá ao volume lugar de destaque em sua larga estante, espana-o, protege-o contra traças e outros malefícios, e questiona: “O primitivo dono faria tanto?” _______________ Não faltam bibliotecas, mas leitores Não tenho ciúmes dos meus livros. Poderia emprestá-los todos, se encontrasse quem os lesse e os devolvesse intactos (para servir a outros leitores). Mas não quero doá-los a bibliotecas que vivem às moscas. O brasileiro acostumou-se a dizer que nos faltam bibliotecas públicas, o que é uma questão de senso comum: aprende-se a repetir isso, sem atentar para o fato constrangedor de que as bibliotecas existentes (poucas, é verdade, muito poucas, se nos comparamos com a mal falada Argentina) são ociosas. Voltando ao tema central, atribui-se a Bernard Shaw (ou seria Oscar Wilde?) esta frase: “Idiota é o homem que empresta um livro; mais idiota é o homem que o devolve”. COMENTE! |
ENTRE PARÊNTESES
Há tempos, esta coluna lamentou que certos redatores tenham posto a prêmio a cabeça do “se”: já não grafam “aluga-se”, mas “aluga” (e, em igual desvario, “vende”, em vez de “vende-se”, e “inicia”, em lugar de “inicia-se”. Seria, imagino, a Lei do Menor Esforço, aquela que festeja a preguiça e agride a boa linguagem. Pois lhes digo que acabo de surpreender um “se” inteiramente fora do lugar: entrou em moda, ficou bonitinho dizer coisas como “ele quer se aparecer”. Seja gentil com a língua portuguesa, não empregando tão despautério. Há verbos que nasceram pronominais e pronominais vão morrer. Não é o caso de aparecer, sabidamente inimigo do “se”.
A literatura brasileira registra, ao lado do romance, do conto/novela e da crônica, um segmento ainda um tanto enjeitado, o microconto. Mesmo não sendo novo (Hemingway já o praticou), ele não é aceito como gênero literário. O paranaense e mal-humorado Dalton Trevisan é um dos expoentes do que os americanos chamam microfiction (no Brasil há quem chame isso de microrrelato). Se acaso o microconto é uma competição para ver quem o faz menor, Trevisan está longe de ser o campeão, mas está no jogo: ele começou com o “conto curto” (40 linhas, 150 palavras) e fica cada vez mais econômico. Falemos de dois autores notáveis desse modelo, que parece irmão do haicai. _______________
A tragédia em apenas sete palavras
Augusto Monterroso (1921-2003), premiado escritor guatemalteco é autor de um miniconto famoso, com apenas trinta e sete letras e sete palavras (O dinossauro): “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Antes dele, o americano Ernest Hemingway (1899-1961) gastou também sete termos, mas apenas vinte e seis caracteres, para fazer sua, digamos, narrativa: “Vende-se: sapatos de bebê, sem uso”. O dinossauro integra antologias em vários países, com muitos estudos de suas faces literária e política; o texto de Hemingway “fala” de uma tragédia familiar, uma criança que não chegou a nascer, ou que logo morreu. O trágico não é explícito, mas sugerido.
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Célio Nunes: drama em poucas palavras
Célio Nunes (1938-2009), contista sergipano de fortes ligações com Itabuna, teve lançado postumamente em 2001 seu livro Microcontos, com 62 narrativas curtas. Experimentado – publicou o primeiro livro em 1963, o último em 2005 – Célio não adentra os caminhos de Hemingway e Monterroso: é econômico em suas histórias, a maioria com menos de 200 palavras, mas a todas dota de princípio, meio e fim – conforme o modelo clássico, com finais, quase sempre, surpreendentes. Os personagens, conforme faz notar o poeta itabunense Plínio de Aguiar, na apresentação, “transitam por histórias marcadas pela dramaticidade da sobrevivência, por histórias que não raro terminam no pênalti da tragédia humana”.
“Solidão é lava/ que cobre tudo (…)/ Solidão, palavra/ cavada no coração/ resignado e mudo…”. São versos de um artista reconhecido na MPB, sambista, chorão, cantor de voz pequena, porém afinada e segura – Paulinho da Viola. Homem manso, tranquilo, sereno, ele abriu um caminho pessoal na selva que é o meio artístico, impôs uma marca, criou um estilo de compor e de cantar. De 1968 (Paulino da Viola, Odeon) até nossos dias, são, pelo menos, oito discos fundamentais, entre eles (já disse ser o meu preferido) Bebadosamba (1996), o único de inéditos que ele gravou até hoje, parece-me. No vídeo, o grande Paulinho coadjuva Marisa Monte em Dança da solidão (do LP do mesmo nome, Odeon/1972).
Em resposta a certa indagação, faço uma espécie de “carta a um jovem redator”, um bilhete, talvez. Digo-lhe: fuja do lugar-comum com a rapidez com que o Capeta corre da água benta. E tente riscar do seu vocabulário certas expressões: se lhe vier à boca “perguntar não ofende”, puxe as próprias orelhas e, enquanto elas ardem, a vontade passa. É garantido. Este método tão singelo também serve se lhe ataca um frenesi de dizer “a pergunta que não quer calar”. Não diga essa bobagem, pois você corre o risco de dirigir-se a um entrevistado inteligente (às vezes, ele é burrinho, mas o público, não). Tenha um olho na entrevista e outro no leitor, bicho decididamente no fim do ciclo de vida.
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Acalente a esperança de mudar o mundo Outra: nunca, jamais, em tempo algum se deixe vencer pela tentação de afirmar que tal coisa, atitude ou pessoa “faz a diferença”. Esta expressão está mais surrada do que notícia da contratação de Adriano, dito Imperador. No mais, como jornalista, conserve acesa a chama da esperança de mudar o mundo – mas antes procure mudar seu texto, em processo de contínua melhoria. Rainer Maria Rilke (1875-1926), que me soprou esta tirada, jogou duro numa de suas Cartas a um jovem poeta, dureza que transponho. “Pergunte a si mesmo, na hora mais tranquila de sua noite: ´Sou mesmo forçado a escrever?´”. Se a resposta for não, contente-se em saber que nem todos vieram ao mundo para ser jornalistas. _______________ “A aprendizagem é uma longa clausura” Chamado a redigir anúncios (isto há de ocorrer, cedo ou tarde) não deixe que o cliente enxerte no texto coisas do tipo “ligue agora, está esperando o quê?” ou, esta, também abominável: “a prestação cabe no seu bolso”. Se ele insistir, desista: vá-se o cliente, fique a qualidade. Lembre-se de que você não é casa de tolerância, onde quem paga tem todos os direitos. Voltemos ao velho Rilke: “Pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar, têm que aprendê-lo. Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar, mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura”. Troque amar por escrever e… boa sorte. COMENTE! »
DE HISTÓRIA, POESIA E AFRODESCENDÊNCIA
Integrada ao seu tempo, a Editus, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, acaba de entrar para o contemporâneo segmento dos livros digitais. Já estão disponíveis para leitura na maquininha três autores antes editados em papel: Ruy Póvoas (Versorreverso, Itan de boca a ouvido, A fala do santo e Itan dos mais velhos), Maria Luísa Silva Santos (O quibe no tabuleiro da baiana) e Antônio Lopes (Solo de trombone – ditos & feitos de Alberto Hoisel). É só clicar e ler, sem mais desculpas, pois é de graça feito o ar que se respira. Sem trombetas ou megafones, confetes ou serpentinas, a Editus abre caminho para um excelente programa de leitura.
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“Meu sorriso, meu olhar, minhas mãos”
De Ruy Póvoas, escritor de méritos reconhecidos e ser humano sabidamente bom, nobre e justo, vai aqui o poema “Repetição”, pescado em Versorreverso: “Já te disse tudo. # Disse com meu sorriso,/ disse com meu olhar,/disse com minhas mãos,/ disse com meu cantar. # Disse com minhas crises,/ disse com os meus textos,/ disse com o meu corpo,/ disse com o coração. # Disse com minha glória,/ disse com minha história,/ disse com o meu medo,/ disse com devoção.# Disse com minha alma,/ disse com minhas dores,/ disse com meus temores,/ disse com minha calma,/ disse com meu sofrer. # Agora, fico calado,/ mas até o meu silêncio/ é outra forma de dizer”.
Tenho em mãos os originais do último livro de Marcos Santarrita (1941-2012), À sombra dos laranjais. Versado em romance histórico (fez, nesta linha, Mares do sul e Ilha dos trópicos – além de uma trilogia sobre a ditadura militar), o autor agora ambienta sua narrativa na Guerra do Paraguai. Tendo entre os personagens figuras como Caxias, Osório, D. Pedro II e Solano López, Santarrita desfia uma história de amor e guerra, sexo, espionagem e traição. Resultado de exaustiva pesquisa, o texto reconstitui usos e costumes da época, tendo até diálogos em guarani. À sombra… é o oitavo romance de Marcos Santarrita.
Esqueçam o que eu escrevi. Lembram-se desta frase de famoso presidente? Tomo-a emprestado, noutro contexto, para mudar explicação aqui dada a respeito do registro, em 1958, de Fine and mellow, por Billie Holiday com um grupo all stars. Descrição muitíssimo melhor do que a minha é a de Sylvia Fol, em Billie Holiday (Coleção Biografias L&PM Pocket, tradução de Williams Lago/2010). É a pungente história de uma mulher negra, pobre, prostituída, drogada, de voz lânguida e vigorosa, que influenciou centenas de vocalistas. Não só sinônimo de jazz, Billie é também um caminho para a liberdade. A seguir, o texto de Mrs. Fol, em tradução livre. _______________
Para “Prez”, um olhar inesquecível “Billie escuta os solos dos três melhores saxofonistas tenores da era do swing com reações diferentes. Cheia de boa vontade para com Ben Webster, plena de admiração com Coleman Hawkins. Marcando o ritmo, um vago sorriso erra sobre seus lábios, seus olhos se entristecem… Depois, Lester Young, parecendo extenuado e doente, se levanta, volta o rosto inchado para Billie, os olhos são fendas sem vida. Toca, com ar distante, mas seu solo, expressivo e sensual, é de uma nostalgia perturbadora, como se seu último suspiro fosse inspirado por essa mulher tão amada… Billie cobre ´Prez´ com um olhar inesquecível, cheio de bondade, ternura e reconhecimento”. Eu que agradeço.
Adquiri há poucos dias o ótimo Toda poesia, de Paulo Leminski (1944-1989), para dar de presente a uma poetisa amiga, sem saber no que estava me metendo. Leio agora em matéria d´A Tarde, com assinatura de Marcos Dias, que essa coletânea (cerca de 630 poemas do autor paranaense) é fenômeno editorial: ganhou tiragem inicial de 5 mil volumes, número surpreendente para um livro de poesia (pois, em geral, vende ainda menos do que prosa) e teve logo quatro reimpressões de igual quantidade, isto é, atingiu os píncaros das 25 mil unidades em apenas dois meses. Leminski, mais de vinte anos depois de morto, desmente a máxima brasileira de que poesia não vende.
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Quis silêncio, tem barulho estrondoso Há séculos tenho decorado este poemeto de Leminski (seus textos são, em geral, breves, lembrando o haicai, quando não são haicais propriamente): “Acordei bemol/ tudo estava sustenido/ sol fazia/ só não fazia sentido”. Parceiro de Caetano Veloso e Moraes Moreira, tradutor de Joyce, biógrafo de Bashô, Trotski e Jesus Cristo, além de faixa preta de judô, Paulo Leminski escreveu seu epitáfio: “Aqui jaz um grande poeta./ Nada deixou escrito./ Este silêncio, acredito,/ são suas obras completas”. Ao contrário do pedido, com cinco tiragens em tão curto tempo (fazendo-o concorrente de 50 tons de cinza) o poeta motivou em torno de si um barulho intenso.
(ENTRE PARÊNTESES)
Falando do Estádio da Fonte Nova, o professor Gustavo Haun, em artigo neste Pimenta, condena uma nova mania nacional: “… é uma infelicidade tremenda chamar um estádio de futebol de arena. Parece um retorno à barbárie, quando nas arenas da antiguidade se esfolava, matava, queimava etc., para mera distração dos imperadores entediados, além de diversão e alienação das massas”. A mim também me assusta a facilidade com que a mídia em geral aceita (ou ela mesma cria) essas “novidades” linguísticas que a nada de bom nos conduzem. Seria fácil chamar aquele monte de dinheiro desperdiçado de Estádio (como tem sido), mas para que a simplicidade, se o melhor é ser moderninho.
VINÍCIUS E AS MELHORES COISAS DO MUNDO
Dia desses, falamos de vinho, hoje vamos de uísque – o que nos candidata a processo por incentivo a usos e abusos do álcool. “Ossos d´ofício”, diria meu lusitano vizinho. Vinícius achava que a melhor coisa do mundo era um uisquinho escocês “honesto” (ele preferia White Horse), a segunda melhor coisa do mundo, um uisquinho do Paraguai e a terceira, um uisquinho nacional mesmo. Frank Sinatra, falando sobre fé: “Sou a favor de qualquer coisa que faça você atravessar a noite, sejam orações, tranquilizantes ou uma garrafa de Jack Daniel´s”. O cinema e a literatura muito contribuíram para consolidar o uísque como “alavanca” do melhor viver. Mas eu ia dizer outra coisa – e não vou esgotar o tema hoje.
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Sinatra: a gabolice da garrafa diária
Na minha estante desarrumada não localizo um livro (pensei ser A ceia dos acusados ou outra coisa de Dashiell Hammett) que tem uma garrafa de Jack Daniel´s na capa. Logo, saio da literatura noir e entro em outra história: Frank Sinatra (na foto, servindo a Dean Martin e Sammy Davis Jr.) dizia consumir uma garrafa de JD por dia. É gabolice, pois ninguém resistiria a essa insensatez de álcool (espero que quando me processarem considerem esta frase como atenuante). Mas ele sempre bebia uma dose, no palco, num brinde à plateia. As más línguas dizem que era mais água, porém, no show histórico do Brasil (1980) ele desmentiu essa tese: quem estava próximo ao palco o ouviu reclamar que seu uísque tinha “muita água, muita soda, ou coisa parecida”.
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Churchill e seu copo no café da manhã
Churchill, primeiro-ministro britânico, um espongiário (bebia de manhã, à tarde e à noite), exigia no seu breakfast ovos, torradas, charuto e um copo de Johnnie Walker (aqui, a direita moralista jamais o perdoaria!). Os detetives noir são movidos a uísque, sobretudo Jack Daniel´s. Nenhum leitor sensato pensaria em Sam Spade (que Humphrey Bogart viveu na tela em O falcão maltês) ou investigador semelhante bebendo cerveja ou coquetel de frutas: o ambiente é uma espelunca esfumaçada, jazz dos anos quarenta, e a bebida é Jack Daniel´s, com certeza. Faltou dizer que Sinatra, enterrado em 1998, levou no caixão uma garrafa do nosso uísque preferido. Um desperdício, eu diria.
A RELIGIÃO E AS VERGONHAS ENCOBERTAS
Atoleimados, basbaques, beócios, labruscos, mentecaptos, paspalhões, estultos e, principalmente, reacionários insistem em que não há mais índios no Brasil (salvo uns poucos que ainda andam nus e usam botoques). É um discurso falso, menos por ignorância do que por comprometimento ideológico: apenas no Nordeste é possível identificar mais de vinte (!) nações indígenas, mesmo que seus integrantes usem tênis, calça jeans e notebook. Querer que essa gente fique estacionada no século XVI é a primeira pregação do discurso do não-índio – ainda que, já naquela época, lhes impusessem religião e cobertura das “vergonhas”. _______________
Mil línguas perdidas na cultura branca Salvo engano, são indígenas nordestinos os povos pataxó, tupinambá, cariri-xocó, xucuru, xucuru-cariri, trucá, aconã, aticum, fulniô, carapotó e mais umas duas dezenas. Muitas dessas tribos falam suas línguas, outras já perderam tal referência cultural, absorvida e abafada pelo “homem branco”. Informa o IBGE que, além da portuguesa, há pouco mais de 270 línguas indígenas faladas no Brasil. E há línguas de tribos isoladas, que ainda não puderam ser conhecidas e estudadas. Na época do descobrimento do Brasil, havia 1.300 línguas indígenas diferentes. No vídeo, um show arrepiante de Baby Consuelo e Jorge Ben: Todo dia era dia de índio (Rede Globo1981).
Um programa de tevê usou (é literal o termo) uma criança para entrevistar, comprometer e constranger o deputado José Genoíno – criando uma grande polêmica sobre se houve ou não arranhões ao direito da criança, definido em lei. Como este espaço fala de jornalismo, mesmo que ninguém haja pedido minha opinião, dou-a, ainda assim. Deixo a criança ao juizado competente e atenho-me à outra face, o “entrevistado”, para dizer que “arranhão” é muito pouco: o que percebi foi a ética gravemente traumatizada, algo comparável a uma fratura exposta. Genoíno, condenado pelo Supremo Tribunal, não é santo, mas não cabe à mídia fazer-se de carrasco e executar penas.
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Chegaremos à tortura de entrevistados? Diria aos jovens repórteres que o recurso da câmera escondida, comum nas tevês, me cheira a jornalismo policialesco, um segmento que me ocorreu inventar agora, e que nada tem de bom: tapeia-se o entrevistado para lhe “arrancar” o que ele não quer dizer. Se todos os meios são válidos para obter declarações (até explorar a inocência de crianças), daqui a pouco teremos “repórteres” torturando entrevistados, só para saber o que estes têm a declarar. Se o entrevistado não quer falar, precisamos respeitar seu direito (lembrem-se de que os tribunais, que têm a força, respeitam essa prerrogativa). Se Genoíno não quer falar à imprensa, está no direito dele. ______________ A lição que toda mãe pode transmitir Encerrando, uma observação para os repórteres que ainda raciocinam fora dos padrões em voga: todo entrevistado tem o sagrado direito de, em frente à mídia, saber com quem está falando e a que veículo pertence quem o entrevista. Se esse contato não for feito às claras, estaremos empregando truques e artimanhas que não pertencem à profissão, e tampouco a engrandecem. No mais, se alguém achar que esta coluna defendeu o deputado não terá entendido nada. Aproveitando, uma “lição” sobre ética, que qualquer mãe é capaz de transmitir ao filho (e que serve não só para o jornalismo, mas para a vida): trate os outros da forma como gostaria de ser tratado. COMENTE! » |
(ENTRE PARÊNTESES)
Com nada menos do que três e-mails (supostos) leitores desta coluna perguntam onde e como adquirir o livrinho Estória de facão e chuva, do qual a Editus/UESC fez recentemente a segunda edição. Creio que, em sendo a leitura artigo de quarta necessidade, toda uma trinca de leitores potencialmente interessados já ascende o autor ao seleto panteão dos best-sellers regionais, e para atender a tanto interesse esta nota foi feita: Estória… está à venda (além da loja de varejo da Editus, na UESC) na Livraria Nobel, no Shopping, Itabuna, e na Livraria Papirus, na Dois de Julho, Ilhéus.
Leio, com alguma surpresa, este título de primeira página (os inventores de desnecessidades agora chamam primeira página de… “capa”!) num dos principais jornais de Salvador (um que antigamente se gabava de só “dar” verdades): Britânica explica obra de Marx. “Britânica”? – me interrogo, olhando a cara barbadíssima e nada feminina do geógrafo britânico David Harvey, especialista no pensador alemão que remexeu o mundo e até hoje provoca insônia e urticária na sociedade capitalista. E retornei à antiga dúvida: as razões que levam a mídia a erros tão grosseiros (no caso, uma expressão com cinco palavras, que passou pelas vistas de várias pessoas na redação).
“Poucos se arriscaram a chegar perto”
Mas deixemos de lado o que não tem conserto e, parece, nunca terá. Importante é que o estudioso, com o livro Para entender O Capital (que está à minha cabeceira) incita o público a (re) visitar um dos autores mais importantes da humanidade, um de quem, nas palavras de Harvey, “todos já ouviram falar, mas poucos se arriscaram a chegar perto”. Aos que, movidos por mercantis filosofias, trombeteiam “o marxismo acabou!”, o analista “britânica”, com 40 anos falando do tema em universidades americanas, afirma que o pensamento daquele barbudo com cara de Jorge Araujo pode ser usado para entender o mundo de hoje – e aponta condições de trabalho (China, Tunísia e México) “similares ao que Marx previu”.
Um jovem cantor negro brasileiro dialoga com uma das divas do jazz, tratam-se como iguais e ele até a leva a pronunciar, em português, bobagens como “vou deixar cair” (uma gíria da época). O cantor é Wilson Simonal, aos 30 anos; a diva é Sarah Vaughan, com 45; o ano, 1970. Em outro momento, no Maracanãzinho lotado, ele transformou o público num imenso coral e pôs todos a cantar Meu limão, meu limoeiro em duas vozes, afinados, no tempo certo. Era o “Coro dos 30 mil”, regido por Simonal, que estava com tudo e não estava prosa, até vendia “Para, Pedro!” na França (alguém se lembra?), rivalizava em popularidade com Roberto Carlos. Mas como não há bem que seja eterno, veio o tempo cinzento. _______________
A queda tão rápida quanto a ascensão Simonal sumiu das paradas, deixou de fazer shows, ninguém queria gravá-lo mais. Seu crime? Divulgou-se que ele era dedo-duro do DOPS, a entidade que investigava, prendia, torturava e matava os inimigos da ditadura militar. A queda foi rápida como a subida: em 1975, na RCA Victor, a todo vapor, em 1980 grava na Copacabana e vende pouco, em seguida o mesmo resultado na Ariola, vai de déu em déu, até seu último registro, na Happy Sound (?) em 1998. Em 2000, esquecido e execrado, morreu de cirrose, provocada pelo alcoolismo em que mergulhou. Calava-se uma das mais esmeradas vozes da MPB. A familiares, o cantor dissera, pouco antes: “Eu não existo na história da música brasileira”. No vídeo, Simonal antes da queda, durante show em Lisboa.
O texto segue o tempo, o que não parece óbvio para todo mundo. Quando, há mais de 80 anos, cantava-se “mas como a cor/ não pega, mulata,/ mulata eu quero teu amor…”, O teu cabelo não nega (Irmãos Valença-Lamartine Babo) era apenas alegria inocente; hoje, significa grave ofensa à raça, traumatiza a Lei Afonso Arinos e estatutos afins. Com o passar dos anos, a sociedade adquiriu mais consciência do que pode molestá-la, ampliando os instrumentos de autoproteção. Recentemente, foram banidos vários termos do nosso linguajar, sobretudo os relacionados a condutas sexuais. Onde se dizia “homossexualismo”, por exemplo, hoje é “homossexualidade”. Cautela e caldo de galinha continuam em moda.
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Alienação absoluta, conformismo total Outro texto que tem interpretações diversas, de acordo com a época, é Opinião (Zé Kéti), do show do mesmo nome, de 1964 (logo após o golpe militar). Voltado para a problemática social do Brasil, o espetáculo Opinião absorveu a música Opinião como revolucionária (ao lado de Carcará, Missa agrária, O favelado). Hoje, pode-se entendê-la em outro sentido: “se não tem água,/eu furo um poço,/se não tem carne,/eu compro um osso/ponho na sopa/ e deixo andar…”, uma inabalável profissão de fé no conformismo. Mas as melhores “pérolas” estavam no fim: “se eu morrer amanhã,/ seu doutor,/ já estou bem pertinho do céu”. A alienação absoluta, a antirrevolução, até a antirreforma. E ninguém percebeu. ______________ Tema “pegou” na biografia de Lamartine Voltando a O teu cabelo…, é oportuno dizer que este tema é uma mancha na biografia do Rei da Marchinha, Lamartine Babo. A RCA Victor, ao receber o tema dos Irmãos Valença (João e Raul) pediu que Lamartine “acariocasse” a marcha, tirando da letra algumas expressões de pernambucanês. Lamartine não se fez de rogado: manteve a música e o refrão, extirpou a gíria do Recife, promoveu o primeiro verso a título (o título original era Mulata) e assinou O teu cabelo não nega, como sendo autor da letra e da melodia. Os Valença reconheceram as mudanças, mas foram à Justiça, reivindicando que Lamartine era parceiro, não autor. Ganharam em todas as instâncias. | COMENTE!
NOSSA RESPONSABILIDADE COM O PÚBLICO
Montado em brisa do outono, nos vem um comentário do secretário de Comunicação de Ilhéus, jornalista Paixão Barbosa (foto), a propósito de notinha aqui postada na semana passada, sob o título “Professor ilheense vai presidir a ABL”. Ele “pede desculpas” pelos desvios que esta coluna, “tão acertadamente, registrou”, e diz que tudo aconteceu “por desatenção de quem redigiu [o texto], o que realmente é imperdoável”. Experiente (mais de três décadas n´A Tarde), Paixão Barbosa tira do episódio uma lição. Em suas palavras, “os erros cometidos pelos que têm a responsabilidade de informar ao público são sempre muito graves pelo potencial multiplicador que eles carregam consigo”. No mesmo pé-de-vento do pós-verão, vai a contrarresposta (ai, esse Acordo Ortográfico!).
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Raios, arreganhos e morte anunciada Foi tudo muito divertido (não para o secretário, que querem?) e “didático”, até porque errar, o clássico humanum est, ajuda a identificar nossas fragilidades e nos faz crescer (já não me dirijo a V. Sa., mas ao meu/minha colega que escreveu a notinha açodada): não me leve a mal, eu só quero que você me queira. E digo que Paixão Barbosa, dono de alto conceito no jornalismo baiano, se engrandece com o sucedido: quando temos até um comunicador com morte anunciada em Ilhéus, é confortador saber de alguém capaz de receber críticas, serena e humildemente, recusando-se aos ralhos e arreganhos com os críticos, conforme o hábito. Mas, e quanto aos 18 veículos (pelo menos!) que repetiram a nota sem lê-la, o que faremos? | COMENTE!
(ENTRE PARÊNTESES)
“Às vezes, quando vejo o que se passa no mundo, pergunto-me: para que escrever? Mas há que trabalhar, trabalhar. E ajudar o que mereça. Trabalhar como forma de protesto. Porque o impulso de uma pessoa seria gritar todos os dias ao despertar num mundo cheio de injustiças e misérias de toda ordem: protesto! protesto! protesto!” Este pequeno texto de Federico Garcia Lorca (1898-1936), citado por José Domingos de Brito no livro Por que escrevo? (Escrituras/1999), me vem à mente quando sobre mim pairam as nuvens negras do desencanto com a humanidade – e isto é mais constante do que seria saudável.
De quem “gosta” de jazz é exigido o nome de uns poucos grandes nomes em cada instrumento. Se você é capaz de citar duas feras em trompete (Armstrong, não vale, pois até os bebês conhecem seu som!), sax, voz, guitarra, vibrafone (com estes dois já é mais difícil), baixo e piano, tem suficiente para começar a conversa. Mas faltou bateria. Então ofereço cinco nomes – e qualquer deles fará com que os olhos do pessoal se voltem com admiração para a gentil leitora que o pronunciar: Max Roach (foto), Gene Krupa, Buddy Rich, Art Blakey e Elvin Jones. Aqui, citados ao acaso, os negros ganham de 3 a 2: Roach, Blakey e Jones contra os branquelos Gene Krupa e Buddy Rich. _______________
Baterista “roubou” a própria orquestra Em 1982, Frank Sinatra (1915-1998) comandou o show Concerto das Américas (Concert for the Americas), na República Dominicana, que virou DVD. Em estado de graça, “A voz” cantou Corcovado (em inglês: Quiet night of quiet stars), pretexto para “encher a bola” de Tom Jobim, repetiu grandes êxitos populares (incluindo, é claro, Strangers in the night e New York, New York), tudo isso em companhia da orquestra de Bernard Buddy Rich (1919-1987). Aqui, o momento em que Sinatra apresenta o baterista e este rouba a cena da própria orquestra, com um solo magistral em “Finale”, que encerra a lista de mais de 25 temas do musical West side story, de Bernstein.
“A noite da última quinta-feira, 14, foi marcada pela retomada das atividades da Academia Brasileira de Letras e posse da nova diretoria, que será presidida pelo professor Josevandro Nascimento. Durante o evento, que contou com a presença do prefeito Jabes Ribeiro, foram prestadas homenagens póstumas ao poeta baiano Castro Alves, que nasceu na mesma data da solenidade”, dizia a notícia lida em respeitável blog. “Ora, vejam só!”, pensei de olho nos botões da blusa: “Um ilheense presidindo a Casa de Machado de Assis!” – e quase saí aos gritos e pulos, tomado dum agudo e justificado frenesi bairrístico.
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Castro Alves acaba de nascer, aleluia! Mas, macaco antigo das redações, mantive minhas dúvidas e, como diriam os juristas, fui às provas: consultei dezesseis (!) blogs e dois importante jornais diários de Itabuna (os nomes não declino, mas adianto que o meu blog preferido, um que não gosta de molho agridoce, não está na lista). No entanto lhes digo, por ser rigorosamente verdadeiro, que os dezesseis veículos deram a notícia, fazendo do referido professor presidente da ABL – e criando uma barrigada monumental. Solidário, esperei uma semana pelo desmentido, que não veio; então, de alma lavada, enxaguada e embandeirada, comemoro publicamente o evento, pois não é toda hora que temos um ilheense a presidir o grande sodalício. ______________ O dia em que “mataram” Edivaldo Brito E aquela parte que diz ter Castro Alves nascido “na mesma data da solenidade” me levou às lágrimas: é imenso privilégio ter aqui o Poeta dos Escravos bebezinho, em fraldas, nascido no dia 14 de março deste ano – mudando o curso da história. Falemos sério: a mídia contribui para a desinformação (e neste caso, o ridículo), ao publicar notinhas de assessoria sem submetê-las a copidesque, revisão e edição. O lastimável texto da prefeitura de Ilhéus foi replicado ipsis litteris, com erros gritantes, a ponto de dar o palestrante Edivaldo Brito como patrono da ABL – o que significa estar o mesmo morto e sepultado há, no barato, 120 anos. É demais pra minha paciência. COMENTE |
COMILANÇA, OU O CASO DOS 3.600 PRATOS
Conhecido restaurante de Itabuna faz uma divulgação em que oferece “mais de 60 variedades de pratos”, num claro atentado à boa linguagem. O texto só pode ser salvo pelo cinismo daqueles para quem o importante é que a mensagem seja entendida. Eu entendi que a casa oferece “uma diversidade superior a 60 pratos”, só que isto não está dito em língua portuguesa. Como foi posto, o reclame gastronômico põe à disposição (há quem prefira “disponibiza”, argh!) 60 variedades multiplicadas por 60 pratos: 3.600 ofertas. Quer dizer: se o cliente quiser um churrasquinho de gato, por exemplo, será chamado a optar entre 60 tipos diferentes. Mesmo com o exagero a que a publicidade se dá direito, contenhamo-nos.
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Estupidez elevada à quarta potência Tautologias à parte, a indigência vocabular da mídia tem mostrado disparates a todo momento, a ponto de sepultar termos consagrados pelo uso, em benefício de “novidades”. Vejam que, no noticiário policial, não mais existe a palavra “bala”, trocada por “munição”. Troca malsã: bala é munição, mas munição nem sempre é bala: um é termo genérico; o outro, específico. O pior é quando um repórter mais ignorante pouquinha coisa, diz que “a polícia apreendeu várias munições”. Esta palavra, se lhe cabe o uso, fica bem no singular; quando empregada no plural, em lugar de “balas”, temos um estranho caso de estupidez elevada à quarta potência. Ou, para quem prefere a medicina à matemática, um quadro de asnice recidivante. COMENTE |
(ENTRE PARÊNTESES)
Permitam-me o pequeno anúncio: o livrinho Estória de facão e chuva (de 2005), esgotado, acaba de ter sua 2ª edição, por nímia gentileza da Editus (Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz), tendo Rita Virgínia Argolo à frente. O pequeno volume (184 páginas) reúne 35 crônicas e dois discursos, sendo um deles de Hélio Pólvora, na Academia de Letras de Ilhéus, em 2001. A professora Maria Luiza Nora, na apresentação de Estória… diz que o autor “com sua escrita, nos descomplica, nos tira aquela pose que pode estar querendo se instalar, nos humaniza a ponto de darmos boas risadas de nós mesmos, e risadas de deboche, o que é melhor”. O autor, cativo, agradece.
Canções com uma história real a sustentá-las são corriqueiras. Mas algumas conseguem se debater entre a realidade e a lenda, sem que nós, ouvintes distantes da cena da gênese, saibamos a verdade. É o caso de Belle de jour (sic), momento romântico de Alceu Valença, que é cercado por essa magia do sim e do talvez. Dizem que Alceu estava num café, em Paris (mas já pra lá de Bagdá), quando lhe surgiu à frente Catherine Deneuve e, com ela a lembrança do filme Belle du jour: ali mesmo ele escreveu a canção, para depois descobrir que não vira La Deneuve, mas Brigitte Bardot! Outros falam de incerta moça que caminhava todas as tardes na praia da Boa Viagem, no Recife, e que se afogou… _______________
O sotaque de Alceu nem a Sorbonne tira Claro que a versão de que a letra foi inspirada no filme de Buñuel não interessa, por ser muito óbvia, pouco instigante. E também não faltam os psicólogos de mesa de bar, a explicar que “azul” é referência a heroína (a bela estaria, nesta visão, chapada!), enquanto a Boa Viagem teria duplo sentido: não seria apenas a praia, mas também aquela “boa viagem” patrocinada pela droga (“A belle de jour no azul viajava…”). O artista não esclareceu a dúvida, preferindo reforçar o mito de que a canção foi feita num bar parisiense, quando ele, doidão da silva, teve um delírio e viu… sabe Deus quem! Eu gosto mesmo é do francês de Alceu: o accent pernambucano de São Bento do Una nem a Sorbonne tira. Graças a Deus.